A conjuntura...
AINDA NÃO ASSINARAM NOSSA CARTEIRA
Helena Pontes dos Santos[1]
Mestranda e especialista em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito - USP
Arquivo do Arquivo do Movimento Negro Unificado (MNU). Fonte: https://www.boitempoeditorial.com.br/blog/2025/05/13/13-de-maio-de-2025…
Ontem comemoramos o Dia das Mães de Maio, mulheres, majoritariamente negras, que denunciam há quase duas décadas os crimes que violentaram diversas famílias negras no fatídico maio de 2006. Dia 12 de maio é dia de luta por respeito à memória, busca por reparação coletiva e clamar por Justiça. Na véspera de 13 de maio, dia em que historicamente o Movimento Negro Unificado - MNU - denuncia a falsa abolição da escravização de pessoas negras.
Em 13 de maio de 1988, o MNU da Bahia em cartazes, faixas e outdoors protestou jogando uma verdade inegável, mas que seguimos ignorando: "A princesa esqueceu de assinar nossa carteira de trabalho". Esta denúncia contundente, mais do que uma demonstração de que o Movimento Negro Unificado nunca se afastou do debate de raça encruzilhado ao debate de classe - sendo ridículo que seja chamado de identitário, portanto - muito tem a ver com os dias de hoje e, principalmente, com os atos do STF no que diz respeito a legislação trabalhista e a competência da Justiça do Trabalho.
Passadas décadas da denúncia e mais de um século da falsa abolição, os dados mostram que, infelizmente, não é exagero o protesto de que a abolição da escravização no Brasil é uma farsa.
A falsa abolição nunca garantiu reparação, não revogou leis que serviriam de impedimento para qualquer possibilidade de avanço social do povo negro, nos impondo o lugar de massa marginal, na sociedade brasileira de capitalismo dependente.
A Lei Aurea, e as imperiais e republicanas, nunca foram - e não são - para garantir igualdade de oportunidades para a população negra. Olhando para o campo do Direito do Trabalho, por exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto-Lei n.º 5 452, de 1 de maio de 1943, fruto da luta do movimento operário brasileiro – a quem ela protege e a quem não? Os excluídos de sua proteção são os trabalhadores e trabalhadoras rurais e empregadas domésticas. Qual a cor destes trabalhadores e trabalhadoras? Nunca é muito lembrar que as trabalhadoras domésticas seguiram mais décadas sem uma lei que lhes garantisse algum direito e a legislação só saiu por conta de luta de grandes lideranças negras, como Laudelina de Campos Melo.
Mesmo que a legislação brasileira proíba a discriminação racial no trabalho formalmente, ela permite – seja pela terceirização, complacência com o combate e penalização da informalidade juridicamente tolerada e da fragmentação do mercado de trabalho racializado – a reprodução de desigualdades estruturais que atingem de forma desproporcional a população negra. É um modo de discriminação institucionalizada, assim como uma seletividade jurídica cuja função primordial é perpetuar o lugar historicamente subalternizado dos corpos negros no mundo do trabalho: sem carteira assinada.
Como ter a coragem de designar o trabalho de seguranças em instituições bancárias e de asseio em conservação nos empreendimentos como mera atividade-meio, quando é impossível que estas empresas funcionem sem estes trabalhadores e trabalhadoras? Não só herdamos, como renovamos até os dias atuais a visão escravocrata que falta com respeito e desvaloriza estas pessoas trabalhadoras e suas atividades. Numa sociedade como a nossa, em que o trabalho nos constitui, não estamos também diante de uma forma de desumanização?
A persistência das disparidades salariais, do modo como juridicamente são permitidos os avanços do capital sobre corpos negros trabalhadores, da violência policial e da exclusão educacional evidencia que ainda há muito a ser feito para alcançar a verdadeira democracia racial, fruto da verdadeira abolição que virá, necessariamente, com reparação coletiva.
Nesse dia de luta, protesto, usemos também nós, enquanto sociedade, nosso tempo, para uma dura, dolosa e necessária reflexão a partir do que as estatísticas e seus dados revelam e escondem:
- Renda média[2]: em 2023, a renda do trabalho principal de pessoas negras correspondia, em média, a 58,3% da renda das pessoas brancas.
- Diferença salarial por hora[3]: A hora trabalhada de uma pessoa branca valia 67,7% mais que a de trabalhadores pretos e pardos. Enquanto negros recebiam R$ 13,70 em média, os brancos recebiam R$ 23,00.
- Mortes por intervenção policial[4]: Em 2023, 87,8% das vítimas de intervenções policiais com dados de raça informados eram pessoas negras.
Olhando para os dados em relação a desigualdade no mercado de trabalho, verifica-se a persistência de um fosso entre pessoas negras (pretas e pardas) e brancas. A população negra continua enfrentando maiores taxas de desemprego, informalidade e ocupações precarizadas, refletindo um cenário de exclusão estrutural. Vejamos,
- Taxa de informalidade[5]: No quarto trimestre de 2024, a taxa de informalidade entre pessoas pretas foi de 41,9% e entre pardas, 43,5%, ambas acima da média nacional de 38,6%. Em contraste, a taxa entre pessoas brancas foi de 32,6%.
- Trabalho desprotegido[6]: No segundo trimestre de 2023, 46% dos negros ocupados estavam em trabalhos desprotegidos, como empregos sem carteira assinada ou trabalho por conta própria sem contribuição previdenciária. Entre os não negros, essa proporção foi de 34%.
- Perfil das trabalhadoras domésticas[7]: Em dezembro de 2023, o Brasil contava com 6,08 milhões de empregados domésticos, dos quais 91,1% eram mulheres, majoritariamente negras, com média de idade de 49 anos. Apenas um terço possuía carteira assinada, recebendo em média um salário-mínimo.
No que se refere a falácia do empreendedorismo, o primeiro ponto é observamos que este, para os trabalhadores e trabalhadoras negras, não foi ou é uma escolha, mas, muitas vezes, o único caminho, ante um mercado de trabalho racista que lhes mantém presos aos cargos menos valorizados economicamente e socialmente (apesar de sua essencialidade) de conseguir o mínimo para a reprodução de sua força de trabalho com alguma dignidade.
Como canta Racionais MCs,
"Por que o sonho de vários na quebrada é abrir um boteco/
Ser empresário não dá, estudar nem pensar/
Tem que trampar ou ripar para os irmãos sustentar".
O chamado empreendedorismo, para a classe trabalhadora, principalmente pessoas negras, muitas vezes, é a forma de sobrevivência imposta pelo mercado de trabalho excludente — não se trata, portanto, de um projeto político de autonomia para o povo negro, mas o único caminho possível para garantir a sobrevivência com alguma dignidade diante da ausência de direitos. Ao contrário do que introjeta em nossa comunidade o discurso liberal, a luta histórica do povo negro, representada por lideranças como Laudelina de Campos Melo, é pelo trabalho digno, com garantia do reconhecimento do vínculo empregatício, com todos os direitos que dele deveriam decorrer e não pelo "trabalho por conta própria".
A proporção de negros empreendedores empregadores[8], assim, é menor: 1,8% das mulheres negras eram donas de negócios que empregavam funcionários, enquanto entre as não negras, o percentual foi de 4,3%. Entre os homens negros, o percentual ficava em 3,6%; entre os não negros, a proporção foi de 7%. O que é ruim para toda a classe trabalhadora empurrada para ser Pessoa Jurídica, é notório, é pior para pessoas negras.
Quando observamos os valores auferidos pela população negra com a venda de sua força de trabalho, tem-se nítida percepção de que a superexploração tem estas pessoas como alvo:
- Diferença salarial[9]: Em 2023, os negros ganhavam, em média, 39,2% a menos que os não negros. Mesmo quando comparados os rendimentos médios de negros e não negros na mesma posição na ocupação, os negros estavam em desvantagem .
- Trabalho doméstico[10]: Entre 2012 e 2022, a renda média de faxineiras, cozinheiras e babás negras correspondia a 86,1% do ganho das profissionais brancas, evidenciando uma desigualdade salarial crescente ao longo dos anos.
No que se refere ao trabalho análogo à escravização, tem-se destacado o até aqui dito: a Princesa e a elite nacional não assinaram, não assinam e se puderem não assinarão nossa carteira de trabalho pois se sente, até hoje, confortável em aumentar seu ganho e taxa de lucratividade através da escravização de pessoas negras. Os dados sobre os resgates de pessoas nessa condição entre 2016 e 2023, revela que das mulheres resgatadas de condições análogas à escravidão, quase 80% eram negras e que muitas dessas trabalhavam em ambientes domésticos, sem acesso à educação, saúde ou direitos previdenciários.
O que tribunais fazem ao julgar a terceirização da atividade-meio como legal, para depois a ampliar para toda a classe trabalhadora, ou julgamentos que retiram na Justiça do Trabalho o direito de analisar a presença de relação de emprego nas fraudes que transformam empregados em pessoas jurídicas e que fazem de entregadores a serviço de aplicativos de entrega e transporte como trabalhadores autônomos nada mais é do que a perpetuação do ato da Princesa Isabel de não assinar nossa carteira de trabalho, não garantir a reparação coletiva ao povo que construiu esse país e renovar a clivagem racial existente na sociedade brasileira que empurra a massa marginal negra para estes trabalhos.
Esses dados reforçam a necessidade não só de políticas públicas eficazes que promovam a inclusão e a equidade racial no mercado de trabalho brasileiro, mas também da refundação do Direito do Trabalho a partir de uma perspectiva outra, que não invisibilize trabalhos essenciais, os excluindo ou reduzindo a proteção que é, em verdade, somente a garantia do mínimo para se viver.
Como anunciou Lélia Gonzalez, primeiro de maio tem tudo a ver com treze de maio e este, tem também ligação com o dia doze de maio. Nunca é demais lembrar que uma das vítimas dos Crimes de Maio, Rogério, era um gari, trabalhador da empresa que substituiu a Prodesan na coleta de lixo, a Terracom[11]. Estas pessoas trabalhadoras, como se sabe, não têm as mesmas condições de trabalho e garantias que um empregado público tem. Rogério tinha um atestado, mas estava indo trabalhar por medo de punições, como as que observamos em tantos processos trabalhistas. Voltando da casa da mãe, de pegar remédios, pois tinha que conseguir ir trabalhar apesar do atestado, foi morto pela polícia sumariamente no posto de gasolina em que abastecia. Segundo relatos de sua mãe, o policial disse a Rogério antes de o matar, quando este lhe informou que era trabalhador: morreu, neguinho, virou bandido.
É preciso um compromisso coletivo! Isso não se dará com a perpetuação da defesa do mal menor. É necessário um direito do trabalho que seja parte desse processo de reparação coletiva: ampliado e, finalmente, alcançando e protegendo a toda classe trabalhadora, independente de cor, raça, etnia, gênero, sexualidade, que incluam e valorizem Pessoas com Deficiência (PcDs), em que outras matrizes de pensamento sejam consideradas.
Brasil, 13 de maio de 2025.
[1]Especialista em Estudos afro-latino-americanos e caribenhos pelo Clacso. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC – USP) e da Equipe de Estudos em Direito do Trabalho e História (Edith-USP) e do Grupo de Estudos Intelectuais Negras Brasileiras (UNIFESP). Mulher negra de Axé, militante do coletivo organizador da Semana Tereza de Benguela da Baixada Santista e do Movimento Negro Unificado.
[11]Em 05 de agosto de 1997 o Sindilimpeza veio em comunicado à população santista pedir apoio contra a terceirização dos serviços de Limpeza Urbana, realizados pela empresa pública PRODESAN – Progresso e Desenvolvimento de Santos S/A - iniciada pelo então prefeito Beto Mansur. Desde então, A Terracom realiza o serviço e emprega as pessoas que limpam a cidade dia e noite.
- Resumo
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Sobre o 1º, 12 e 13 de Maio: a farsa da abolição que nunca aconteceu e como o racismo estrutural mantém negras e negros sem direitos trabalhistas no Brasil.
Palavras-chave: Negritando o direito do trabalho; Falsa abolição; Mães de maio.
- Abstract
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About May 1st, 12th, and 13th: the farce of the abolition that never truly happened and how structural racism continues to deny Black Brazilians labor rights.
Keywords: Blackening Labor Law; Blackening Labor Law; May Mothers.
Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Giovanna Herrera, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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