Ano 6 nº 08/2025: Vá e Veja - O Sentido da Segunda Guerra Mundial - Lincoln Secco

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Vá e veja...

O SENTIDO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Lincoln Secco

Professor de História - USP

Capa do livro "O Sentido da Segunda Guerra Mundial", de Ernest Mandel.

Capa do livro "O Sentido da Segunda Guerra Mundial" de Ernest Mandel, publicado pela Usina Editorial (2025).

No terceiro capítulo do Livro II da obra Da Guerra, Carl von Clausewitz define a guerra como algo que “constitui um conflito de grandes interesses, solucionado através do sangue”[1]. Clausewitz prossegue dizendo que ela deve ser comparada ao comércio, que também é um conflito de interesses e, mais ainda, à política. A única distinção consiste no uso da violência física.

Para que ela ocorra é necessário que haja um povo disponível para o sacrifício da vida no campo de batalha; um governo que estabeleça os objetivos políticos; e um terceiro elemento que é o jogo das probabilidades e do acaso em que a tática, as manobras no terreno de combate e a determinação das pessoas têm seu lugar. É o espaço indeterminado da história.

Embora implique o uso de meios técnicos e tenha objetivos previamente definidos, a guerra está longe de ser um ato puramente racional de governos. Nenhuma guerra se aproximou mais dos limites da violência do que a Segunda Guerra Mundial.

Em sua formidável síntese marxista do conflito[2], Ernest Mandel nos apresenta o processo histórico como um movimento de contradições. Assim, os interesses materiais são situados no interior do modo de produção capitalista e os acontecimentos são a forma exterior das lutas de classes.

O livro se divide em duas partes: cenário histórico; eventos e resultados. São abordadas as causas imediatas, as classes sociais, recursos, estratégia, armamentos, logística, ciência e administração, ideologia, a guerra de desgaste, a tomada de Berlim e as consequências do conflito mundial.

Sem a avaliação das forças militares e econômicas, os acontecimentos seriam simples acasos e sem a narrativa histórica a guerra seria apenas a contabilidade das armas. Se é verdade que a Alemanha tendia à derrota pela proporção das forças e das suas finalidades, Mandel não oculta que a Wehrmacht, detida na Batalha de Moscou, esteve bem próxima de vencer. Segundo Mandel “as derrotas sofridas no verão e no outono de 1941, e novamente na primavera de 1942, foram horrendas. A URSS chegou perto do colapso” (p. 85)[3].

A extensão das linhas de suprimento, os problemas logísticos, a subestimação do adversário, a surpresa do tanque soviético médio T-34 e a resistência indômita da população salvaram a humanidade. Ainda assim, mesmo após a Batalha de Moscou, o Exército alemão ainda era capaz de mudar a sorte da guerra. Vale a pena registrar a narrativa do autor porque ela é capaz de tratar da estrutura da guerra no Leste sem perder de vista a indeterminação dos acontecimentos. Depois de citar as vantagens materiais soviéticas (linhas de suprimento menores, o auxílio militar estadunidense, sobretudo em caminhões e tanques, as reservas alemãs cada vez menores e a fraqueza interna dos exércitos aliados do Eixo que contavam com romenos, húngaros e italianos), o autor ressalta a resistência popular. Afinal, foi ela que esgotou as reservas alemãs em Stalingrado[4]:

O Exército Vermelho tinha de fato começado uma operação de pinça dupla, a primeira – bem-sucedida – projetada para cortar as forças do 6º Exército alemão em Stalingrado, e a segunda – voltada contra o estuário do Don em Rostov – pretendia cortar todo o Grupo de Exército A alemão no Cáucaso. O último cerco falhou. Um milhão e meio de soldados alemães e seus aliados escaparam da aniquilação. Isso não se deveu apenas às manobras sem dúvida habilidosas de Von Manstein mas também à obstinada defesa do 6º Exército em Stalingrado por dois meses frente a grandes adversidades. Ao contrário de uma lenda espalhada pelos generais alemães, o marechal Tchúikov corretamente afirma que a determinação de Hitler de resistir em Stalingrado a qualquer custo não era tão irracional quanto parecia. 250 mil homens foram sacrificados para salvar mais de um milhão. 350 mil soldados soviéticos ficaram presos nos arredores de Stalingrado devido à resistência do 6º Exército; eles poderiam ter feito toda a diferença para a capacidade do Exército Vermelho de capturar Rostov rapidamente e cercar o Grupo de Exército A. (p. 106)

Ainda assim, o autor cita a superioridade de soldados e trabalhadores nos combates urbanos. Tratava-se, ali, também de uma guerra de classe: "embora seja verdade que os imperialistas alemães estavam saqueando outros países, tomando minas, fábricas e bancos de forma quase generalizada, essa transferência de propriedade afetava outros capitalistas. No caso da URSS, em contraste, as propriedades a serem saqueadas não eram capitalistas, mas de propriedade coletiva". (p. 83) E no caso da França, por exemplo, os próprios empresários tornaram-se clientes e colaboradores do governo nazista.

A escolha dos armamentos e da ofensiva ou defensiva explica-se à luz de interesses de classe. A Blitzkrieg não se devia apenas a novas armas. As unidades de blindados e a artilharia montada sobre caminhões permitiam batalhas ofensivas, mas era necessário decidir rápido por causa do alongamento das linhas de suprimento. E por sua vez a amplitude dos teatros de operações derivava da natureza imperialista da guerra.

A extração de mais valia pela burguesia alemã só podia crescer mediante insumos pilhados no exterior e força de trabalho escravizada no leste. Nos EUA, apesar do New Deal, havia de novo 12 milhões de desempregados em 1938 e uma capacidade ociosa na indústria que exigia encomendas militares e expansão dos mercados. O imperialismo japonês demandava matérias primas do continente asiático, assim como o inglês não aceitava a penetração rival em suas colônias. E a nenhum deles interessava uma Europa reduzida a fornecedora dos nazistas.

Relações internacionais não se explicam sem a História e as lutas de classes. A divisão do mundo pós-guerra resultou das conquistas territoriais do Exército Vermelho, mas também da ameaça da classe trabalhadora que não aceitava outro conflito para conter a URSS. Churchill e Roosevelt aceitaram os fatos, enquanto Stalin trocou, onde possível, novas revoluções por uma zona de influência.

Aquele mundo do pós-guerra, do multilateralismo e dos trinta anos gloriosos de crescimento esboroou. A globalização neoliberal empobreceu a classe trabalhadora e criou reservas de apoiadores do fascismo mais uma vez. Ataques tarifários, busca de autarquia, rivalidades interimperialistas e relações bilaterais nos lembram os prenúncios da Segunda Guerra Mundial.

Foi uma guerra de escala destruidora sem precedentes. Houve genocídio de judeus, eslavos e chineses em escala industrial, além dos assassinados por razões políticas e religiosas. Mas hoje se desenrola uma guerra na própria Europa; os israelenses realizam o genocídio do povo palestino e a ameaça de uma guerra nuclear paira como uma sombra ameaçadora.


[1]CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 127.

[2]MANDEL, Ernest. O Sentido da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Usina Editorial, 2025. Houve uma primeira edição pela Ática em 1986 publicada com o título: O Significado da Segunda Guerra Mundial.

[3]As páginas mencionadas entre parêntesis são da própria obra resenhada.

[4]Mandel não deixa de tratar de outros momentos cruciais da guerra como a Batalha da Grã-Bretanha, o ataque a Pearl Harbor, as batalhas de Midway e El Alamein, o desembarque em Casablanca/Argel, o desembarque em Guadalcanal, a Operação Overlord, o ataque a Arnhem e o avanço no Vístula. Além, é claro, do crime que foi o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão.

Resumo

Este artigo discute o livro de Ernest Mandel, O Sentido da Segunda Guerra Mundial. Argumenta que é uma leitura marxista do conflito que combina análise das estruturas sociais e econômicas e a narrativa dos eventos.

Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial; Marxismo; História Contemporânea

 
Abstract

This article presents Ernest Mandel's book The Meaning of the Second World War. It argues that the book offers a Marxist interpretation of the conflict, combining an analysis of social and economic structures with a narrative of the events.

Keywords: Second World War; Marxism; Contemporary History


Comitê de Redação: Eduardo Cação, Giovanna Herrera, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Fernando Ferreira, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola.
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