Memória operária...
UMA MEMÓRIA INDÍGENA DE ITAMBACURI (MG): DEPOIMENTO DE OZÓRIA FERREIRA SECCO
Lincoln Secco
Professor de História - USP
Monumento aos fundadores de Itambacuri, Frei Serafim e Frei Ângelo, na Praça dos Fundadores.
Dona Ozória deu esse depoimento em sua casa em Engenheiro Goulart, Zona Leste paulistana. Depois da entrevista, ela consultou sua irmã e informou que sua avó materna recebeu o nome de Francisca Rosa de Souza. Ozória nasceu em Itambacuri (MG) em 1938. Sua mãe, Salustiana, nasceu em 1902 em Teófilo Otoni (MG) e faleceu em 1985 em São Paulo.
Qual é o seu nome?
Meu nome é Ozória Ferreira Paulino, vou pôr o de solteira. Secco não. Meu pai era José Ferreira Paulino. Minha mãe era Salustiana Soares Pereira. Minha avó não conheci. Nem o avô. Minha mãe era filha de índio, daqueles pegados no mato mesmo. Já meu pai era de fora dos índios. Era “português” de cabelo pixaim. Minha mãe trabalhava pra padre. Ela ajudava a cuidar do índio pequenininho que pegavam pros padres criar. Depois iam crescendo. Na Igreja era cheio de índio. Aí iam pro mato fazer a casinha de sapé.
O que é sapé?
Sapé é um mato (risos). Que faz a cobertura. Agora não sei que nome eles dão porque muda tudo.
E era só a cobertura?
Não. A parede era feita de vareta cruzada rebocada com barro. Muitos punham sapé também, mas era mais em cima.
Qual o nome da sua avó?
Não lembro o nome dela. Nem perguntava também. Ela contava que os padres pegavam os índios. Ela veio pequenininha, era filha de índio, mas nasceu lá nas freiras. Meu vô era índio, o pai da minha mãe era índio. Minha mãe era filha de índio. Depois foi acabando, o índio foi saindo, misturava a raça, casava com brasileiro, os colonos. Muitos voltaram pra terra deles. Tinha um nome lá que eu não me lembro. Coité, eu acho que a mãe falava. Parece que era Coité.
E Poté?
Isso aí. Poté. Potén. A mãe falava Potén. Agora você diz que é Poté, não sei. Ela era descendente deles.
Os índios comiam o quê?
Comia o que plantava (risos). Mandioca, batata doce, banana é o que mais usava. E arroz feijão. Peixe. Lá os rio eram cheios de peixe. Agora não. Pegava até com a peneira assim. Piaba falava. Tinha as cavernas que é onde tirava pedra pra fazer anel, essas coisas. Tinha pedra lilás, pedra vermelhinha… Eles falavam que era tesouro, mas ninguém foi lá cavar, mas embaixo era cheio de água. Mas se mexesse na ribanceira achava. Era tudo pertinho de Itambacuri. Igreja Nova. Agora outro nome não lembro não. Foram saindo de lá. Todo mundo.
Nós moramos em Itambacuri, Igreja Nova, Janpruca, Pra esses lados aí. Aí meu pai tinha morrido. Eles falam dessa maconha aí, lá usava muito pra tratar de ferido. Ele morreu não foi de doença não. Ele foi pegar um boi novo grandão e o boi era bravo, quando ele foi ver os bezerros, o boi chifrou ele. A mãe diz que pôs as tripas dele pra dentro, amarrou com mato dentro, mas ele teve muita febre e morreu novo.
Aí fomos pra Frei Inocêncio. O pai tinha fazendinha, aí o dono de uma fazendona lá deu o dinheiro pro meu irmão Manoel vir pra São Paulo e disse pra minha mãe que comprou a terra. A mãe não quis ficar trabalhando pra ele. Ela era brava. Aí a gente foi embora. Foi trabalhar em outro lugar.
A mãe fazia farinha pro Chico Carrinho. Ele tinha sítio, tinha fazenda. Ele pagava. Pagava não, ele explorava os coitados, os colonos pra trabalhar pra ele. Pagava com a farinha. Dava um saco de farinha. A mãe fazia saco de pano. Não dava dinheiro. Eles punham num saco. Tinha balança. Pesava. Ele era pilantrão. Quando tinha colheita de feijão, ele pagava com a mesma planta.
Ele era muito ruim. Ele faltou respeito com a mãe. Um dia acho que ela estava fazendo beiju pra nós. Ele queria andar com minha mãe e ela xingou ele. Ele disse: “a gente dispõe do que tem”. A mãe foi trabalhar de lavar roupa. Eu fui morar em Governador Valadares. Foi quando o Mané foi lá. Esse meu irmão. Ele registrou todos nós. E fomos pra São Paulo. […].
Em São Paulo eu trabalhava numa fábrica no Brás como costureira. Aí eu machuquei o dedo. Um pedacinho só da ponta. O homem pagou. Aí o Mané recebeu a minha aposentadoria (indenização) e comprou uma casinha pra mãe na várzea lá no Itaim paulista. Mas comprou no nome dele.
Depois fui trabalhar em casa de família. Na rua Mauá. Um português de Jundiaí. Mas tinha loja no Bom Retiro. O Mané varria a rua. A dona Odete falou pra ele que precisava de alguém pra cuidar do filho dela. Eu fiquei cinco anos lá. Quando saí de lá o Pedrinho tinha sete anos. Era apegado em mim. Eu vinha pra madrinha e a Dona Odete falava pra eu levar comigo. Acho que eles queriam sair né? Naquele tempo elas confiavam na empregada. Trazia comigo no sábado. Eles pagavam direitinho.
Era na esquina da rua Mauá. Eu tinha amizade com o soldado Santos. Um dia eu passei lá (no quartel da Luz). Não precisava levar o menino. Estava com sete anos. Estava na escola. Eu era amiga, não namorava o Santos. Aí o seu pai estava lá e o Santos pediu pra ele me levar no Parque Dom Pedro. Aí no outro dia o Paulo disse que o Santos não estava. O Paulo me levou de novo. Aí seu pai disse que queria casar, que era sozinho. Aí eu também estava sozinha. Ficamos só seis meses juntos. E Casei. A Dona Miriam fez a gente casar. E o seu Alcides. Fizeram os papéis. O Mané não queria. Mas foi uma vida boa que eu tive com seu pai.
E os irmãos?
Tinha Francino, Mané, Nezinho era metalúrgico, perdeu o pulmão e se aposentou, eram em 12.
A Nair teve duas filhas: Vera e Maria. A Beata era minha irmã mais velha. Nunca mais vi. Ela casou e foi embora. Nem os meus sobrinhos eu conheci. Francisca morreu nova, tem uma que nasceu de cabeça d’água, só viveu seis anos. Chamava Clarice. A Faricila morreu afogada. Ela tinha aquele ataque epilético. Ela caiu de bruços na água rasinha. A Francisca morreu de febre. Valentim morreu novo. Deu barriga d’água. Tinha uns 15 anos. É doença de índio. A mãe que contava. Almerinda tinha entrado numa igreja e via Deus. O Mané levou no médico, falou que tinha a cabeça ruim e ela morreu no Franco da Rocha. A Nair foi levar em Minas o tio Severiano, que era amigo da minha mãe e ajudou a cuidar da gente. Muito católico. Na hora de vir embora o ônibus pegou ela lá.
E como era em Minas?
Os colonos chegavam. Os índios não trabalhavam pra eles. Índio é preguiçoso. Não gosta de trabalhar. Esses que chegavam lá, ensinavam os índios a trabalhar e eles trabalhavam junto.
Depois foi sumindo porque tinha que trabalhar o dia todo, roçar, capinar, plantar se quiser comer. E o índio não era acostumado. Muito também morreu. Eles saem do lugar deles e eles ficam doentes. Eu sei que os padres cuidavam. Os padres não eram ruins. Eles iam na roça. Tinha os capuchinhos que davam aula pra nós. Ensinavam a historinha de Jesus pra nós. Índio não falava a língua da gente. A mãe falava índio. É que aqui ninguém especulou com ela. Até ela morrer ainda falava meio enrolado que nem índio. A gente falava “O que a mãe tá falando?”. (Ela dizia) “Menina, a nossa língua é essa”. Ela falava índio sim, só que não ensinou pra nós não. Ela morreu com 96 anos e era lúcida. Pegava o trem e vinha aqui. Enxergava bem. Não usava óculos. Os índios tinham a vista boa. E a cabeça também. Eles não ficam velhos rápido não. A mãe tinha a cabeça boa e trabalhava. Aguentava.
Quem tomou a terra dos “índios”?
Não eram os padres não. Eram aqueles fazendeiros ricos que vinham tomar a terra. A terra já estava indo pra mão deles. A mãe conta que os padres iam contra eles. Que era pra deixar. Mas não mandavam. Os ricos é que mandavam. Os coronéis mandavam matar as pessoas. Eles falam “coronel”, aqueles ricaços lá. Hoje não tem mais. Acho que ainda tem alguns por aí. Mas naquele tempo não tinha jeito. No meu tempo não tinha polícia. Só o exército.
Eles sabiam quem era o presidente?
Sabiam. Eles não. Mas no meu tempo eu já sabia. Eu lembro do Getúlio Vargas. Fizeram propaganda dele lá em Minas. Ele era pequenininho né? Falavam “Getúlio Vargas é pequenininho, mas é macho”. Tinha música. Dele eu lembro, só que a gente não votava.
E as festas?
Festa de São João, Santo Antônio. A mãe ia com a Matilde e a Nair. Era longe. Ela dizia que a gente não aguentava. Lá eles vendiam pãozinho doce e ela trazia pra nós. A gente fazia novena quando estava esse calorão, tinha seca e não chovia. Lá em cima punham uma cruz grande e a gente subia com tigela de barro com água. Fazia isso sete dias e chovia. Os índios não iam. Eram poucos que iam. E estavam lá com os padres! Eles ficavam mais na deles. Eles acreditavam no Sol.
Os padres sabiam falar com eles. Mas eles não aprendiam a nossa língua. A mãe falou que eles não aprendiam a língua da gente. Falavam muito pouco. Enrolado. Até a mãe quase não falava a nossa. A mãe não falava direito. Falava enrolado. Até a gente perguntava por que ela falava assim e o meu cunhado Geraldo dizia que ela só fala a língua do índio. Ela não afeiçoou na nossa. Ela foi criada com os índios, então ela falava a língua deles. Depois aprendeu a nossa quando ela casou com meu pai. Não lembro como ele era. Quando ele morreu eu tinha cinco anos.
E os indígenas?
Depois eles fugiam. Aqueles que podiam fugir, fugiram. Não sei pra onde. Fugiam dos padres, da roça, acho que pra procurar os parentes. A mãe já veio nascida, foi criada lá […].
Eles não tiveram oportunidade. Naquela época travam eles como bichos, que nem os pretos. O preto era escravo. Os índios eram quase escravos. Só que a mata era deles, né? O padre foi que catou um pouco e trouxe. Mas eles tinham as tribos deles lá.
- Resumo
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O texto apresenta um depoimento de Ozória Ferreira Secco, nascida em Itambacuri (MG) em 1938, no qual ela resgata a memória de sua família, marcada pela ascendência indígena, e sua migração para a Zona Leste de São Paulo.
Palavras-chave: Itambacuri, Memória, Índigena.
- Abstract
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The text presents a testimony by Ozória Ferreira Secco, born in Itambacuri (MG) in 1938, in which she recounts the memory of her family, marked by indigenous ancestry, and their migration to the East Zone of São Paulo.
Keywords: Itambacuri, Memory, Indigenous.
Comitê de Redação: Eduardo Cação, Giovanna Herrera, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Fernando Ferreira, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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