A conjuntura...
ENSINO DE EXCEÇÃO NA USP
Lincoln Secco
Departamento de História - USP
“A tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança” (Rm., 5:3-4)
A Epidemia que nos assola em 2020 tem potencial e duração incertos, entretanto é provável que a nossa geração e talvez as mais novas vivenciarão uma revolução profunda, diferente das revoluções políticas que derrubam governos, mas semelhante àquelas que transformam o quotidiano, como as guerras mundiais ou o maio de 1968.
A mudança não necessariamente será para um mundo melhor e desde já intelectuais públicos discutem se haverá um aprofundamento das políticas neoliberais para cobrar os custos da recessão dos mais pobres; se na Europa o neofascismo vai liderar uma defesa regressiva do Estado, a permanência das técnicas policiais de confinamento e a vigilância permanente; se a sociedade vai exigir um novo Welfare State; se teremos, como na época da gripe espanhola, uma onda de greves e lutas sociais etc.
Retorno à normalidade pra quem
A única certeza que temos é que nenhum cenário está dado de antemão. O porvir depende das escolhas que faremos agora, embora elas sejam constrangidas pela correlação de forças sociais existente. É surpreendente ouvir de intelectuais admiráveis a expressão “inevitável” ou que estamos num momento excepcional que exigem medidas de “exceção”.
Público X Privado
Nas universidades públicas onde, malgré tout, as hierarquias são mais democráticas do que nas privadas, há uma profunda discussão sobre a substituição das aulas presenciais. Dou o exemplo do Departamento de História da USP, onde a chefia e a coordenação do curso não aceitaram de afogadilho outras maneiras de ensino. Elas sabem que nossos cursos são feitos com discussão conjunta de textos e livre troca de ideias. E isso extrapola a sala de aula, envolve reuniões, debates, grupos de estudos, vivência conjunta, o movimento estudantil e tantas outras coisas.
Ora, se tivéssemos que escolher uma única lição aprendida na nossa Faculdade de Filosofia é a de que a forma significa. E isso não é trivial. Um autor cuja citação se tornou condenável diria que a separação entre forma e conteúdo é meramente didática (Gramsci, Caderno VII, &21). Por trás do fetiche das técnicas (funciona bem? não funciona?), o processo de ensino-aprendizagem continua a ser uma relação social. E a forma que essa relação vai assumir tem significado em si mesma.
O Moloch mecânico de Fritz Lang sendo alimentado de alunos
Negociação
Não quero dizer com isso que não tenhamos que dar aulas à distância daqui a pouco por uma determinação administrativa; que retomar, sob uma epidemia, aulas de História com 100 ou mais alunos, em salas e anfiteatros sem janela, não seja insalubre no curto prazo (e era bom antes?); que orientar discentes em gabinetes minúsculos sem ventilação seja razoável. Mas até a tradição sindical, com todos os seus limites, nos ensina que é preciso resistir antes de negociar.
A nossa ausência em sala de aula não é uma fatalidade histórica. E se acontecer, será imprescindível um compromisso oficial da USP com o caráter transitório da nova modalidade de ensino. Nossas alunas e alunos deverão saber que haverá perdas irreparáveis.
Há uma diferença conceitual entre EAD e outras modalidades de ensino online. Mas ela não pode se reduzir a uma questão bizantina. Qualquer que seja o nome, agora a “coisa” é a mesma: substituição da aula presencial. Por isso é imperioso declarar que adotaremos o ensino remoto em caráter emergencial e sem a qualidade que uma Faculdade de Filosofia exige.
Para alguns, a normalização do ensino à distância nas faculdades privadas exige que a USP tome a mesma saída para não reforçar o estereótipo de que nossos campi são agregados de maconheiros e ociosos. Não acredito que possamos convencer fascistas nos igualando a eles.
Contra o cadeiraço da técnica-utilitarista, dos interesses individuais e dos grandes grupos econômicos
Aprendemos com a História que inovações surgidas em momentos excepcionais se rotinizaram: desde o zipper, o nylon e a comida enlatada até os computadores e a bomba nuclear. As medidas de exceção do Estado também podem se perenizar como advogava o jurista nazi Carl Schmitt.
Ao aderir individualmente ao ensino remoto para se livrar de nossas disciplinas e resolver nossos prazos pessoais favorecemos a ideia de tornar permanente a aula não presencial. O Governo de São Paulo irá considerar que o aumento de produtividade (a palavra é essa mesma) tornará supérfluos muitos docentes; e que nosso regime de dedicação exclusiva poderá ser revisto. E se a opção for individualista, tenhamos consciência de que sacrificaremos nossos colegas submetidos a contratos precários que dedicaram suas vidas à pesquisa e aguardam seus concursos.
Nossa tarefa primordial agora é cuidar-se; sobreviver física e psicologicamente; e esperar. Mas a nossa esperança não está num Deus ex machina. Muito menos num salve-se quem puder. Ela é aberta à mudança social e exige de nós o engajamento militante.
Desenho de Ciro Seiji, em Secco, L. História do PT, SP, Ateliê Editorial, 2011
Expediente
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