Ano 01 nº 42/ 2020: O Gato LIberal Subiu no Telhado (de novo) - Guilherme Nunes

boletim 42


A conjuntura ...

 

O GATO LIBERAL SUBIU NO TELHADO (DE NOVO)

 

Guilherme Machado Nunes

Doutorando em História - UFRGS

 

guedes-bolso

Colagem por Canellas

 

Desde seu nascedouro, o liberalismo se arvora o status de representante legítimo dos direitos mais lindos e essenciais da humanidade – afinal, quem poderia ser contrário à liberdade? Muitas pessoas (algumas até honestas) dedicaram sua vida intelectual a pensar e teorizar liberdades individuais, políticas e utilizaram variados preceitos dessa doutrina para combater, por exemplo, o Estado Absolutista e o Antigo Regime.

Esquece-se (ou ignora-se), contudo, que a liberdade fundamental é a de propriedade – inclusive a propriedade de seres humanos. John Locke, um dos principais e mais originais pensadores liberais, era investidor do comércio de escravos e ele próprio possuía alguns. Os EUA, em seu processo de independência (admiradíssimo por intelectuais como Hannah Arendt1), reivindicaram e se proclamaram herdeiros e o suprassumo terreno das ideias liberais – apesar de mais da metade do território não só manter como aumentar exponencialmente o uso da mão de obra escravizada. A Inglaterra, que ao longo do século XIX passa a combater o tráfico negreiro, fiscalizando o Atlântico e impondo restrições/leis para o Brasil (que, malandramente, engambelava os ingleses e seguiu com o tráfico a todo vapor até 1850), não via qualquer problema com a escravidão sulista estadunidense – era dali que vinha boa parte do algodão para as suas indústrias.

Isso não significa dizer Liberalismo = escravismo, e inclusive alguns bons liberais se opuseram à escravidão ao longo da história. Mas a questão principal é: escravidão e liberalismo nunca foram incompatíveis. Por mais revolucionário que possa ter sido no século XVIII, desde o século XIX o liberalismo, em suas mais diversas faces, é uma ideologia que oscila entre o conservadorismo e o reacionarismo.

Em Nuestra América, todos os processos de independências do século XIX tiveram nesses ideários – e no nacionalismo nascente/crescente – um sustentáculo fundamental. Ao mesmo tempo, o liberalismo foi fundamental na constituição dos Estados Oligárquicos e na consolidação do modelo agrário-exportador. No Brasil a coisa era ainda mais delicada: feita a independência em 1822, o país manteve a escravidão. Em 1831, pressionado pela Inglaterra, criou uma lei que proibia o tráfico – a partir dessa lei, claro, o tráfico AUMENTOU2 e só iniciou sua derrocada em 1850, com uma nova lei que dizia praticamente a mesma coisa que a lei de 1831.

O binômio liberalismo-escravismo ensejou uma discussão famosa na historiografia a respeito das “ideias fora do lugar”. Na época, havia intelectuais e políticos que se apoiavam no liberalismo europeu para advogar pelo fim da escravidão no país, enquanto que os escravistas rechaçavam-nas como “estrangeiras”. Em seu clássico ensaio, Roberto Schwarz expõe da seguinte forma o amalgama surgido da independência, dos ideais burgueses e da dependência do mercado externo:

Era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês a prioridade do lucro, com seus corolários sociais uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada. A prática permanente das transações escolava, neste sentido, quando menos uma pequena multidão. Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de idéias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles.3

Para o autor, a nova racionalidade econômica e os modos arcaicos de produção se chocavam naquela sociedade. O escravismo e o favor, as duas relações “que a colônia nos legara”, inviabilizariam o liberalismo em terras brasileiras.

O texto foi bastante criticado, e a crítica com a qual mais concordamos já está explicitada no início desse texto: a escravidão, por si só, não inviabiliza o liberalismo enquanto doutrina e sustentáculo de formação econômico-social. Maria Sylvia de Carvalho Franco sofistica essa crítica, associando-a à Teoria da Dependência:

Segundo ela, a caracterização que tal teoria faz da relação entre antigas metrópoles e colônias, os polos centrais e periféricos do capitalismo, como de oposição e até incompatibilidade – sugerindo-se, mesmo, que nas duas situações prevaleceriam diferentes modos de produção – inspiraria a formulação das "ideias fora do lugar".

Carvalho Franco, por sua vez, sustenta que centro e periferia fariam parte do mesmo modo de produção, favorecendo momentos diferentes do processo de constituição e reprodução do capital. Os dois pólos, entretanto, carregariam "o conteúdo essencial – o lucro – que percorre todas as [...] determinações” do capitalismo.4

O liberalismo, o positivismo, o republicanismo e o abolicionismo foram correntes de pensamento que cada vez mais ganhavam os debates públicos, ora formulando sínteses aplicáveis à realidade local, ora opondo-se umas às outras. De todo modo, em linhas muito gerais e esquemáticas, é possível pensar que, desde a década de 1870, todas elas contribuem para acabar com a monarquia: o abolicionismo (chamado de Revolução Abolicionista por Jacob Gorender,5 tamanha sua capilaridade e importância) pôs fim à escravidão; o republicanismo animava as camadas médias e/ou intelectuais e profissionais liberais, assim como o incipiente movimento operário brasileiro6; o positivismo e sua visão teleológica da história, aliado à crença exacerbada no progresso e, sobretudo, na disciplina, colonizou o imaginário das Forças Armadas brasileiras7; por fim, o liberalismo e suas ideias de que o Estado não deveria interferir na economia – sobretudo nas relações de trabalho – fez a cabeça da elite agrária brasileira, especialmente os fazendeiros de café, que percebiam na centralização do poder em torno do Imperador um empecilho aos seus interesses. Findada a monarquia e resolvido os imbróglios entre os militares, a partir de 1894 os fazendeiros conseguem instaurar um regime oligárquico.8

É claro que muitas vezes surgiram leituras, apropriações e sínteses muito sui generis ao longo dessa República. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR) se reivindicava fiel seguidor de Augusto Comte, utilizando o positivismo para justificar todas as suas ações de governo, inclusive a “incorporação do proletariado à sociedade moderna”. Ao mesmo tempo, a bancada gaúcha foi a mais radicalmente contrária às legislações sociais que passaram a ser discutida no parlamento ao longo da década de 1910, alegando que o Estado não deveria interferir nesse tipo de relação – que era uma relação livre.9

A parte final do argumento era mobilizada constantemente pelos fazendeiros e pela crescente burguesia industrial brasileira, que não poupou esforços para dissuadir o Estado de regular as relações capital-trabalho. Ao mesmo tempo, ambas as frações de classe recorriam ao Estado constantemente pleiteando isenções de impostos, de tarifas de importação e o perdão de dívidas.10

Independente da definição estrita que formulemos e de eventuais simpatias que se possa ter à ideia de liberdade, o liberalismo sempre foi mobilizado e esteve a serviços das oligarquias brasileiras. Essas oligarquias nunca possuíram um projeto nacional de desenvolvimento, e o plano sempre foi o mais simples possível, com raríssimas exceções: acumular o máximo, pagar o mínimo sem devolver nada,11 e quem se opor é contrário às liberdades humanas. Tanto que, quando das entranhas da própria oligarquia surgiu um homem com um plano de desenvolvimento capitalista para o país, que o tornasse menos dependente do mercado externo, precisou combater o liberalismo em todas as formas – inclusive políticas.

Estamos falando, claro, de Getúlio Vargas. Há enorme e qualificadíssima bibliografia sobre a Revolução de 30 – algumas já citadas aqui12 – e não é nossa intenção revisitá-la. No entanto, é importante pontuar o seguinte: o projeto de Vargas enfrentou oposição das oligarquias (sobretudo as frações agrárias) desde o início, mas não pelo crescente autoritarismo – foi a partir do Estado, inclusive, que vários setores do empresariado abraçaram o varguismo.13 As questões fundamentais eram a interferência e o intervencionismo na economia brasileira.

Ao longo de 1945, toda a oposição liberal ao desenvolvimentismo varguista se aglutinou na União Democrática Nacional (UDN), uma espécie de síntese de quase 150 anos de difusão e apropriação do liberalismo no Brasil: era democrática e legalista, mas articulava golpes sempre que perdia as eleições; era à favor das liberdades e contra o autoritarismo, mas teve exclusivamente militares concorrendo à presidência da República; era contra o “populismo”, mas apoiou Jânio Quadros etc.

Não deveria causar espanto que a UDN e muitos liberais brasileiros, como Roberto Campos, tenham apoiado o Golpe de 64. Por mais que muitos de seus porta-vozes tenham sido perseguidos posteriormente, como Carlos Lacerda, o grande empresariado brasileiro e seus intelectuais orgânicos aderiram ao novo regime e ocuparam espaços importantes na burocracia estatal da Ditadura – mesmo que a política econômica dos militares não possa ser chamada de liberal. Pelo contrário: especialmente a partir do ingresso de Delfim Netto no Ministério da Fazenda, em 1967, o que tivemos foi um desenvolvimentismo.14 De direita, mas desenvolvimentismo.

Talvez o caso mais emblemático seja o das empreiteiras que se tornaram verdadeiros monopólios com as obras de infraestrutura do período. Pedro Campos, ao estudá-las, aponta como as origens da Andrade & Gutierrez, em Minas Gerais, e Camargo Corrêa, em São Paulo, remetem a grandes famílias tradicionais ligadas ao café nesses estados.15 Remetem às oligarquias ditas liberais, portanto.

No início da década de 1980, a conjuntura internacional se alterou, o “milagre” começou a fazer água e o Brasil viu a inflação e a sua dívida externa atingirem valores estratosféricos. Diante da iminente debacle do regime, a inteligentsia liberal foi muito hábil para se descolar dos aliados de outrora. No final do Governo Geisel e ao longo do governo Figueiredo forja-se um novo consenso em torno do receituário neoliberal,16 segundo o qual o problema da Ditadura foi a excessiva interferência que restringiu as liberdades civis. Não necessariamente as liberdades políticas e individuais, mas, sobretudo, as liberdades econômicas: a Ditadura inchou o Estado, transformando-o em um elefante gigantesco e inconveniente, conforme explicitava a campanha de Fernando Collor à presidência da República, em 1989.17

E chegamos, enfim, ao nosso tempo. No calor da escalada golpista, em outubro de 2015, o PMDB destampou o esgoto ultraliberal com seu histórico documento Uma ponte para o futuro, que trazia consigo a proposta de destruição de diversos direitos sociais históricos brasileiros, com especial destaque para a previdência e a CLT.

Veio o golpe, e com ele, o governo Temer. A partir desse momento presenciamos um esforço hercúleo dos monopólios midiático-empresariais para dourar a pílula. Enquanto a popularidade de Michel Temer despencava e tornava-se quase tão baixa quanto um PIB pauloguedista, os meios de comunicação seguiam blindando-o e enaltecendo a Lava Jato – e, consequentemente, atingindo o Partido dos Trabalhadores. Talvez o ápice desse arranjo tenha sido a surreal entrevista do Roda Viva [sic] no Palácio da Alvorada, que pode ser resumida em toda a sua sabujice na pergunta de Ricardo Noblat, jornalista de O Globo: “Como você conheceu a Dona Marcela?”18

O liberalismo de Temer entregou metade do que prometeu: reduziu o Estado e sua capacidade de investimento, mutilou a CLT e liberou a terceirização. O crescimento prometido, a diminuição do desemprego e o aumento da fada da confiança (esse ser místico, que vive ao lado dos investidores estrangeiros que estão “prontos para investir no Brasil”, mas não o fazem por medo da burocracia) ficariam para depois. Seria preciso alguém MAIS liberal para desatar as últimas amarras que impediam o Brasil de decolar.

No entanto, para seguir com a agenda Temer, já desgastada, seria preciso aliar-se a alguém que em nada lembrasse o então presidente. E quem esteve disposto a abrigar e a tocar a agenda econômica dos liberais – como é bastante corriqueiro ao longo da história – foi um fascista. Ao longo de toda a campanha eleitoral e ainda hoje, há quem tente se desvencilhar do bolsonarismo, criando e se atribuindo e alcunha/identidade de pauloguedista ou coisa que o valha. Esquecem, curiosamente, que na fatídica e surreal reunião do dia 22 de abril, mesmo com Salles, Weintraub e Damares, Bolsonaro afirmou categoricamente: Guedes é o ministro com quem menos se desentende.

Agora que – surpresa! – a agenda econômica segue empacada, contrariando todos os “analistas” da grande imprensa e confirmando todas as previsões econômicas sérias, alguns ratos começam a abandonar o navio. O pibinho pré-pandemia foi um indicador importante, e a destruição da Amazônia já gerava impactos na balança comercial brasileira devido a sanções comerciais.19 Com as políticas pró-vírus e o genocídio em curso no Brasil, era questão de tempo até que exportássemos carne contaminada, como aconteceu nesse dia 13 de agosto, colocando todas as exportações brasileiras sob suspeita e, possivelmente, aumentando a coleção de sanções adquiridas pelo Governo Bolsonaro.

No dia 12 de agosto, o gato começou a subir no telhado: duas figuras importantes da equipe de Paulo Guedes foram embora em um movimento chamado de “debandada” pelo chefe da pasta.20 Não parece fortuito que os debandados fossem Salim Mattar, secretário especial de desestatização, e Paulo Uebel, responsável pela secretaria especial de desburocratização. Desestatização e desburocratização.

Os liberais, como é de praxe, estão saltando fora. Embora estejam traindo os compromissos assumidos, vão alegar que, eles sim, foram traídos, e que na verdade o que tivemos no Brasil não é um liberalismo verdadeiro. E eles podem contar, como sempre, com os seus porta-vozes que já estão chamando Bolsonaro de desenvolvimentista.21 Vera “uma escolha muito difícil” Magalhães vai mais longe: chama o homem que bateu continência para civis estadunidenses, permitiu bases militares dos EUA no país e disse para o presidente Donal Trump “I Love You” de NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA.22

O roteiro conhecemos bem. Não há nada de errado com a ideia, ela foi mal interpretada e usada durante a independência, depois durante o Império e ao longo da República foi seguidamente traída por homens maus – quando o liberalismo foi emparedado, foi por um “caudilho”, um “populista”, um “demagogo”. E agora, mais uma vez, após apoio maciço de todos os think thanks (ultra)liberais, da imprensa e do “mercado” ao projeto em curso desde 2016, após a destruição do Estado brasileiro e da Constituição de 1988, novamente chegou-se à conclusão de que infelizmente o que temos não é liberalismo. Tudo para esconder o que já estava evidente desde o Império: no Brasil, barbárie e liberalismo sempre andaram muito bem juntos.

 

1ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

2Ver, por exemplo: RODRIGUES, Jaime. O Tráfico de Escravos para o Brasil. São Paulo: Ática, 1997; CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

3SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. IN: ______. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992, p. 3.

4RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as "ideias fora do lugar". IN: Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008.

5GORENDER, Jacob. A Escravidão Reabilitada. São Paulo: Editora Ática, 1990. Especialmente capítulo 9: A Revolução Abolicionista.

6Ver, por exemplo: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Evaristo de Moraes, tribuno da República. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

7CASTRO, Celso. Os militares e o Golpe de 1889: um estudo sobre cultura e ação política. IN: XIX Encontro Anual da Anpocs, 1995. Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/19-encontro-anual-da-… Acesso em 13 ago 2020.

8CARONE, Edgard. A Primeira República. São Paulo: DIFEL, 1974.

9Muito se escreveu sobre isso. Ver, por exemplo: GOMES, Angela Maria de Castro. Burguesia e trabalho: Política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio de Janeiro: Campus, 1979; PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Que a união operária seja nossa pátria: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS / Santa Maria: Ed. da UFSM, 2001; NUNES Guilherme Machado. “A Lei de Férias no Brasil é um aleijão”: greves e outras disputas entre Estado, trabalhadores/as e burguesia industrial. Dissertação (Mestrado em História) Porto Alegre: UFRGS, 2016.

10VIANNA, Luiz Jorge Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

11Claro que havia eventuais melhorias em infraestrutura patrocinada por essas elites, mas que visavam, em última instância, seu benefício próprio (talvez o maior exemplo sejam as ferrovias e as reformas dos portos brasileiros).

12Como adicional, indicamos apenas: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção (1906-1954). São Paulo: Brasiliense, 1987.

13VIANNA, Op. cit.

14FONSECA, Pedro C. D. Origens e percursos do desenvolvimentismo no Brasil. IN: Pesquisa & Debate, PUC-SP, Volume 15, n. 2 (26), pp. 225-256, 2004.

15CAMPOS, Pedro H. P. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a Ditadura civil-militar (1964-1988). Rio de Janeiro: Eduff, 2015.

16MACIEL, David. A argamassa da ordem – Da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). São Paulo: Xamã, 2004.

18Para uma análise do programa, ver: https://www.brasildefato.com.br/2016/11/15/opiniao-or-temer-escapa-da-r…. Acesso em: 13 ago 2020.

 


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