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A TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL E A OBRA “A MULHER NA SOCIEDADE DE CLASSES” DE HELEIETH SAFFIOTI: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES
Maria Bellotti
Graduando em Ciências Sociais - UNICAMP
Fonte: https://marxismo21.org/heleieth-saffioti-marxismo-genero-e-feminismo/
Heleieth Saffioti foi uma socióloga brasileira pioneira nos estudos de gênero com perspectiva socialista, resistiu à ditadura militar no Brasil e deixou como um de seus legados uma impressionante tese de livre-docência orientada pelo professor Florestan Fernandes, obra em que a estudiosa trabalha para vincular a condição das mulheres no Brasil com as determinações da sociedade de classes, ela coloca nas primeiras linhas de sua introdução:
Este estudo visa a apreender os mecanismos típicos através dos quais o fator sexo opera nas sociedades de classes de modo a alijar da estrutura ocupacional grandes contingentes de elementos do sexo feminino. Visa, ainda, a desvendar as verdadeiras raízes deste alijamento justificado ou em termos de uma tradição conforme a qual à mulher cabem os papéis domésticos ou, de maneira mais ampla, todos aqueles que podem ser desempenhados no lar, ou por teorias cujo conteúdo explicita pretensas deficiências do organismo e da personalidade femininos.[1]
O objetivo desse ensaio é a retomada dessa obra clássica do pensamento social brasileiro através de sua aproximação à Teoria da Reprodução Social (TRS), corrente teórica contemporânea do pensamento marxista. A Teoria da Reprodução Social é um esforço por uma teoria unitária que dê conta de explicar as relações de exploração e opressão como parte de um mesmo modo de produção capitalista em sua totalidade; que revele como os processos de acumulação produziram (e reproduzem) relações historicamente hierárquicas. Na obra Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária (2022), Lise Vogel lança as bases teóricas para o que hoje conhecemos como Teoria da Reprodução Social e, na introdução do livro, descreve suas intenções da seguinte forma:
Este livro constitui um argumento sobre o poder do marxismo para analisar as questões que as mulheres enfrentam atualmente em sua luta por libertação (...) o texto argumenta que a tradição socialista é profundamente falha, que nunca abordou adequadamente a questão das mulheres, mas que o marxismo pode, no entanto, ser utilizado para desenvolver um quadro teórico no qual possam ser situados os problemas da opressão às mulheres e da sua libertação[2]
Em relação aos debates feministas, a obra, publicada pela primeira vez em 1983, está situada postumamente ao aquecido Debate sobre o Trabalho Doméstico que ocorreu entre as décadas de 60 e 70. Nesse momento, o feminismo-socialista olhava para a família e para o trabalho doméstico não-remunerado como chaves para a opressão da mulher e levantou questões como: Qual será o status teórico desse trabalho doméstico? É trabalho? Produtivo ou improdutivo? Poderia ser assalariado? e etc. Entretanto, na percepção de Vogel, nenhuma das teóricas por ela citadas (Benston, Morton, Mitchell, Dalla Costa, entre outras) conseguiram resolver essas questões adequadamente, especialmente no que diz respeito à situar o trabalho doméstico dentro do universo categorial marxista.
A ideia de que o trabalho doméstico cria valor, assim como valor de uso, sugeriu para algumas teóricas, por exemplo, que ele poderia ser categorizado, em termos marxistas, como produtivo ou improdutivo, ou seja, produtivo ou improdutivo de mais-valia para a classe capitalista. Para aquelas que argumentaram que o trabalho doméstico apenas produz valores de uso, nenhuma categoria marxista óbvia estava à mão. Nem produtivo nem improdutivo, o trabalho doméstico tinha que ser alguma outra coisa.[3]
A tentativa de atribuir valor ao trabalho doméstico apresentou uma série de dificuldades teóricas, mas, segundo Vogel, em alguns anos de debate: “foi relativamente fácil demonstrar teoricamente que o trabalho doméstico nas sociedades capitalistas não assume a forma social de trabalho produtor de valor”[4], contudo, seu status teórico continuou sendo uma difícil questão. Isso motivou uma tendência dentro da teoria feminista de recorrer a sistemas duais; entendendo que as categorias marxistas não seriam suficientes para tratar da questão da mulher, esses assuntos passaram a ser discutidos sob o conceito de “patriarcado”. O que propõe Lise Vogel, nesse contexto, é a elaboração e ampliação da teoria marxista para que possa dar conta dos problemas de opressão.
A autora reconhece as importantes contribuições do feminismo-socialista, principalmente no que diz respeito ao esforço enfatizar as raízes materiais da opressão às mulheres. No entanto, entre às críticas desenhadas no livro, destaca-se que:
a teoria feminista-socialista não foi capaz de desenvolver uma base teórica para o seu compromisso estratégico de unir as mulheres por meio de diferenças tais como classe, raça, idade e orientação sexual [5]
Esse problema se relaciona com a dificuldade de desenvolver uma base teórica que trate dos processos de reprodução social em geral, ampliando o olhar em relação à questão somente do trabalho doméstico não-remunerado. Sendo essa uma questão que tende a partir da experiência específica de mulheres brancas e de classe média/alta, visto que as mulheres não-brancas foram historicamente responsabilizadas pelo trabalho doméstico de outras famílias, comumente exercendo essa tarefa enquanto trabalho remunerado, nem sempre foi feita a importante diferenciação entre trabalho doméstico remunerado e não-remunerado, consequência da falta de atenção à experiência das mulheres de classe trabalhadora e racializadas.
Enfim, Vogel resume esse debate apontando para duas correntes teóricas, essencialmente contraditórias, que dividem as abordagens socialistas sobre a Questão da Mulher, a “perspectiva dos sistemas duplos” e a “perspectiva da reprodução social”:
Por um lado, está a “perspectiva dos sistemas duplos”: a opressão às mulheres deriva de sua situação dentro de um sistema autônomo de divisões sexuais do trabalho e de supremacia dos homens. Por outro lado, está a “perspectiva da reprodução social”: a opressão às mulheres tem suas raízes na posição diferencial das mulheres dentro da reprodução social como um todo[6]
Fazem parte do primeiro grupo as teóricas que enxergam a opressão às mulheres como um sistema a parte, muitas vezes reconhecido como patriarcado, que opera de forma autônoma ao modo de produção; “de acordo com a teoria implícita na perspectiva dos sistemas duplos, dois motores poderosos impulsionam o desenvolvimento da história: a luta de classes e a luta entre os sexos”[7], Vogel é crítica dessa visão e explica:
Enquanto a perspectiva dos sistemas duplos começa com fenômenos empiricamente dados cujas correlações são interpretadas por meio de uma cadeia de interferências plausíveis, a perspectiva da reprodução social parte de uma posição teórica - isto é, que a luta de classes em torno das condições de produção representa a dinâmica central do desenvolvimento social em sociedades caracterizadas pela exploração.[8]
Como destacado, na perspectiva da reprodução social, é o desenrolar da luta de classes que determina o desenvolvimento social e, portanto, o modo como se organiza a reprodução social em sociedades caracterizadas pela exploração. Estando dado que a reprodução da força de trabalho é condição básica para a acumulação de capital, considera-se que as disputas históricas ao entorno de como se organiza essa reposição da força de trabalho é o que condiciona o modelo de reprodução social no capitalismo contemporâneo.
Em resumo, o modo como a sociedade constrói a diferenciação entre sexos que condiciona a possibilidade de se gerar filhos é origem de uma contradição para a classe dominante; ao mesmo tempo em que é imprescíndível a reprodução da força de trabalho, todo o trabalho envolvido nessa reprodução (trabalho reprodutivo) condiciona que as mulheres (normalmente responsáveis por essas tarefas) tenham menos força de trabalho disponível para o trabalho produtivo do qual se extrai a mais-valia. Assim, a mulher é subordinada a um papel específico não só dentro da família, na esfera de reprodução, mas também em relação a sua possibilidade de participação nos processos produtivos, essa é a raiz de sua opressão. Vogel diz: “As diferenças biológicas constituem a pré-condição material para a construção social das diferenças de gênero, bem como um fator material direto na posição diferencial dos sexos em uma sociedade”[9], observando que não é sobre a diferença biológica em si, mas sim sobre os significados históricamente atribuídos a elas.
Agora sobre a obra de Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de classes - Mito e Realidade (2013), o caminho percorrido pela socióloga é bastante distinto em relação à obra de Lise Vogel. Saffioti não parte do Debate sobre o Trabalho Doméstico e também não tem a Reprodução Social como centro do seu argumento. A princípio, o fio-condutor de sua análise é a categoria Trabalho, observando o cruzamento de Trabalho com o “fator sexo”, ela busca desvendar a posição que as mulheres ocupam na “totalidade dialética sociedade capitalista”:
Sendo o trabalho o momento privilegiado da práxis por sintetizar as relações dos homens com a natureza e dos homens entre si, constitui a via por excelência através da qual se proceder ao desvendamento da verdadeira posição que as categorias históricas ocupam na totalidade dialética sociedade capitalista[10]
Saffioti dirige sua análise para o exame dos “papéis femininos” no capitalismo e, olhando para a participação das mulheres na estrutura ocupacional, observa que as mulheres são marginalizadas das relações de produção, pois “sexo”, assim como “raça”, opera como marcador social de hierarquização. A explicação para esse fenômeno de hierarquização, de acordo com ela, deve ser buscada nas primeiras relações de produção:
Mesmo que, aparentemente, determinado contingente populacional seja marginalizado das relações de produção em virtude de sua raça ou de seu sexo, há que se buscar nas primeiras (relações de produção) a explicação da seleção de caracteres raciais e de sexo para operaram como marcas sociais que permitem hierarquizar, segundo uma escala de valores, os membros de uma sociedade historicamente dada.[11]
A princípio, a autora entende que nas sociedades pré-capitalistas a mulher desempenhava papel economicamente relevante no sistema produtivo, com o desenvolvimento do capitalismo, no entanto, as tarefas “subsidiárias” tradicionalmente relegadas às mulheres foram marginalizadas do sistema produtivo.
O modo capitalista de produção não faz apenas explicitar a natureza dos fatores que promovem a divisão da sociedade em classes sociais; lança mão da tradição para justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos setores da população do sistema produtivo de bens e serviços. Assim é que o sexo, fator de há muito selecionado como fonte de inferiorização social da mulher, passa a intervir de modo positivo para a atualização da sociedade competitiva, na constituição das classes sociais [12]
Com isso, Saffioti argumenta que as mulheres passam a sofrer uma “desvantagem social de dupla dimensão”, a tradição que responsabiliza a mulher pelas tarefas domésticas (não produtivas no contexto capitalista), justifica sua exclusão das funções produtivas conforme o desenvolvimento do sistema capitalista de produção:
No processo de individualização inaugurado pelo modo de produção capitalista, ela contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da ordem social que a gerara; no plano estutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de produção[13]
Adiante, Saffioti comenta também que a inferiorização da mulher se torna uma forma de aumentar a exploração de mais-valia de trabalhadoras mulheres, aumentando o lucro dos empregadores: “O caráter submisso que há milênios as sociedades vinham moldando nas mulheres facilitava enormemente a elevação do montante de seu trabalho excedente”[14]. Pode se dizer, então, que em seu enquadramento teórico a socióloga entende que a economia capitalista se aproveita de uma determinação “sexo” e de uma tradição de infeorização da mulher presente nas sociedades pré-capitalistas, se distanciando aqui de uma teoria unitária, ao recorrer a uma análise mais funcionalista. Para a autora, a capacidade limitada da economia de absorver a força de trabalho disponível na sociedade é um fator determinante exclusão das mulheres no sistema produtivo;
Como o sistema capitalista de produção é incapaz de absorver a mão de obra potencial (...) lança mão de fatores de ordem natural a fim de, simultaneamente, manter seu padrão de equilíbrio, instável e contraditório, alijando força de trabalho do mercado, e justificar a marginalização de enormes contingentes femininos da estrutura de classes através das funções de reprodutora e de socializadora[15]
Ela chega a essa determinação a partir da análise de uma coletânea de dados em relação à participação menor ou maior das mulheres no sistema produtivo (nos empregos remunerados), produzindo uma descrição empírica que qualifica o trabalho feminino em diferentes países e em diferentes momentos históricos. Nesse empreendimento, Saffioti procura fazer comparações entre o Brasil e países de economia capitalista mais desenvolvida e justifica:
essa escolha possibilita não apenas a retenção das determinações essencias do sistema capitalista de produção sob as formas por ela assumidas nas diferentes atualizações históricas singulares desse sistema produtivo, como também porque permite a apreensão de certas invariânças na elaboração social do fator sexo[16]
Um exemplo desse movimento argumentativo é sua análise da Suécia. Saffioti percebe que, apesar de ser um país reconhecidamente avançado em questões de direito reprodutivo e planejamento familiar, a porcentagem de mulheres entre 15 e 60 anos de idade desenvolvendo atividades produtivas na Suécia era menor, em 1950, do que essa mesma taxa na França, Estados Unidos e Inglaterra, países considerados mais conservadores no que diz respeito à políticas que permitam autonomia à mulher. Esse dado faz com que se conclua que as necessidades do Capital e da economia de um país são mais importantes para a determinação da vida das mulheres do que condições de vida que ampliem sua autonomia, como os anticoncepcionais, disponibilidade de creches, possibilidade de divórcio, etc.
Evidentemente, o controle da natalidade e a organização de serviços de restaurante e de escolas maternais podem criar as pré-condições para o trabalho feminino fora do lar. O decisivo para a atualização desse trabalho extralar, todavia, é a capacidade de absorção de mão de obra da estrutura organizacional (...) As facilidades sociais que criam as condições para o trabalho feminino variam, nos países com exesso de mão de obra, em função das necessidades da estrutura econômica, o que coloca a economia como o fator, em última instância, determinante[17]
Pensando agora nas aproximações possíveis entre a obra de Saffioti e a Teoria da Reprodução Social, é interessante ressaltar em primeiro lugar as preocupações e o contexto de cada autora. Vogel procura “desenvolver um quadro teórico no qual possam ser situados os problemas da opressão às mulheres e de sua libertação”[18], através da ampliação da teoria marxista. Saffioti quer encontrar “os mecanismos típicos através dos quais o fator sexo opera nas sociedades de classe de modo a alijar da estrutura ocupacional grandes contingentes de elementos do sexo feminino”[19]. O modo como as autoras formularam seu problema de pesquisa nos diz muito, Saffioti coloca desde o início a participação das mulheres na estrutura ocupacional como o centro da questão e isso caracteriza sua abordagem à opressão da mulher, ela faz uma pesquisa analítica pensando a condição da mulher na sociedade de classes, procurando entender quais são as determinações impostas pelo “fator sexo”. Enquanto isso, Vogel já tem como ponto de partida a crítica a uma tradição teórica do feminismo-socialista, ela escreve posteriormente ao Debate sobre o Trabalho Doméstico, e sua obra é essencialmente uma discussão teórica. Aqui, o que as autoras têm em comum é a intenção de explicar a opressão da mulher no capitalismo a partir de uma base metodológica marxista.
Com a categoria Reprodução Social, Vogel propõe uma ruptura epistemológica, pois consegue olhar para a reprodução da classe trabalhadora para além do trabalho doméstico não-remunerado. Saffioti não tem essa mesma intencionalidade de crítica à uma tradição teórica já estabelecida, mas seu olhar para a condição da mulher na sociedade de classes também difere do feminismo-socialista criticado por Vogel, a teórica tem um olhar amplo no que se refere ao trabalho das mulheres e consegue reconhecer, por exemplo, a importância do trabalho doméstico remunerado no Brasil e os atravessamentos de raça envolvidos nessa questão.
Além disso, ela faz referência ao trabalho reprodutivo da mulher e enfatiza sua importância para manutenção da força de trabalho: “o trabalho não pago que ela desenvolve no lar contribui para a manutenção da força de trabalho tanto masculina quanto feminina”[20]. Nesse momento, ela procura demonstrar que a opressão das mulheres não se trata de uma “luta entre os sexos” e que a exploração maior da mulher se converte em benefício para o capital, não para os homens. Contudo, em outro contexto, ela faz o argumento contrário; Em uma retomada do pensamento socialista de seu tempo, ela pondera que a maternidade tem características muito diferentes do que a relação trabalho:
Que a maternidade seja onerosa é indubitável; é duvidoso, entretanto, que ela possa ser considerada um trabalho. Ao trabalho, a mulher se submete pela imposição de suas condições, determinadas estas, em última instância, pelas leis que regem o modo de produção. (...) A ele [trabalho], a mulher se submete porque é a garantia de sua subsistência; na maternidade ela corre risco de vida e põe em jogo seus valores últimos enquanto ser humano e enquanto sexo. A sociedade pode exigir de cada um segundo suas capacidades, tornando o trabalho obrigatório para todos os seus membros; não pode, porém, obrigá-los a exercitar sua sexualidade, condição de sua reprodução. O trabalho é passível de racionalização e pode ser organizado segundo um plano de elevação de sua produtividade; a sexualidade é, por natureza, o oposto da padronização[21]
Pode se dizer que, no mínimo, a autora é relutante em chamar as atividades reprodutivas de trabalho, no entanto, o que a TRS entende por trabalho reprodutivo não equivale à “maternidade” e Saffioti não chega, nessa obra, a fazer uma análise específica do trabalho reprodutivo enquanto categoria ou em relação à algum conceito correspondente. Ela enxerga, sim, a importância da reprodução da classe trabalhadora e pensa também sobre o impacto das tarefas domésticas sob a possibilidade de participação das mulheres na estrutura ocupacional, se aproximando do entendimento da TRS, mas não constrói um quadro explicativo único que reúna essas questões.
É possível, então, desenhar como hipótese que as oscilações da autora no que diz respeito a defesa de um sistema dualista estão associadas ao entendimento do “papel reprodutivo” como algo inerente à mulher (não por natureza, mas por tradição) e dessa característica, então, se aproveita o capital. Por vezes, ela gera uma explicação dual associada ao entendimento de um “papel tradicional do sexo feminino” ou “condição existencial da mulher”: colocando de um lado a tradição patriarcal, de outro a exploração do capital. Mesmo o uso da ideia de “maternidade” para pensar o trabalho reprodutivo reforça essa tendência e sugere que essa seria uma atividade própria das mulheres. A determinação sexo, para ela, opera de acordo com o modo de produção, mas existe externamente à ele; por mais que afirme se tratar de um significado social atribuido ao feminino, ela entende a “condição singular da mulher” como um problema separado e o relaciona à um “papel tradicional do sexo feminino” que vem de sociedades pré-capitalistas.
Apesar dessas oscilações, em suas conclusões Saffioti parece tender a uma explicação unitária; ela demonstra como o modo de produção capitalista transforma a possibilidade de se gestar (“condição singular da mulher”) em uma contradição a ser resolvida e determina não só os trabalhos dentro do lar, mas a participação das mulheres nas atividades produtivas, indo ao encontro do quadro explicativo proposto por Lise Vogel:
há, na condição existencial da mulher, outros elementos cuja interferência no setor ocupacional a torna uma trabalhadora especial, não redutível ao trabalhador masculino (entenda-se a redução meramente enquanto pessoas que executam trabalho). Como nem o pleno emprego nem a socialização total dos custos da maternidade são compatíveis com uma economia sujeita a crise cíclicas de superprodução e à apropriação privada do excedente econômico, a condição singular da mulher não pode deixar de intervir negativamente na sua vida de trabalhadora nas sociedades capitalistas.[22]
Isso posto, pode-se dizer que a grande contribuição de Saffioti com essa obra para o entendimento da reprodução social está na base analítica que ela constrói para pensar a posição social da mulher no Brasil. No capítulo Posição Social da Mulher na Ordem-escravocrata-senhorial e suas Sobrevivências na Sociedade Atual, a socióloga brasileira constrói uma descrição do que ela considera a situação da mulher no Brasil escravocrata-senhorial, que pode ser lida como uma descrição da organização da reprodução social nesse regime.
As relações entre o sexos e, consequentemente, a posição da mulher na família e na sociedade em geral, constitui o impasse de um sistema de dominação mais amplo assim sendo, o exame do tópico enunciado exige que se caracterize a forma pela qual se organizava e distribuiu o poder na sociedade escravocrata brasileira, época em que se formaram certos complexos sociais justificados hoje em nome da tradição. À luz dessa Tradição procurar-se-á encontrar explicações para a vigência, ainda hoje, dos mitos e preconceitos através dos quais a sociedade atual tenta justificar a exclusão da mulher de determinadas tarefas e mantê-la, assim, no exercício quase exclusivo de seus papéis tradicionais e das ocupações reconhecidamente femininas.[23]
Ela faz essa retomada histórica com a intenção de entender as permanências dessa ordem na sociedade atual e, ao pensar nos papéis da mulher negra escravizada, encontra uma forma complexa de reprodução social; as mulheres escravizadas cumpriam os mesmos trabalhos produtivos dos homens, mas também as funções não-produtivas nos lares das famílias brancas, sem contar a jornada de trabalho reprodutivo realizada nas suas próprias famílias e na comunidade de escravizados: “Na medida em que a exploração econômica da escrava consideravelmente mais elevada que a do escravo, por ser a negra utilizada como trabalhadora e como reprodutora de força de trabalho”[24]. A autora observa também o papel imprescindível que as mulheres brancas cumpriam na organização das atividades domésticas e, portanto, na manutenção do regime vigente, demonstrando uma articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo.
Em outro momento, observando as ocupações das mulheres em diferentes países ela faz a análise que:
Embora muitos países subdesenvolvidos apresentam elevada taxa de utilização de mão de obra feminina, grande parte dessa força de trabalho efetiva localiza-se em funções não produtivas (por exemplo, os serviços domésticos remunerados), permanecendo, portanto, a margem do sistema produtivo de bens e serviços da sociedade de classes[25]
Esse é outro exemplo de um dado importante para o entendimento de como se organiza a reprodução social sob o capitalismo, demonstrando contribuição importante para a Teoria da Reprodução Social. Enfim, na Conclusão do livro, ela faz observação sobre seu estudo que, no meu entendimento, vai no sentido também de uma teoria unitária e ilustra sua compreensão complexa das questões de opressão, que não está limitada a uma análise economicista ou funcionalista, ela diz:
paralelamente ao processo de seu desenvolvimento social e econômico, a sociedade competitiva vai refinando suas técnicas sociais de modo a induzir seus membros a atuar segundo as necessidades do sistema como um todo, invocando, para isso, cada vez mais, não fatores de ordem natural, mas razões de natureza social, ou seja, as funções que a cada um cabe desempenhar para a harmonia do conjunto orgânico no qual se inserem [26]
Enfim, Saffioti se consolida enquanto grande nome do pensamento social brasileiro e da sociologia do trabalho, não estando limitada ao campo de estudos de gênero. A autora traz contribuições para a ampla compreensão do funcionamento da sociedade brasileira e para o pensamento marxista, rumo a uma teoria unitária, que enfrente o desafio de: “entender como a dinâmica de acumulação de capital historicamente produziu e continua a produzir, reproduzir, transformar e renovar relações hierárquicas e opressivas como um pressuposto de sua existência”[27]. Destaca-se, por fim, que esse estudo faz referência apenas à obra publicada no início da carreira de Saffioti, a autora chegou a elaborar a teoria exposta em sua tese de livre docência em diversas publicações sobre a condição da mulher e as relações entre gênero, raça e classe no capitalismo, onde apresenta seu conceito de Nó Ontológico.
[1]SAFFIOTI, 2013, p.37
[2] VOGEL, Lise. Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária. [S. l.]: Expressão Popular, 2022, p. 107
[3] VOGEL, Lise. Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária. [S. l.]: Expressão Popular, 2022, p. 139
[4] Idem, p. 141
[5] Idem, p. 156
[6] Idem, p. 308
[7] Idem, p. 309
[8] Idem, p. 309-310
[9] Idem, p. 331
[10] SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes - Mito e Realidade. [S. l.]: Expressão Popular, 2013, p. 60
[11] Idem, p. 60
[12] Idem, p. 66
[13] Idem, p. 65-66
[14] Idem, p. 72
[15] Idem, p. 508
[16] Idem, p. 40
[17] Idem, p. 91-92
[18] VOGEL, Lise. Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária. [S. l.]: Expressão Popular, 2022, p. 107
[19] SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes - Mito e Realidade. [S. l.]: Expressão Popular, 2013, p. 37
[20] Idem, p. 74
[21] Idem, p. 134
[22] Idem, p. 192
[23] Idem, p. 230
[24] Idem, p. 237
[25] Idem, p. 83
[26] Idem, p. 511
[27] EQUIPE DE TRADUÇÃO DO GRUPO DE ESTUDOS SOBRE TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL. Apresentação das Tradutoras. In: VOGEL, Lise. Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária. [S. l.]: Expressão Popular, 2022.
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