Ano 01 nº 04/ 2020: O Fascismo: uma ignorância substancial - Lincoln Secco

MARIA ANTONIA

EM QUARENTENA

Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 4 | Abril 2020


A conjuntura...

O FASCISMO: UMA IGNORÂNCIA SUBSTANCIAL

 

Lincoln Secco

Professor do Departamento de História - USP

Benedetto Croce disse em seu diário que Mussolini tinha “uma radical deficiência moral” e que era “ignorante, mas de uma ignorância substancial”, incapaz de entender relações elementares da vida humana, arrogante e sem escrúpulos de consciênciai.

É essa “ignorância substancial”, totalizante que marcou uma das cenas mais macabras da política brasileira: o discurso presidencial de 24 de março de 2020. Ele não bradou “viva la muerte” como os franquistas e nem suas carreatas fúnebres usaram o Totenkopf (caveira) dos uniformes nazistas. Como os sub empresários que o apoiam, ele não subestimou a epidemia somente por uma indiferença pela morte de milhões de pessoas; nem mesmo por puro cálculo político, embora isso também tenha contado.

Fascismo Mata

Há uma razão que finca raízes no próprio momento ideológico da acumulação do capital em estado crítico. Ela é tão evidente e tão incômoda que não pode ser declarada senão na forma de uma ignorância universal.

Incômoda porque a crise é interna e não externa ao capital. Em outras palavras, não se trata da humanidade versus a epidemia. Mantidas constantes todas as condições iniciais (ausência de vacina ou remédio eficaz), a contradição interna só pode encontrar uma forma de resolução no interior do próprio capital, seja pela morte de muitas pessoas ou pela resistência radical da classe trabalhadora.

Vários governos centristas e liberais usaram a discutível metáfora da guerra para suas políticas de contenção da epidemia. Mas não há nenhum inimigo externo a ser debelado. Na ausência de uma guerra real o neofascismo não pode tipificar os adeptos de uma ideologia ou comportamento como o corpo infectado a ser isolado e exterminado. Apela assim, a uma “verdade” que os próprios liberais gostariam de admitir: se uma pandemia não cede, em algum momento é preciso sacrificar corpos trabalhadores para que as roletas do cassino financeiro global continuem a girar.

 

Verdades e Forma

 

A verdade do capital não pode ser pronunciada senão com mentiras. A mentira do fascismo só pode ser bem sucedida mediante verdades. Mesmo que sejam apenas fragmentos distorcidos como o desemprego, o remédio salvador da epidemia, a guerra purificadora ou a derrocada econômica. Em momentos decisivos em que a reprodução do capital produtivo está em jogo, liberalismo e fascismo, elite e ralé dão-se as mãos sem temer qualquer contágio. Mas os liberais não têm o physique du rôle do ressentido social. Ainda que um liberal possa ter sido o café com leite das brincadeiras infantis, o guarda-caixão do piques, sua herança rapidamente lhe recolocou no seu devido grau hierárquico.

Antifascista

Hannah Arendt afirmou sobre os fascistas que o fato de que antes do seu ingresso na política suas vidas tinham sido um fracasso era o ponto alto de sua atração para as massasii. Suas falhas podiam passar por autenticidade.

A forma fascista é imprescindível porque permite mentir dizendo a verdade. Os nazistas podiam combinar elementos intelectuais e anti intelectuais num só discurso simplório, mas o que lhes infundia sua credibilidade era a forma degradada, a coreografia grotesca, a arte ornamental, as falas entrecortadas, as relações sem conexão, os gestos desmedidos e a linguagem chula e rebaixada.

Apanhavam um fragmento de debate científico e o deslocavam do contexto para atacar a própria ciência. Ora, neste caso, as discussões científicas são o todo; o que eles faziam era descartar a totalidade e tomar uma verdade parcial como se fosse a própria ciência alemã e sã contra a judia e a comunista.

Aqui temos que nos separar do grande pensador liberal Croce. A ignorância substancial não era apenas de um indivíduo, mas uma pré condição para exercer um poder político que atendesse às exigências de uma acumulação que só podia prosseguir exterminando seres humanos.

Antifascista

 

iSpriano, P. Sulla Rivoluzione Italiana. Torino: Einaudi, 1978, p.51

iiArendt, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 458.

 


Expediente
 

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
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