Ano 01 nº 55/ 2020: O Anticomunismo Preventivo - Lincoln F. Secco

boletim 55


Mundo acadêmico...

 

O ANTICOMUNISMO PREVENTIVO

 

Lincoln F. Secco

Professor do Departamento de História - USP

 

“Que partido oposicionista não é acusado de comunista por seus adversários no governo? Que partido de oposição não atira de volta a pecha estigmatizante do comunismo tanto contra os colegas mais progressistas como contra seus adversários reacionários?”

(Marx e Engels, Manifesto Comunista)

 

comunismo

Colagem por Canellas

 

Em pleno século XXI muitos analistas políticos se espantaram com o ressurgimento de um movimento anticomunista que conquistou o poder no Brasil. Tais comentaristas de mídia esquecem que eles mesmos demonizaram como “radical” não qualquer política de extrema esquerda, mas o mais moderado reformismo. Foi o precedente para que emergissem do esgoto ideológico as caracterizações bizarras do cristianismo da libertação, do petismo, de performances artísticas e comportamentos sexuais como comunismo.

O anticomunismo é um elemento de longa duração e surgiu no Brasil antes de qualquer movimento socialista ou comunista. No século XIX, a palavra “comunismo” aparecia nos compêndios jurídicos, discursos de deputados e artigos de jornais associada ao crime, à preguiça1, à irracionalidade e ao agigantamento do estado2. Decerto, não se tratava de um fenômeno persistente e enraizado na sociedade civil e nas forças armadas. Estas, ainda não estavam constituídas e centralizadas, material e ideologicamente, o que só aconteceria depois de 1930; e a “sociedade civil” e a política eram espaços de uma restrita coterie.

Contudo, a sua particular gênese histórica não contradiz sua validade permanente. Antes exibe um traço estrutural “preventivo”, como veremos a seguir. Uma consulta na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional revela que as folhas periódicas nacionais resumiam assiduamente as notícias europeias contrarias ao comunismo. Como já discutimos alhures3, o nosso país não esteve apartado das linhas mestras que norteavam o debate ideológico no Velho Mundo, ainda que faltasse aqui a mesma infraestrutura intelectual.

Um exemplo já estudado foi o debate sobre a possível chegada de imigrantes da Comuna de Paris nos jornais e no parlamento brasileiros, o qual provocou inúmeras intervenções contrárias ao socialismo e ao comunismo. Os anais da Câmara dos Deputados registram aplausos à vitória da “civilização na capital da França” 4.

Mas de qual comunismo falavam?

 

Comunismo

 

As elites imperiais e escravistas estavam perfeitamente conscientes dos significados das correntes socialistas, anarquistas e comunistas. Diferenciavam as primeiras comunidades alternativas inspiradas no socialismo francês utópico e o potencial perigo da associação das ideias socialistas com as revoltas brasileiras5. Leram os libelos europeus antissocialistas, como o best seller de François Guizot, imediatamente traduzido no Brasil6. Marx era citado como “chefe supremo da Internacional” e um jornal publicou um pequeno texto atribuído a ele7. Em 1851 encontra-se uma referência à primeira edição do Manifesto Comunista, publicada em Londres e na qual não constavam os nomes dos autores8. Era muito comum os jornais publicarem notas de falecimento de “célebres comunistas”, como Blanqui; ou sobre a prisão de líderes, como Louise Michel. Havia também artigos que tentavam resumir a trajetória e a obra de Marx e quando o termo marxisme surgiu na França, logo foi introduzido no Brasil com a consciência de que se tratava de um “coletivismo revolucionário”9 e não reformista ou gradual.

Isso não impediu muitos jornalistas e políticos de forjar uma caricatura. Na definição de um parlamentar, o comunismo era o nivelamento das fortunas de todos os indivíduos pela espoliação10. As políticas estatais de distribuição de renda (“equilibrar as fortunas”) já seriam um indício socialista. O deputado Casimiro Moraes Sarmento denunciava qualquer reforma mínima como “comunismo encapotado” pelas “formas especiais de que se reveste”. Na opinião do mesmo parlamentar, esse comunismo disfarçado distorcia a economia política e até a Bíblia11. Para ele, a “pior espécie de comunismo” era o ensino público e gratuito de todos os níveis e o apoio a teatros e artistas12. Alguns juristas da Faculdade de Direito de São Paulo também consideravam a instrução pública um princípio comunista13. Outro parlamentar, o sr. Melo Franco, disse que era contra o apoio ao teatro porque os pobres sustentariam artistas e não assistiriam suas apresentações14.

Quando se pensa em acusações de comunismo dirigidas em pleno século XXI ao megainvestidor Soros, ao Papa, às universidades, à Venezuela e a um governador paulista de direita, o historiador tem a sensação de déjà vu. Para um deputado, comunismo era viver às custas do Estado; para outro, o Paraguai sob Solano López era um país comunista e houve quem chegasse ao cúmulo de declarar que o sistema socialista infelizmente já estava implantado no país porque o Estado pagava a passagem de mendigos europeus para formarem núcleos coloniais aqui15.

Anos depois, um parlamentar ousou defender na tribuna os pobres livres (moradores ou foreiros) de Pernambuco, deixando claro que era favorável ao latifúndio, mas preconizava um papel subsidiário à pequena propriedade até para evitar uma revolta social. Durante sua exposição foi apartado por um colega que gritou: “aí vem o comunismo”16. Embora aleatórios, os exemplos são índices de uma permanência no debate político.

Ainda que o comunismo imaginado por alguns políticos fosse hiperbólico, havia um fundamento real. Eles sabiam que o comunismo já era na Europa um movimento real e prático e não um conjunto de ideais de reforma social. E no Brasil as fugas, insurreições e atos violentos contra senhores estavam documentados nos relatórios apresentados pelos chefes de polícia ou pelos presidentes de província às assembleias. Mesmo assim, havia exageros retóricos que cumpriam a função de prevenir as classes dominantes contra qualquer ameaça, mesmo mínima, aos seus interesses materiais.

Não quero com isso dizer que o anticomunismo foi a forma predominante de defesa dos interesses escravistas; na verdade era marginal. A maioria preferia defender a liberdade, a propriedade e os contratos (sic) entre escravizados e escravizadores recorrendo apenas ao liberalismo. Mas o fato de que os debates sobre a Comuna de Paris coincidiram com a apreciação da Lei do Ventre Livre (aprovada em 28 de Setembro de 1871) propiciou campo aberto para a associação do abolicionismo com o comunismo.

A lei tão somente previa que os filhos de escravas nascidos no Brasil seriam livres, o que contrariava as leis e costumes coloniais e, portanto, o alegado direito de propriedade. Mesmo assim, as crianças poderiam permanecer em poder dos senhores até a idade de oito anos completos, quando os proprietários poderiam receber do Estado a indenização de 600$000, ou utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos. No calor dos debates associou-se o projeto de lei ao comunismo17. Até mesmo o governo foi assim chamado. Christiano Ottoni (1811-1896), citando uma frase talvez lida em segunda mão em Marx e Engels, declarava que se os escravos fossem emancipados teriam tudo a ganhar e nada a perder com a subversão da sociedade existente. Ele acrescentava que aquela lei permitiria a qualquer comunista repetir aqui as desgraças de Paris18.

 

Comunismo e abolicionismo

 

Os inimigos dos negros tachavam a alforria de ideia comunista; criticavam a audácia de abolicionistas cearenses por colocar placas nas ruas dizendo que a escravidão era crime e os comparava a comunistas. O comunismo também era o equivalente de um “Estado salteador” que pretendia expropriar os fazendeiros e criar um “imposto comunista de 40%” sobre o comércio de seres humanos. Obviamente, os “lavradores” se declaravam favoráveis à emancipação (que viria de atos individuais de benevolência e de indenização ou de reformas graduais) e não à abolição (que era sinônimo de revolução)19.

O Visconde de Bom Retiro afirmava que a libertação dos sexagenários sem indenização era um atentado à propriedade, inconstitucional e comunista. Outros aludiam ao “projeto comunista de abolições”, ao “imperial projeto de emancipação comunista” e o próprio D. Pedro II foi vinculado ao comunismo20.

O gabinete Dantas, que durou de 6 de julho de 1884 a 6 de maio de 1885, propôs uma lei mais ousada que previa o registro do “elemento servil”; libertação de escravizados com 60 anos de idade ou mais; e assentamento dos libertos em terrenos desapropriados às margens das estradas de ferro e dos rios navegáveis. Naturalmente, o Conselheiro Dantas foi alcunhado de comunista21.

Quando se debateu a lei de 28 de setembro de 1885, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários, que determinou a libertação dos que tinham mais de 60 anos, a ligação com o comunismo se repetiu. O barão de Cotegipe pedia recursos em títulos públicos para indenizar os proprietários, mas Andrade Figueira denunciou na Câmara dos Deputados que o governo entraria na indústria privada (ele se referia às fazendas) até para fixar o salário, o que naturalmente era um atentado socialista e comunista. Havia também o pânico da imediata libertação que provocaria vinganças e a queda da lavoura. Como se lia num artigo da época, “a abolição de um jato é uma solução comunista”22.

Isso levava abolicionistas intransigentes a se defenderem das acusações de que eram comunistas, anarquistas e contra a família e a liberdade23. A posição contrária à indenização de senhores escravistas também era rotulada de comunista. Contra isso, um cronista afirmou que, numa acepção restrita, quem fazia comunismo era o próprio Cotegipe que pretendia usar o Estado para indenizar escravizadores24.

 

Conclusão

 

O anticomunismo é uma operação de propaganda que visa constituir um inimigo no espaço público através da caricatura de suas ideias e práticas25. Não se trata de postura intelectual ou tradução política de uma teoria, mas de uma técnica de mobilização. Na história brasileira a polarização política foi em muitos momentos assimétrica. No caso aqui em tela, a defesa da imigração e da abolição, por membros da elite dissidente, sequer rompia com os fundamentos racistas e a linguagem da biologia social da época. Ainda assim, era considerada revolucionária sem sê-lo. Joaquim Nabuco afirmava a inferioridade do negro26, embora depois tenha centrado sua posição num ideário liberal mais avançado27. Seu objetivo era a conciliação de classes.

O prefixo “anti” não é constituído como negação determinada do comunismo. O que ele supostamente nega não nos permite passar ao seu oposto, afinal, o comunismo real não conserva nada do anticomunismo. Essa sutileza teórica e historiográfica faltou, por exemplo, a Ernst Nolte, na sua Historikerstreit28. Apesar do anátema lançado àquele historiador por ter visto no nacional socialismo apenas uma reação exagerada ao bolchevismo, toda a imprensa liberal continuou a situar líderes neofascistas e moderados trabalhistas do século XXI numa balança de equivalência, sob o rótulo de populistas ou extremistas de direita e de esquerda.

Sem conseguir opor-se a reformas por meios legais, a Direita cedeu lugar ao seu lado extremo. Contudo, seu adversário continuava a ser uma contida esquerda socialdemocrata. Nas raras oportunidades em que se percebeu uma ameaça revolucionária, ela foi exagerada pelo discurso da extrema direita.

A ausência de um movimento comunista internacional e da própria União Soviética não significa que o fenômeno do anticomunismo não existisse antes e não continue atuando depois. A demonização da China é um Ersatz, já que aquele país restringe sua concorrência na arena internacional ao comércio, diferentemente da União Soviética durante a Guerra Fria.

Assim como o fascismo, o anticomunismo não foi uma resposta a qualquer revolução e seu caráter preventivo é estrutural. Obviamente, no entre guerras ele reagiu também ao Komintern29. Embora seu alvo seja hipostasiado, o objetivo é concreto: reagir a reformas, ainda que graduais, e se antecipar às radicais.

 

1Vide, por exemplo, Diario do Commercio, Rio de Janeiro, 3/10/1870.

2Ayres, Vivian N. “Marx e o comunismo nos periódicos paulistas do século XIX”, Mouro, n. 13, São Paulo, janeiro de 2019, p. 187.

3Secco, Lincoln. A batalha dos livros: formação da esquerda no Brasil. Cotia: Ateliê, 2018.

4Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 13/7/1871, p. 124; 27/12/1872.

5Aurora Paulistana, São Paulo, 5/04/1852.

6Deaecto, Marisa. A Democracia na França, de François Guizot (1848-1849). Tese (Livre Docência). São Paulo: ECA – USP, 2019.

7Diario de São Paulo, São Paulo, 6/5/1871. Diario de Pernambuco, Recife, 23/7/1871.

8Correio mercantil e instructivo, politico e universal, Rio de Janeiro, 8/11/1851.

9A Provincia de Minas, Ouro Preto, 30/11/1882; Diario da Manhan, Maceió, 15/2/1883.

10Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 25/8/1852.

11Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 31/5/1854.

12Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 25/8/1852.

13Ayres, Vivian N. Da sala de leitura à tribuna: livros e cultura jurídica em São Paulo no século XIX. Tese (Doutorado em História Econômica). São Paulo: USP, 2018.

14Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 25/6/1855.

15Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 19/7/1854; 22/5/1855; 26/8/1860.

16Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 19/6/1866.

17Viotti da Costa, Emilia. O abolicionismo. São Paulo: Unesp, 2008, p.52.

18Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 24/6/1871; 3/8/1871; 17/7/1871. Ele era irmão de Teófilo Ottoni, com quem participou da Revolução Liberal de 1842 em Minas Gerais.

19Diário do Brazil, Rio de Janeiro, 27/6/1884; 25/5/1884; 19/6/1884; 29/6/1884.

20O Paiz, São Luiz, 22/8/1884. Diário do Brazil, Rio de Janeiro, 25/7/1884; 1/8/1884; 27/8/1884; 12/8/1884.

21Diário do Brazil, Rio de Janeiro, 17/7/1884. Uma crítica a essa posição em: A Federação, Porto Alegre, 22/8/1884. Jornal dirigido por Julio de Castilhos.

22Annaes do parlamento brasileiro, Rio de Janeiro, 16/7/1885; Durocher, Maria Josefina Matildes. Ideias por coordenar a respeito da escravidão. Rio de Janeiro: Typ. do Diario do Rio de Janeiro, 1871. p.5; O Espírito Santense, Vitória, 8/10/1887.

23Jornal do Recife, Recife, 20/4/1884 e 30/5/1885.

24O Espírito Santense, Vitória, 23/6/1888.

25Labica, Georges. Dictionnaire du Marxisme. Paris: Presses universitaires de France, 1982. Verbete: “anticomunismo”.

26Exemplo disso é: Nabuco, J. O Abolicionismo. Londres: Abraham Kingdon, 1883.

27Azevedo, Maria C. M. Onda negra, medo branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.100.

28Essa polêmica é dos anos 1980, mas ainda assim a obra anterior de Nolte é importante para o estudo do fascismo. Por exemplo: Nolte, Ernst. Les mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945. Paris: Calmann – Lévy, 1969.

29Remeto a discussão para Secco, Lincoln. História da União Soviética: uma introdução. São Paulo: Maria Antônia, 2020. E também artigos sobre o fascismo que publiquei no site A Terra é Redonda. Acessar em: https://aterraeredonda.com.br/tag/lincoln-secco.

 


Expediente

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