Ano 01 nº 07/ 2020: A Conta Não Fecha - Lucas Rodrigues

 

MARIA ANTONIA

EM QUARENTENA

Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 7 | Abril 2020


A conjuntura...

A CONTA NÃO FECHA

 

Lucas Rodrigues

Historiador, Pós-graduando do Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina, PROLAM - USP

A maisnova crise do governo Bolsonaro reacendeu os debates sobre uma possível intervenção das Forças Armadas. A questão que devemos colocar é: por que isso ocorreria agora? Existe algo que não fecha a conta para enxergar um cenário em que as Forças Armadas assumiriam diretamente o controle político do país – seja através de um golpe propriamente dito que removesse o governo Bolsonaro, seja através de Mourão, seja ainda cerrando ombros de forma ostensiva com Bolsonaro contra seus opositores dentro da institucionalidade burguesa.

Bolsonaro-Militares

Foto de Marcos Correa. Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/02/ministros-militares…


 

O zigue-zague fardado

 

As Forças Armadas, de um jeito ou de outro, tutelam sem contestação a política brasileira desde 1964, ainda que sejam incapazes de assumir a sua direção “espiritual”. Não surgiu outro grupo capaz de intervir ao seu nível na ordem social, econômica e política nacional desde então, seja para preservá-la ou alterá-la. É claro, elas já tentavam tutelar antes, mas ainda havia alguns agentes que não se dispunham a entregar o poder (no sentido duro do termo, isso é, como capacidade de intervenção violenta na realidade social e política). Era o caso de determinadas redes de sindicatos ligadas ao PCB e ao PTB, por exemplo. Essa insubordinação foi reprimida a partir de 1º de Abril.

Desde o início da República de 88, essa tutela diminuiu, com alguma tensão. O sistema eleitoral liberal gerado a partir da transição controlada era relativamente respeitado, com uma organização partidária nascida em parte da mente do General Golbery do Couto e Silva. Todavia, organizações com potencial de exercício autônomo de violência e uma capacidade de mobilização similar à bélica nunca desceram bem à corporação – basta pensar na visão desta sobre o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).

Essa situação perdurou até pelo menos a Comissão Nacional da Verdade (CNV), quando passaram então a reivindicar (e conquistar) um aumento de seu espaço de intervenção. A pressão do governo Dilma em publicizar os crimes da tirania de 1964, as ações judiciais visando à punição sobretudo civil de seus agentes e a movimentação em torno da revisão da Lei da Anistia quebrou o pacto da transição em que os militares fingiam obedecer um governo eleito, dando um verniz de democracia moderna à República de 1988, e os civis não enfiavam o nariz dentro da caserna. Pior, essa pressão era conduzida sob os auspícios de uma ex-guerrilheira: inimigo perfeito para o porão entrar no cio. Não podia haver figura “pior” para conduzir uma política contra os valores predominantes na corporação. O motivo que fez os militares saírem da letargia envolveu, assim, o desgaste da imagem das Forças Armadas.

Essa saída foi algo zigue-zagueante, mas contínuo. Um dos primeiros sintomas foi a explosão de uma bomba na sede da OAB/RJ, já em Março de 2013. Uma reencenação farsesca da trágica bomba de 1980, no mesmo prédio. A OAB, lembremos, foi uma das principais entidades da “sociedade civil” a apoiar a CNV. Ninguém foi nem mesmo indiciado.

Depois, vieram outros movimentos. A resposta à CNV, em fins de 2014, de que não houve violações de direitos humanos em várias unidades militares durante a tirania de 1964. A fala favorável à deposição de Dilma do atual vice-presidente, em 2015. A mudança de paradigma iniciada durante o Governo Temer, que entre outras coisas colocou Sérgio Etchegoyen no seu governo e cedeu a outro militar (Joaquim Silva e Luna) o cargo de Ministro da Defesa rompendo com uma tradição da República de 88 – o que na prática tornava o Ministro um comissário das Forças Armadas diante do poder civil, e não um cargo voltado à coordenação civil das Forças Armadas. Isso além da intervenção no Rio de Janeiro que alçou o atual Chefe da Casa Civil para os holofotes da política. Os “tweets” do generalato durante a prisão de Lula. As reuniões fechadas de Marina, Alckmin, Haddad, Ciro e Manuela com Villas-Bôas, às vésperas da eleição. E a avalanche do Governo Bolsonaro, que utiliza militares em centenas de funções.

É difícil assim argumentar que Bolsonaro tenha entrado no poder ou que lá esteja ainda sem o consentimento das Forças Armadas. Ou qual é o outro grupo com o poder de exercer uma violência organizada ao nível delas?


O bolsonarismo


Alguns diriam que o outro grupo poderiam ser as milícias organizadas em torno de Bolsonaro. Pensemos em grupos ligados aos caminhoneiros, em redes de ativismo político de extrema-direita como a dos voltados à intervenção militar e gangues de rua.

<p>Manifestantes pedem o retorno dos militares ao poder em protesto na avenida Paulista, em São Paulo</p>
J. Duran Machfee / Futura Press. Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/sp-em-meio-a-protestos…

 

A bem da verdade, é ingênuo pensar que inexiste qualquer articulação entre membros da caserna e tais grupos ou uma relação de obediência direta entre Bolsonaro e essas “milícias”. Lembrem que muitos caminhoneiros defendiam abertamente um golpe militar contra Temer, durante 2018 – e Bolsonaro naquele momento recuou diante dessa reivindicação. As tropas dos Exército enviadas para lidar com grevistas eram muitas vezes bem recebidas. Ano passado caminhoneiros também pressionaram o governo para reduzir o diesel, acenando com uma nova greve. Um pré-candidato à vereança paulistana, ainda sem partido, e ligado a um grupo político chamado de União Nacionalista Democrática (UND, sintomaticamente) há anos faz ativismo pela intervenção militar. Esse mesmo candidato possui contatos entre militares e adotou discurso idêntico ao do presidente na questão do coronavírus, menosprezando o perigo da pandemia. Em reuniões da UND, por vezes circulam oficiais militares, mas também pessoas que se enquadrariam melhor na Sociedade 10 de Dezembro da França pós-1848 – tendo, por vezes, também generais acima de tais pessoas. Nesse mesmo sentido, já se perguntaram como Eduardo Fauzi obteve a informação de que havia um mandado de prisão às vésperas de ser emitido contra si – o que lhe permitiu fugir à Rússia antes de ser preso?

A verdade é que esses grupos que poderiam corresponder a uma atividade miliciana e que desrespeitam formalmente a prerrogativa aristocrática de “portar armas” (isto é, exercer a violência) que nossas Forças Armadas acreditam possuir atuam o mais das vezes como “variáveis controláveis” de agentes delas. Sua lealdade, mesmo quando compram integralmente o discurso de Bolsonaro, não é a ele de forma direta, mas a um caldo cultural maior que interliga o mito da cruzada anticomunista em seus vários espectros e matizes e, eventualmente, a agentes dentro das próprias Forças Armadas que não descartam e nunca descartaram que o exercício da violência e da política em defesa da ordem social por vezes deve correr por fora da institucionalidade, preservando a imagem das Forças Armadas.

São a essas figuras a quem o General Santos Cruz se referiu recentemente, ao dizer que o governo devia marcar sua posição frente às loucuras das milícias e fornecer segurança à população. Santos Cruz, lembremos, foi alvo de um dos gurus dessas milícias, Olavo de Carvalho, sendo desrespeitado como um general poucas vezes foi na História nacional. O mesmo guru também desrespeitou o Comandante do Exército, General Villas-Bôas. Cruz chamou tais grupos de “vagabundos virtuais”, mas conclamou todos a cumprirem “seu papel”1. Existe, assim, um papel para tais milícias?

É de relevância nesses momentos olhar para o comportamento das Forças Armadas diante da Ação Integralista Brasileira (AIB). De modo geral, a memória militar sobre o integralismo se consolidou apresentando-o como um dos “três totalitarismos” da década de 30 contra a “democracia brasileira” - os outros seriam o comunismo e o getulismo (este melhor pois antipartidário). Esse é discurso presente, por exemplo, no livro da Biblioteca do Exército O Exército na História do Brasil: República, financiado pela Odebrecht - e organizado por Olavo de Carvalho, o guru de muitos “milicianos”. O Exército, é verdade, sempre viu com desconfiança as milícias integralistas. Elas tiravam dele o papel de formador da juventude e tensionavam o seu privilégio em portar armas. Contudo, o fato é que Góis Monteiro não agiu decisivamente contra os integralistas. De fato, o próprio Estado Novo só foi instaurado em razão de um documento elaborado por integralistas para exercícios internos de mobilização, o famoso Plano Cohen. Os integralistas, em retrospectiva, afirmam hoje que se tratou de oportunismo do governo de Getúlio. Na época, contudo, se juntaram no barco contra a democracia liberal e não denunciaram o que sabiam ser uma fraude. Posteriormente, alguns foram presos e outros mesmo mortos. Outros, contudo, continuaram nas Forças Armadas e fizeram carreira. O autor do Plano Cohen, General Olímpio Mourão Filho, foi um desses – e deflagrou o golpe de 1964, o que permite até hoje parte dos militares jogarem a culpa nos “fascistas” pela ruptura da institucionalidade. Seria coisa de gente com alma de miliciano, não de profissionais que, no máximo, pretendiam uma intervenção saneadora para a restauração da democracia liberal, livres dos vícios do “populismo” e do “caudilhismo”. Não era notória a preferência política de Mourão Filho, contudo?

Ademais, a base de Bolsonaro perdeu momentaneamente a força “mítica” que a guerra anticomunista tinha. Sua manobra perdeu o momento. O inimigo não pode temporariamente ser o (inexistente) comunismo difuso. A sociedade brasileira demonstrou muito mais capacidade de mobilização contra um inimigo concreto, o Covid-19, do que contra o espantalho criado. Recuaram, apesar da tentativa falhada de tentar enquadrar a pandemia como fruto do “comunismo” (no caso, o chinês). Não que sua cruzada não possa voltar, caso situações de conflito social reapareçam com força – ou mesmo antes, como mobilização preparatória. A questão maior é que parte da “racional” burguesia interna, em sua disputa com a fração organicamente ligada ao bolsonarismo, utilizou a pandemia como arma política contra o governo, diminuindo sua margem de ação – com a esquerda, à reboque e incapaz de aproveitar a situação de instabilidade, e com algum apoio militar. Um pequeno peão econômico sacrificado na disputa pelo assalto à torre política, em uma manobra que preserva alguma estabilidade futura.

É, assim, ingênuo pensar que as Forças Armadas não depõe (ou aceitam a deposição de) Bolsonaro por medo de agitação “das ruas” ou pelo medo da “quebra da hierarquia e da disciplina” por parte das polícias militares, da baixa oficialidade militar ou dos sargentos e subtenentes animados pelo “bolsonarismo”. Major Olímpio, organicamente ligado à maior polícia militar do Brasil, não vacilou recentemente em criticar Bolsonaro, por exemplo. No frigir dos ovos, as Forças Armadas sabem que Bolsonaro depende delas mesmo para dialogar com suas bases. Sua autoridade é carismática, mas possui intermediários legais e paralegais – alguns ligados à cúpula militar que vê uma utilidade de bufão em Bolsonaro.

Não se trata portanto de um “Partido Fardado” aqui, dominando a cena política através de quebras da hierarquia e disciplina militar. Usar a terminologia de Oliveiros Ferreira mais atrapalha que ajuda para entender a situação atual. Se fôssemos pensar nos termos dos tipos-ideais do antigo articulista do Estadão, o mais próximo seria um governo do “Estabelecimento Militar” nas sombras, preservando a contrainsurgência através da mobilização controlada das ruas e de milícias ocultas para a preservação da Ordem – afinal de contas, até aqui a atuação das Forças Armadas tem se pautado não pela busca direta à ação, mas pelo lento, gradual e seguro avanço diante de uma situação de crise preservando a institucionalidade e imagem da instituição como um bloco monolítico.

Charge-militares

https://racismoambiental.net.br/2019/06/03/quem-segura-bolsonaro-e-o-ex…

 

A lógica militar


A lógica da cúpula militar é, e sempre foi, colocar Bolsonaro para representar os seus interesses na política sem que as Forças Armadas assumam o desgaste gerado pela política ultraliberal dele e das classes que ele representa.

Oliveiros Ferreira diz que o “Partido Fardado” não aprende com a História porque, para ele, tal Partido não se consolida institucionalmente para elaborar reflexões sobre as flutuações históricas. Bom, o fato é que as nossas Forças Armadas já deram mostras de que aprenderam e muito com a História. No caso da intervenção federal no Rio do Janeiro, por exemplo, negociaram acordos que preservavam seus membros de processos jurídicos na Justiça Comum por eventuais “excessos” cometidos, remetendo-os à Justiça Militar. Um claro aprendizado não só com outra intervenção militar na História do Brasil (e bem mais duradoura), mas também com as vergonhosas operações no Haiti e no Congo, comemoradas pela diplomacia petista. Um aprendizado que demonstrou como proteger a instituição das idas e voltas da “opinião” da classe dominante sobre como manter a Ordem.

Analisemos, então. Caso Bolsonaro saia do governo dentro das formalidades legais, assumiria o General Mourão. Por maiores que sejam os eventuais desafetos de Mourão dentro da caserna, ele continua sendo muito mais um deles – e o desgaste que Mourão assumiria ao ser vinculado à crise econômica e social que se avizinha respingaria muito mais nas Forças Armadas enquanto instituição do que se ele ocorrer sob Bolsonaro. É verdade, a entrada de Mourão teria um verniz constitucional. Mas também associaria mais fortemente as Forças Armadas a acordos palacianos, o que não é palatável para a tradição militar no Brasil, que gosta de se ver como um corpo social distinto da “classe política”.

O cenário de uma intervenção mais violenta, com a deposição de Bolsonaro por uma junta militar que assumisse suas funções é ainda mais improvável. Para além do provável desgaste que a futura crise econômica gerará, uma intervenção que rompesse com a ordem constitucional atual geraria desgaste das Forças Armadas não só na comunidade internacional, mas a colocaria em colisão direta com a ampla constelação de agentes sociais e políticos interessados na manutenção mais ou menos frouxa dessa ordem.

Terceiro cenário, uma intervenção militar para manter Bolsonaro no governo diante da tentativa de impedir seu mandato é ainda mais improvável. Ela acumularia o desgaste da intervenção com o de se tornar o fiel mais ostensivo do impopular governo, somados com os atritos inerentes à ruptura da ordem constitucional e, possivelmente, com o atravancamento do caminho de Mourão ao poder.

Por fim, é importante sublinhar que Bolsonaro não foi consentido no cargo por motivos estritamente “espirituais” das Forças Armadas. Elas souberam conviver bem com um presidente sindicalista, por exemplo.

O fenômeno Bolsonaro possui raízes nacionais, sem dúvida. Mas o capitalismo é um sistema mundial, e fenômenos internacionais se reproduzem em território nacional, ainda que com suas peculiaridades. O clã Bolsonaro atua como um enorme facilitador das ligações entre o Brasil, os Estados Unidos e Israel, por exemplo – inclusive na área da defesa. Lembremos que Trump bancou Bolsonaro politicamente, e a eleição no Brasil em 2018 foi vista pelos Republicanos como uma questão eleitoralmente importante para as congressuais dos EUA. Steve Bannon, aliado de Trump, fornece suas redes de apoio a Bolsonaro – redes que explicam porque Eduardo Bolsonaro foi recebido por na Itália por Matteo Salvini, homem de Bannon lá, por exemplo. Redes que também se ramificam por Israel, onde o mesmo Bannon mobilizou seu potencial contra os inimigos do Likud. E estes são apenas os exemplos mais eloquentes: facilmente encontraríamos outros.

O Brasil assinou recentemente acordo militar com os Estados Unidos, que envolvia o acesso a 100 bilhões de dólares na área de defesa, inclusive tecnologia, exigindo, em entrelinhas, que Bolsonaro atrapalhasse o acesso do 5G chinês aos mercados brasileiros, o qual ainda não foi concretizado. Os militares lutaram para que a China pudesse participar da licitação – o que talvez indique uma política de conseguir maiores fatias na negociação com os EUA, utilizando Bolsonaro na facilitação do “diálogo”. Um acordo militar entre Brasil e Israel também foi assinado por Bolsonaro em 2019, englobando trocas de informações sigilosas. Sintoma dessas trocas, o embaixador brasileiro em Tel Aviv a ser indicado por Bolsonaro é um militar que já entre 2013 e 2015 atuou no mesmo país como adido. Alguém sabe qual outro embaixador brasileiro hoje é militar? Por que justamente na relação entre Brasil e Israel – possivelmente o maior aliado de Trump e dos EUA na região - há a necessidade das relações ficarem sob tutela militar?

É um nível de integração e financiamento militar que o Brasil nunca teve nem com a Unasul nem com os BRICs. Não que nossos militares vissem de forma unânime nossa participação nesses blocos: nos termos do “racional” Mourão, por exemplo, esses eram países “mulambos”. Nossos militares se enxergam como herdeiros da “civilização ocidental”, em grande parte – alguns mais simpáticos à Doutrina Monroe, outros mais simpáticos ao “legado ibérico”. Não era outro o raciocínio de Golbery do Couto e Silva ao defender a prioridade de alianças com países de passado imperialista decadente, como era o caso do Portugal salazarista, em detrimento do interesse brasileiro. Só que agora a ideologia colonialista tem um esteio material muito concreto para os militares, e que sem dúvida já vinha sendo negociado antes da eleição. O Acordo Militar Brasil-EUA começou a ser oficialmente delineado já em 2017 – e sabe-se lá desde quando nos corredores da embaixada em Washington e do Departamento de Estado dos EUA. O afastamento entre o Brasil e a “mulambada” gera evidentemente custos sociais e econômicos – pensem nas perdas que os conflitos com a China geram. Contudo, pode ter o ônus repassado à “irracionalidade” de Bolsonaro, por mais racionalidade material que ela possua aos militares.

Isso ajuda a explicar também, parcialmente, a indiferença com que as Forças Armadas assistem ao desmantelamento e humilhação de setores nacionais ligados à defesa. Basta lembrar aqui a MECTRON, empresa de defesa ligada à Odebrecht, que foi vendida parcialmente à Elbit System (grupo israelense) em meio à crise financeira da empreiteira nacional; a humilhação do Almirante Othon, pai da política nuclear brasileira; a crise instaurada nos estaleiros em razão da Lava-Jato.

 

Conclusão

 

A lógica da cúpula militar tem sido, há muito tempo, privar a instituição de qualquer tipo de desgaste. É muito mais racional para eles controlar atrás das cortinas o Brasil, sem assumir o papel de protagonista político. É isso o que um recente artigo do portal defesanet sugere: em nota afirmando que o General Braga Netto assume o Estado-Maior do Planalto, o site, que funciona como mobilizador e vocalizador do que setores das Forças Armadas pensam, afirma que na prática Braga Netto se tornou o presidente de fato, deixando a Bolsonaro a tarefa de entreter as suas bases. Não fala em momento algum, porém, de qualquer intervenção ostensiva dos militares sobre a política tal qual em 1964, conformando um governo sob “orientação espiritual” militar ou uma nova ordem constitucional. Nem é preciso nada nesse sentido: a prudência recomenda a discrição para preservar aquilo que interessa. Prudência que falta, talvez, ao clã Bolsonaro, chamado no artigo de “trotskista de direita”. Ora, se o clã e sua base miliciana são os trotskistas, quem são os stalinistas – e não são todos comunistas na defesa dos interesses de uma determinada classe? Além disso, nem todos do meio militar gostariam de apresentar Braga Netto como um “presidente de fato”: a Revista Sociedade Militar relativizou essa caracterização do antigo interventor. Se ele é ou não, pouco podemos dizer – a questão é que mesmo entre os militares não é consensual a vontade de projetá-lo desse modo.

É lógico, isso não nos permite ignorar os fatos da ascensão do poder político de saídos da caserna entre nós nem que no futuro uma intervenção militar seja de fato ostensiva, tal qual 1964. O aumento da presença de agentes armados na política é, porém, uma realidade em toda a América Latina, inclusive na Venezuela. As armas são, sempre, o último argumento.

As Forças Armadas, porém, não detêm a exclusividade concreta no exercício da violência, ainda que sejam os mais organizados para isso. Existem outros agentes armados da Ordem, legais e paralegais. Não há porque supor que os militares no governo seriam necessariamente mais terroristas do que um governo aos moldes do Estado de contrainsurgência colombiano ou mexicano – os quais passaram pelos anos 60 e 70 sem golpes militares, mas defenderam de forma mais dura, estável e, em termos quantitativos, violenta do que algumas experiências militares os interesses de suas burguesias internas. Um governo de um juiz punitivista com apoio de corporações policiais internas e externas pode ser mais terrorista e controlador do que o de um militar, além de ser apoiado por estes e por aqueles de “alma miliciana”2. É tão difícil vislumbrar isso? Continuaria sendo um estado policial, é claro. O terror é uma carta sempre disponível às classes dominantes, estando ela guardada nas togas ou nos coturnos.

justica-militar

 

Referências

CARVALHO, Olavo de. O Exército na História do Brasil: República. Biblioteca do Exército/Odebrecht, 1998.

DEFESANET. “Exclusivo - Gen Braga Neto Assume o Estado-Maior do Planalto”. Disponível em: http://www.defesanet.com.br/ncd/noticia/36301/Exclusivo---Gen-Braga-Neto-Assume-o-Estado-Maior-do-Planalto/.

DUPLO EXPRESSO. “Sobre militares no Brasil. A fala do professor Piero Leirner”. Disponível em: https://duploexpresso.com/?p=100108

FERREIRA, Oliveiros. Vida e Morte do Partido Fardado. Editora Senac São Paulo, 2000.

MARIN, Pedro; ORTEGA, André. Carta no coturno. Editora Baioneta, 2019.

MARINI, Ruy Mauro. O Estado contrainsurgente. Disponível em: “https://www.marxists.org/portugues/marini/1978/07/20.htm

MELO, Demian. “Militares na política bolsonarista: profissionalismo, golpismo e mitologia liberal”. Disponível em: “https://esquerdaonline.com.br/2020/03/28/militares-na-politica-bolsonar…

NASSIF, Luís. “Xadrez de como os generais enquadraram o capitão”. Disponível em: “https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/xadrez-de-como-os-generais-enqu…

SOCIEDADE MILITAR. “Braga Neto e sua nova função de “PRESIDENTE OPERACIONAL” – Interpretações grotescas da realidade!” Disponível em: https://www.sociedademilitar.com.br/wp/2020/04/braga-neto-e-sua-nova-funcao-de-presidente-operacional-interpretacoes-grotescas.html

 

 


Expediente

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