Ano 01 nº 08/ 2020: O Fascismo Cotidiano - Prof. Dr. Lincoln Secco

Boletim 8


A conjuntura...

 

O FASCISMO COTIDIANOi

 

 

Prof. Dr. Lincoln Secco

Departamento de História - USP

Amiúde explicamos a conjuntura brasileira pela perversidade do presidente. Embora a personalidade de indivíduos alçados a uma posição de poder não deva ser desprezada, ela só se torna relevante num contexto dado. A explicação subjetivista pode até mesmo conduzir à patologização da políticaii: uma abordagem historicamente equivocada que desarma a luta anti fascista.

Bolsonaro Napoleao3

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2019/05/napoleao…

 

Marx em O 18 Brumário recusou-se a compreender o fenômeno Luiz Bonaparte a partir de suas qualidades psicológicas ou morais. Ele preferiu demonstrar como a luta de classes permitiu a uma figura medíocre fazer-se o imperador dos franceses – ainda que a referida mediocridade fosse historicamente duvidosaiii.

Mais que um movimento de perversos (e certamente os havia), os fascistas são pessoas ordinárias. Em Una Giornata Particolare, Ettore Scola enquadra o fascismo num conjunto habitacional de Romaiv e surpreende pessoas comuns num dia de festa cívica. Não parecem particularmente malvadas e nada têm de especial, salvo as roupas de um dia de feriado. No entanto, irão saudar a maldade máxima como se fossem a uma partida de futebol. O seu líder não tem nada de hipnótico e na verdade cada chefe da família que o saúda é só um pequeno Mussolini da casa.

Giornata

Duce

 

O principal biógrafo de Mussolini foi um historiador profissional de passado comunista e socialista. Suas credenciais de esquerda e sua notável pesquisa empírica não foram suficientes para protegê-lo das acusações de revisionista porque em sua obra Renzo de Felice deu ênfase ao amplo consenso que a sociedade do seu país ofereceu ao fascismo.

Evidentemente ele não estava isento de erros, como talvez o de apresentar Mussolini mais socialista do que era e menos reacionário do que se tornou.

Mussolini foi um revolucionário intransigente, mas nunca teve as preocupações teóricas que a maioria dos dirigentes socialistas possuía, mesmo os reformistas italianos como Turati. Além disso, terminou sua trajetória inicial, já durante a guerra, como colaborador de capitalistas que ele astuciosamente englobou na “classe dos produtores”.

Bolso-Hitler-Mussolini

 

Figura 1: Fonte: https://www.causaoperaria.org.br/uma-apologia-do-fascismo-disfarcada-de…

 

Mas é a estabilização do fascismo e seu enraizamento no dia a dia que mais nos interessam. Um dos volumes da biografia do Duce recebeu o título de “Gli anni del Consenso. 1929-1936v. A visita de Hitler a Roma, retratada em imagens oficiais no citado Una Giornata Particolare ocorreu depois do período retratado naquele volume: em 1938, quando Mussolini já não gozava do mesmo apoio popular que antes. Ainda assim, a película captou o sentido totalitário do regime.

Scola filmou nos anos 1970 e isto tem muito a dizer sobre o fascismo sobrevivente nas instituições italianas conflagradas pelo terrorismo de direita.

Alguns anos depois Michael Verhoeven dirigiu Das schreckliche Mädchen. Para uma cidade alemã décadas depois da guerra era mais fácil usar o prefeito assumidamente nazista como bode expiatório dos crimes coletivos e erguer uma memória de resistência. Era o mesmo que culpar mulheres francesas que namoraram soldados alemães para livrar a cara dos homens colaboracionistas.

Francesas

Mas assim que a cidade foi confrontada com o seu passado pela pesquisa de uma jovem historiadora local, os discursos anti comunistas e anti semitas reapareceram. Só a vigilância internacional fez com que recuassem.

É incômodo admitir, mas pessoas comuns apoiaram Hitler e Mussolini não na Itália e Alemanha. Eles gozaram de ampla simpatia nas chamadas democracias e os governos eleitos até fizeram um pacto nazi liberal em Munique e só mudaram de opinião quando a Guerra começou.

Munique

Bundesarchiv, Bild 183-R69173 / CC-BY-SA 3.0. Da esq. p/ dir.: Chamberlain, Daladier, Hitler, Mussolini, Ciano, após acordo de Munique.

 

Diferença

 

É verdade que há uma distância entre os indiferentes e os fascistas militantes que se esbaldam com prazer no terror que impõem à sociedade. E em todo lugar a maioria eleitoral que levou os fascistas ao poder nunca foi absoluta. Mas uma ampla parcela de indiferentes permitiu que eles fossem vitoriosos e governassem.

As pessoas ouviram e entenderam o discurso fascista. Depois, elas puderam perceber que viviam num regime cruel e desumanovi. Podiam não conhecer detalhes cuidadosamente ocultados pelo ditador, mas sabiam do conjunto

 

Literatura

 

Essas mesmas pessoas são familiares, amigos ou colegas de escola e trabalho. Cumprimentam as outras nas ruas e recebem seus clientes com sorriso em seus pequenos empregos ou negócios. São absolutamente “normais”.

Num romance póstumovii de Roberto Bolaño um jovem alemão circula num povoado espanhol nos anos 1980; convive com uns desclassificados locais enquanto flerta com a dona também alemã do hotel em que se hospedam os turistas. Sobe e desce de elevador o tempo todo como se o movimento fosse uma metáfora do seu trânsito na escala social. Mas em qualquer situação ele é ponderado e contido. Até suas relações íntimas com a namorada sueca são desprovidas de encanto ou excesso: “Hicimos el amor” ele registra telegraficamente no seu diário.

Reservadamente ele se corresponde com pessoas de uma confraria internacional desconhecida que simula jogos bélicos. Seu passatempo quase profissional é elaborar estratégias em que a Alemanha poderia ter vencido a Segunda Guerra Mundial. O nome do jogo: o Terceiro Reich.

Berlim

Yevgeny Khaldei. Soviéticos conquistam Berlim.

 

i O título deste artigo resgata o de um livro de Nelson Werneck Sodré, O Fascismo Cotidiano, Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990.

iii Napoleão III liderou a França num período de grande desenvolvimento econômico, teve apoio popular e até cooptou lideranças operárias e socialistas.

iv Uma excelente leitura deste filme foi feita por: Prado, Gilda W. de Almeida. “O Inquilino do Sexto Andar”, Mouro, 14, São Paulo, 2020 (no prelo).

v Felice, Renzo de. Mussolini il Duce. Gli anni del consenso. 1929-1936. Torino: Einaudi, 1974.

vi A correta comparação com a parcela da classe média que elegeu Bolsonaro em Ayres, Vivian. “Panelaço e a Esquerda”, Maria Antonia. Boletim do Gmarx USP, n. I, março de 2020.

vii Bolaño, Roberto. El Tercer Reich. Barcelona: Debolsillo, 2018.

 


Expediente

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