Ano 2 nº 02/2021 (Edição especial): Rosa Luxemburg 2.1 - Rosa Rosa Gomes

boletem 2-2


Memória operária ...

 

ROSA LUXEMBURGO 2.1

 

Rosa Rosa Gomes

Autora do livro Rosa Luxemburgo: crise e revolução e mestre em História Econômica – USP

 

heartfield

John Heartfield, 1930 Fonte: https://heartfield.adk.de/en/node/3438

 

Há alguns dias foi o aniversário de 150 anos de Rosa Luxemburgo, revolucionária polonesa nascida em 5 de março de 1871. Há alguns anos, as rememorações de Luxemburgo mudaram do dia de sua morte para o dia de seu aniversário, uma forma de lembrar a vida ao invés da morte. Muitos eventos, vídeos, comentários e imagens em redes sociais foram publicados nessa data, junto a citações impactantes retiradas de seus textos, e uma grande variedade de intelectuais no mundo todo se pronunciou acerca das ideias de Rosa Luxemburgo e a sua atualidade. Este é mais um desses pronunciamentos, mas que chega atrasado.

Os debates e as pesquisas assim como a popularização das ideias de Rosa Luxemburgo avançaram muito nas últimas décadas, no Brasil especialmente com a atuação da Fundação Rosa Luxemburgo e do trabalho de Isabel Loureiro. No entanto, ainda hoje muito do debate acerca do pensamento de Luxemburgo parte da divisão de seus textos e pensamento em duas vertentes: a política e a econômica. Mas, como assinalam também Ricardo Bellofiore e Michael Krätke, Luxemburgo só pode ser entendida como uma economista política e revolucionária como tantos de sua época. A divisão de seu pensamento entre uma parte política, válida e essencial, e uma parte econômica, equivocada mas com importantes insights, não colabora para a sua compreensão e utilização como uma ferramenta para atuar na conjuntura tão sombria que se apresenta diante de nós.

Os discursos acerca de Luxemburgo a apresentam em grande medida como a mãe do socialismo democrático e do internacionalismo da classe trabalhadora, defensora tenaz de ideias como o espontaneísmo das massas. Ao lado dessas análises, em grande medida feitas com um ar de paixão mais do que de racionalidade, apresentam-se as críticas à negação de Rosa Luxemburgo do nacionalismo e do centralismo democrático. Ocorre que estas ideias e tantas outras apresentadas nos textos chamados políticos de Rosa Luxemburgo estão firmemente embasadas nos seus estudos e análises da economia capitalista e em seu debate com os teóricos de sua época, apresentados nos chamados textos econômicos. Desta forma, o estudo de seu pensamento só pode ser entendido nessa dimensão totalizante. Dizer que os aspectos políticos de sua análise da relação entre reforma e revolução são essenciais para combater o oportunismo, mas que as análises econômicas contidas na brochura Reforma Social ou Revolução estão equivocadas é fatiar um pensamento e o entender pela metade. Melhor seria estudá-lo em suas contradições.

Para tanto, de fundamental importância é o estudo da obra A Acumulação de Capital1, assim como a Introdução à Economia Política e a Anticrítica. Mas principalmente em A Acumulação, Luxemburgo apresenta um estudo intenso acerca da reprodução do capitalismo, partindo do problema de como o capitalismo se reproduz, e de maneira ampliada, se não existe nenhuma forma de regulação da produção privada e o sistema tende, portanto, à superprodução. Para responder a essa pergunta, Luxemburgo apresenta em detalhes a história da economia política até sua época, ocupando este histórico dois terços do livro. Muitas análises tendem a ignorar essas partes como críticas equivocadas e se concentrar no último terço da obra. No entanto, essas seções são essenciais porque mostram os pressupostos de onde ela parte, debatendo implicitamente com outros teóricos de seu tempo que tentavam explicar o problema das crises e o papel do crédito no capitalismo. Luxemburgo cita apenas muito rapidamente esses temas, mas no fundo seu livro passa por eles porque se insere no debate acerca da viabilidade ou inviabilidade do capitalismo, o conhecido debate do colapso. Daí a necessidade que ela tem de fazer uma análise apurada dos teóricos que vieram até ali. E na seção dois de seu livro, ela não apenas apresenta os debates e sua crítica como também os insere dentro de seus contextos históricos. Só depois ela desenvolve uma explicação própria para a reprodução ampliada capitalista, que para ela se fundamenta na expansão deste modo de produção sobre espaços e sociedades não capitalistas através da eliminação de outras sociedades autossuficientes e da inserção da economia de mercado. A expansão imperialista faz parte da própria essência do capitalismo, que leva necessariamente à competição de diversas potências pela dominação mundial, acarretando no crescimento do militarismo e da violência, ambos mecanismos vitais para a reprodução ampliada do capital.

Ocorre que o trecho em que Luxemburgo desenvolve essa explicação é muito curto frente ao resto do livro e é criticado por isso, pelo pouco desenvolvimento que ela dá para as questões que levanta como o papel do protecionismo e dos empréstimos. No entanto, a falta de desenvolvimento advém da urgência de mostrar não apenas para os economistas, mas para os dirigentes da social-democracia e para as suas bases, os mecanismos de atuação do imperialismo como resultado das necessidades intrínsecas ao capital, em seus aspectos temporais e espaciais, e a tarefa do socialismo mundial de impedir o colapso da humanidade. No fundo, esta é a tarefa primeira do livro, um livro de análise e crítica ao imperialismo. Aqui mostra-se Luxemburgo como economista política. Sua teoria da acumulação e suas intervenções no debate do colapso entendem que o capitalismo como sistema possui um fim necessário por suas contradições internas, que ela explica em sua teoria, o que não quer dizer que o socialismo vá acontecer sem que a classe trabalhadora se organize; mas se não se compreende os limites intrínsecos do capital, então ele pode sobreviver indefinidamente sendo reformado. O que está colocado como resultado do colapso do capitalismo em A Acumulação é no fundo socialismo ou barbárie, moto que ela vai estabelecer apenas na Brochura Junius em 1916, mas que aparece como um fantasma em 1913, uma vez que as condições para a guerra mundial já estavam dadas e o partido de Luxemburgo, a social-democracia alemã, não parecia se movimentar para impedir o desastre.

No desenvolvimento de sua teoria, Luxemburgo apresenta a violência que move o capitalismo em toda a sua história e que não pode deixar de acompanhá-lo em sua necessidade de tomada e destruição de todos os povos e espaços que dele não fazem parte. Esse ponto é fundamental para aqueles que nascem, crescem e vivem em lugares que estão na fronteira capitalista se caracterizando como espaços abertos sob os quais o capital avança.

O próprio capital tem criado ao longo dos anos novos espaços e fronteiras de expansão, aquilo que não era uma área de acumulação a princípio pode passar a ser, como os corpos.2 Mas a acumulação não avança apenas sobre novos espaços criados para a expropriação capitalista, existe ainda no mundo espaço para o avanço old school, semelhante ao descrito por Luxemburgo em tantos momentos de seu livro. Isso tem se tornado claro, especialmente, desde o golpe de 2016 no Brasil, não apenas porque houve a espoliação dos direitos da classe trabalhadora para a expansão do setor privado sobre serviços públicos, mas pelo avanço sobre áreas e recursos anteriormente não explorados, um avanço que se acelerou nos últimos tempos tendo como exemplos o crescimento do desmatamento da Amazônia Legal Brasileira desde 2014, após um período de 10 anos de queda3, as queimadas de 20204 e o avanço sobre as terras de povos indígenas com a paralisação das demarcações e inoperância de órgãos como a FUNAI e o INCRA5.

Estes temas nos levam à questão ambiental em voga nos dias atuais. Na conferência on-line organizada pela International Rosa Luxemburg Society e a Rosa-Luxemburg-Stiftung em 04 e 05 de março de 2021, Michael Löwy abriu o evento com uma palestra muito importante sobre o pensamento de Rosa Luxemburgo e sua atualidade e, em determinado momento, citou a questão ecológica como o ponto central para concretizar o internacionalismo na esquerda defendido por Rosa Luxemburgo. A questão ecológica seria o ponto de atualização do pensamento de Rosa Luxemburgo. A teoria da acumulação de Rosa Luxemburgo sem dúvida explica o colapso ambiental uma vez que a expansão do capitalismo sobre tudo e todos leva necessariamente ao esgotamento de áreas de expansão e à destruição de florestas, ao esgotamento do solo, à produção desenfreada de rejeitos por causa do alto consumo entre outros problemas que levam ao colapso do planeta. No entanto, cabe questionar o significado da unidade internacional através do problema ambiental.

O esgotamento da natureza é resultado das relações sociais ao redor do mundo. É óbvio que Michael Löwy e as pessoas no espectro da esquerda entendem as conexões entre a natureza e as relações humanas, porém, a ordem dos fatores, nesse caso, altera o produto. Quando apontamos a pauta ecológica como a questão fundamental, colocamos a transformação social fora das relações entre os homens, em um problema aparentemente externo a elas e que pode mexer mais com o individualismo construído pelo capitalismo, do que com a solidariedade construída entre a classe trabalhadora. Isso porque a pauta ambiental pode ser limitada à sobrevivência individual, “é necessário apoiá-la para que eu também sobreviva”.

Não quero dizer aqui que a mudança climática não importa. Depois de mais de 100 anos de crítica à teoria da acumulação de Rosa Luxemburgo, talvez esse seja o ponto em que ela se demonstra mais claramente certa: o capitalismo tem limites sim e eles são sim catastróficos. Quero apenas perguntar se não estaremos objetificando uma responsabilidade ao colocá-la fora das relações sociais e reforçando o individualismo nosso de cada dia, o que não nos levaria para uma salvação da barbárie, talvez apenas a adiasse um pouco. Além disso, a questão climática envolve todos os países de maneiras muito diferentes e hierarquicamente relacionadas através da expansão imperialista do capital que, em geral, está vinculada aos países centrais (europeus e norte-americanos).

Novamente Rosa Luxemburgo. E partindo dela, há também as consequências políticas de uma estrutura econômica que não podemos deixar de avaliar. Se no começo do século XX, Rosa Luxemburgo assistiu a uma guerra que era resultado do crescimento econômico das potências capitalistas disputando a dominação mundial entre elas, hoje, a barbárie que vivemos já é o resultado do desenvolvimento extraordinário do sistema ao ponto de sua estagnação e de sua luta pela sobrevivência às custas da classe trabalhadora mundial, sempre. Mas se na época de Luxemburgo, ainda havia um mundo a conquistar e dominar e um importante exército de reserva a manter, rebaixando os custos da força de trabalho, hoje em dia, há um excesso de trabalhadores a ser eliminado, pois já não contribui sequer para o rebaixamento da força de trabalho e atrapalha discursos superficiais do tipo “faça a sua parte” para, por exemplo, acabar com a fome, porque a situação evidencia a inoperatividade dessas ações individuais e que a solução do problema se torna cada dia mais impossível dentro dos marcos do capitalismo.6 A política brasileira em relação ao coronavírus faz parte deste contexto, uma vez que contribui imensamente para a eliminação de parte deste excesso do ponto de vista capitalista – já foram mais de 240 mil mortos com perspectivas de uma elevação “nunca antes vista na história” nos próximos 15 dias.

Dentro do quadro econômico da barbárie, para cuja compreensão a teoria de Rosa Luxemburgo só tem a contribuir, assim também o tem as consequências que ela tirou, em sua época, para o movimento operário caso ele não respondesse às barbáries cometidas contra ele próprio na Primeira Guerra Mundial através de uma avaliação fria da conjuntura e uma estratégia de luta mais ampla que os limites do parlamentarismo. Os avanços do imperialismo na época de Rosa Luxemburgo tinham chegado ao limite de trazer à Europa os horrores perpetrados nas colônias - que Luxemburgo denunciou como ninguém – mas eles não seriam frenados se o socialismo não fosse capaz de reavaliar sua tática e reconstruir o movimento operário combativo. Se falhassem nessa tarefa, uma nova guerra eclodiria uma vez que no arranjo político das potências uma vitória ou uma derrota da Alemanha teria como única saída uma nova guerra mundial, o que de fato ocorreu7. Luxemburgo talvez não esperasse que a Segunda Guerra Mundial trouxesse para a Europa outra tecnologia aplicada nas colônias, os campos de concentração, industrializados pelos alemães, mas sua análise político-econômica não poderia ser mais apurada. A conjuntura que vivemos também não apresenta um futuro bonito. Em verdade, as necessidades do capital de intensificar a expropriação do trabalho fez com que a burguesia se aliasse aos piores setores da sociedade brasileira, àqueles que vivem no submundo da sociedade capitalista esperando apenas uma oportunidade para se tornarem movimentos de massa, os fascistas.

Com uma esquerda combalida, desorganizada, no Brasil, outras ações apresentadas por Luxemburgo parecem ser importantes de serem lembradas. Ela dedicou sua vida ao trabalho de formação das bases, à descortinar os aspectos político-econômicos da sociedade em que vivemos, ao trabalho de formiguinha, procurando também levar os trabalhadores para organizações revolucionárias. Ao mesmo tempo, não fechou seus olhos à auto-organização da classe. Como diz o professor Lincoln Secco, “estamos entrando numa longa noite”, a batalha será longa e, provavelmente, terá que ser realizada nas sombras; pensar como organizar esse trabalho de longo prazo e esclarecer os objetivos estratégicos parece ser uma discussão mais necessária do que as próximas eleições. De que servem eleições em um estado de exceção?

capa

Rosa Rosa Gomes é autora do livro Rosa Luxemburgo: crise e revolução publicado pela Ateliê Editoral e tradutora do livro com textos de Rosa Luxemburgo que será lançado pela Maria Antonia Edições com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, Fraude Capitalista e outros escritos.

https://mariaantoniagmarx.blogspot.com/2020/12/rosa-luxemburgo-crise-e-…

 

 

 

 

 

 

 

1LUXEMBURG, Rosa. A Acumulação do Capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

2Se bem que Silvia Federici fala do papel do cerceamento do corpo da mulher no período de transição do feudalismo para o capitalismo. FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

6É claro que a clareza disso não tem levado à uma unidade dos trabalhadores e combate à ordem burguesa. Antes tem levado à uma aceitação geral da competitividade como intrínseca ao homem e à ideia de que “que os mais fortes sobrevivam” sem qualquer tipo de mediação a respeito das desigualdades sociais entre outras questões.

7LUXEMBURGO, Rosa. “A Crise da Social-democracia”. In: LOUREIRO, Isabel (org). Rosa Luxemburgo: textos escolhidos. São Paulo: Unesp, 2011, vol. 2.


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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