Ano 2 nº 03/2021: A Era do Autoritarismo Acabou? Redemocratização, Consenso Neoliberal e a Copa União de 1987 - Guilherme Nunes

boletim 2-3


Mundo acadêmico ...

 

A ERA DO AUTORITARISMO ACABOU? REDEMOCRATIZAÇÃO, CONSENSO NEOLIBERAL E A COPA UNIÃO DE 1987

 

Guilherme Machado Nunes

Doutorando em História - UFRGS

 

1987

Nabil Abi Chedid, colagem por Canellas

 

O título brasileiro do Flamengo em 2020 reacendeu uma velha e interminável polêmica: afinal, quem é o campeão brasileiro de 1987? Para a justiça brasileira em todas as suas instâncias – e para este que vos escreve – o título pertence ao Sport Club do Recife, mas o objetivo das próximas linhas não é reafirmar isso. A ideia é pensar como os bastidores, as traições e os acordos de cúpulas que pariram a Copa União refletem a redemocratização brasileira e a formulação de um novo consenso que legitimasse a hegemonia burguesa no país.

Ao estudar o final da Ditadura e a composição da Nova República, David Maciel identifica a conformação de um novo bloco histórico que garantiria uma hegemonia neoliberal em oposição ao desenvolvimentismo a partir dos anos 1990. Construído a partir de 1930, o desenvolvimentismo atingiu seu apogeu durante o Milagre Econômico da Ditadura, política baseada, grosso modo, na tomada de empréstimos em condições favoráveis no exterior, arrocho salarial e repressão da classe trabalhadora e obras faraônicas – como Itaipu, a Transamazônica e os estádios de futebol gigantescos em regiões sem grandes clubes. Ainda segundo Maciel,

Por conta do caráter conservador do projeto desenvolvimentista instituído no Brasil, o seu apogeu criou as condições para o seu abandono e superação, não para sua manutenção numa versão mais reformista ou mesmo seu aprofundamento numa perspectiva nacionalista, distributivista ou de esquerda, pois a dependência ao capital externo foi ampliada com a associação subalterna do capital nacional a ele […]. Além disso, a Ditadura Militar associou intervencionismo estatal a autoritarismo e gestão tecnocrática, como se o mesmo fosse incompatível com a democracia e o controle popular, dando margem à dicotomia tipicamente liberal entre Estado e sociedade civil.1

É claro que a mudança de um padrão de acumulação para outro não se dá automaticamente. Já no Governo Sarney, por exemplo, tivemos um último suspiro de política desenvolvimentista com o Plano Cruzado, de 1986. Embora previsse o controle dos gastos públicos, o plano do Ministro Dílson Funaro controlava preços, salários e previa a renegociação da dívida externa atrelada à criação de um fundo de investimentos para as empresas nacionais.2 Apesar da empolgação dos primeiros meses, rapidamente o plano começou a dar sinais de desgaste e insuficiência, principalmente em função de efeitos colaterais dos congelamentos de preços, como a fuga de recursos financeiros de ativos controlados (caderneta de poupança) para não-controlados (ações, imóveis, dólares), queda de superavit na balança comercial e desequilíbrio nos preços, o que fez com que seu sucessor, Bresser Pereira, classificasse o plano como “populismo econômico”, apontando para um novo consenso que se formava.3

Foi justamente o Campeonato Brasileiro de 1986 – momento em que o velho ainda não morreu e o novo ainda está para nascer – que catalisou uma série de contradições e polêmicas que tornaram quase inviável a realização de um certame justo e adequado aos novos padrões em 1987. É preciso, portanto, compreender como se chegou nele.

 

Onde a Arena vai mal, um time no Nacional”

 

Enquanto os militares batiam cabeça em relação a como proceder diante da crise do petróleo de 1973, que colocava em xeque todo o modelo de financiamento do Milagre, o MDB conseguia vitórias eleitorais importantes nas eleições de 1974. Na Câmara, a ARENA viu sua bancada reduzir de 233 para 203 Deputados, ao passo que a oposição dobrou sua representação, saltando de 87 para 161 parlamentares (as cadeiras haviam aumentado de 310 para 364). Em estados como São Paulo, Guanabara, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, o MDB conseguiu, ainda, maioria nas Assembleias Legislativas.4

Um ano depois, em 1975, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) se viu sem o seu mandatário de longa data. Depois de quase vinte anos de presidência, João Havelange deixava a CBD para assumir a FIFA, e para seu lugar os militares escolheram o Almirante Heleno Nunes – é dele a frase “onde a Arena vai mal, um time no Nacional”. Em seu primeiro discurso, Nunes se comprometeu a fragmentar a CBD em Confederações autônomas,5 promessa cumprida e que criou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em 1979.

Antes disso, no entanto, a gestão de Nunes cumpriu com rigor e produtividade invejáveis o projeto de integração nacional da Ditadura através do futebol: enquanto o milagre dava sinais de desgaste e o MDB crescia, o Almirante Heleno Nunes garantia vagas no Campeonato Brasileiro como forma de ocupar os estádios construídos via Milagre e como forma de chegar com força a todos os cantos do país. O Campeonato Brasileiro foi sendo inchado até chegar à inacreditável marca de 94 clubes em 1979 – e isso porque Corinthians, Santos, São Paulo e Portuguesa boicotaram o certame. O primeiro Brasileirão organizado pela CBF nasceu umbilicalmente ligado aos militares.

A partir dos anos 1980, com o descrédito cada vez maior da Ditadura, o rechaço às ingerências militares no futebol e uma crise econômica que tornava viagens de longuíssimas distâncias quase inviáveis, a CBF começou a rever seu modelo. Some-se a isso a chegada da lógica da globalização e da abertura de mercados nos anos 1980. O futebol tornava-se cada vez mais um produto, que parecia muito promissor aos olhos do capital. Tome-se o caso italiano como exemplo: após fechar suas fronteiras futebolísticas em virtude de uma humilhante eliminação para a República Popular Democrática da Coreia na Copa do Mundo de 1966 – sim, a Itália já foi eliminada pelas duas Coreias em Copas – o mercado italiano se abria por completo nos anos 1980, e empresas como FIAT, Círio e outros investidores menos nobres (especialmente das regiões da Sicília, Calábria e Nápoles…) transformaram o Calcio em uma espécie de NBA do futebol por quase duas décadas. O campeonato brasileiro precisaria se profissionalizar e, especialmente, ser cada vez mais visto para fazer parte desse novo cenário, onde não havia mais espaço para uma centena de clubes disputando o mesmo campeonato nacional.6

É nesse novo contexto, com exigências mercadológicas inéditas e após a transição pactuada para o primeiro governo civil em 21 anos, que a CBF realizou eleições, em janeiro de 1986. Assim como acontecera no colégio eleitoral, um ano antes, um acordo de bastidor garantiu a vitória da oposição e a derrota do candidato dos Militares. Após dois mandatos, Giulite Coutinho, dirigente de ótimo trânsito com a Ditadura, tentou fazer seu sucessor mas acabou perdendo para uma articulação liderada por Nabi Abi Chedi. Homem forte do interior paulista – não à toa dá nome ao estádio do Bragantino – Chedi fora Deputado Estadual pela ARENA, mas embarcou no PFL com o fim do bipartidarismo. Ao prever que a votação poderia dar empate e que, nesse caso, o critério de desempate era a idade, Chedi rebaixou-se a vice na chapa, tornando o carioca e ex-presidente da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, Octávio Pinto Guimarães, o cabeça. Assim como ocorrera um ano antes, em Brasília, o PFL passava a perna nos militares.

Foi essa a dupla responsável por organizar o campeonato brasileiro de 1986. Quem está mais familiarizado com o esporte pode imaginar o que deve ter sido uma fórmula de certame elaborada por um presidente da FERJ, e é sobre ela que falaremos agora.

 

Formulismos, traições e judicialização: o biênio 86-87

 

Ao longo de toda a década de 1980 os principais clubes brasileiros demonstraram descontentamento com as fórmulas confusas e a grande quantidade de equipes no Campeonato Brasileiro. Embora houvesse – a depender do ano – taças de ouro, prata e bronze, não havia um sistema de divisões bem definidos, e nem um critério técnico claro e objetivo que definisse seus participantes, com descenso e ascenso de um ano para o outro. Talvez o primeiro presidente que tenha manifestado seu descontentamento e apresentado uma proposta clara tenha sido Sílvio Kelly dos Santos, do Fluminense. Em entrevista ao Jornal dos Sports em fevereiro de 1981, o cartola tricolor lamentou as baixas bilheterias e exigiu que o Campeonato tivesse 28 clubes (atenção para esse número), “não importando o nome deles” e baseado “no campeonato brasileiro anterior”.7

Quando a dupla Chedi-Guimarães assumiu a CBF no início de 1986, havia forte pressão para a reformulação do certame, e o número de 28 participantes parecia o mais adequado para a maioria dos clubes do país. Enquanto o representante do Fluminense na CBF elaborava uma fórmula com esses requisitos e o vice-presidente do Vasco, Eurico Miranda, liderava uma ameaça de boicote dos clubes do Rio caso não fossem atendidos, Nabi Abi Chedi apresentava um campeonato com 44 clubes: os 22 campeões estaduais mais 22 times classificados por critérios técnicos de acordo com o campeonato anterior.8

No dia 10 de julho de 1986, a Associação de Clubes – uma espécie de pré Clube dos 13, do qual trataremos a seguir – se reuniu para elaborar sua fórmula e apresentá-la como contraproposta à da CBF. A entidade máxima do futebol, aliás, pela primeira vez cogitou publicamente um sistema com duas divisões, uma solução classificada pela CBF e pela imprensa como uma “fórmula conciliatória”.9

A solução encontrada para o impasse foi uma saída salomônica à brasileira, e é preciso bastante atenção para compreender como a CBF conseguiu vender um campeonato com 80 clubes como uma saída razoável,10 pois fez uma espécie de venda casada entre o campeonato de 86 e 87:

  1. os 44 clubes, proposta original da CBF, foram divididos em 4 grupos de 11 times cada, A, B, C, e D;

  2. outros 36 clubes foram organizados em um torneio paralelo, formandos os grupos E, F, G e H;

  3. os seis primeiros colocados dos grupos A-D + os 4 melhores independente do grupo + os campeões dos grupos E-H se classificariam para a próxima fase, que totalizaria 32 times (28 os grupos A, B, C e D e 4 dos grupos E, F, G e H). Todos os outros 48 clubes estariam automaticamente rebaixados e jogariam a segunda divisão em 1987;

  4. os 32 clubes restantes seriam divididos em 4 grupos de 8 (I, J, K e L); o “lanterna” de cada grupo também seria rebaixado, e os 28 clubes remanescentes formariam a Primeira Divisão em 1987;

  5. os 4 primeiros de cada grupo se classificavam para a fase de oitavas de final do campeonato brasileiro de 1986.

Resumindo: a primeira fase classificaria 32 clubes e rebaixaria 48. A segunda fase classificaria 16 para as oitavas de final, eliminaria outros 12, mas os garantiria na primeira divisão do ano seguinte e rebaixaria mais 4.

O que já era confuso se tornou ainda pior com a bola rolando, e um exame antidoping de um jogador do Sergipe deu início a um imbróglio político, jurídico e desportivo que tornou a organização do campeonato de 87 completamente inviável. No dia 29 de setembro, Joinville e Sergipe empataram em 1 a 1. No entanto, um jogador da equipe sergipana não passou no exame antidoping, e o regulamento previa que em casos como este, a equipe perderia os pontos da partida para seu adversário. Com isso, o Joinville acabou ultrapassando o Vasco da Gama na tabela, deixando o time de Eurico Miranda fora dos 32 classificados – e, portanto, rebaixado para o ano seguinte. O Vasco acionou a justiça contra o STJD pela punição, alegando que o resultado do exame não poderia ser divulgado, e a justiça deu ganho de causa ao clube cruzmaltino, lhe garantindo uma vaga entre os 32. Mas o Joinville também tinha base legal para estar entre os 32, e agora?

Primeiro, a CBF tentou excluir a Portuguesa, que havia entrado na justiça contra ela em função de um desentendimento por bilheterias. Os clubes paulistas ameaçaram abandonar o certame em solidariedade à Lusa, e não coube à CBF outra alternativa se não o modo default da época: acomodar todo mundo. Para não criar desequilíbrio entre os grupos (um deles ficaria com 9 times), a CBF aumentou de 32 – que agora eram 33 por imposição judicial – para 36 o número de participantes para a próxima fase, mas sem um critério para definir quem seriam os 3 novos integrantes da próxima fase. É aqui que entra Marco Maciel.

Deputado estadual e federal pela ARENA, Marco Maciel havia sido um dos articuladores do apoio do PFL a Tancredo Neves, e tornou-se Ministro Chefe da Casa Civil de José Sarney em 1986.11 Além de Ministro, Marco Maciel era vice-presidente do Santa Cruz, e conseguiu emplacar seu clube na próxima fase ao lado do também pernambucano Náutico e do Sobradinho, representante do Distrito Federal. Agora seriam 4 grupos de 9 times, com os dois últimos de cada grupo rebaixados, os 7 primeiros garantidos na primeira divisão do ano seguinte e os 4 primeiros de cada grupo indo para as oitavas de final do campeonato.

O torneio reservou algumas surpresas, como o rebaixamento de Botafogo e Coritiba (atual campeão brasileiro) e a surpreendente campanha do América-RJ, que chegou até a semifinal. Ao término do certame, já no mês de fevereiro de 1987, o São Paulo derrotou o Guarani nos pênaltis e sagrou-se campeão de um dos mais confusos e judicializados torneios nacionais que o Brasil já havia visto. Até então.

 

A Copa União de 1987

 

Enquanto o São Paulo levantava a taça de campeão brasileiro de 1986, em fevereiro de 1987 o Brasil declarava moratória. A inflação daquele mês havia superado 15%, e fecharia o semestre em 26,06% no mês de junho.12 A classe trabalhadora perdeu 30% de seu poder de compra em um ano, e o número de greves saltou de 1.004 para 2.188 no período.13

Em um cenário de tantas incertezas financeiras – e diante da bagunça que havia sido o campeonato de 1986 – o Botafogo não aceitou seu rebaixamento, alegando que o campeonato brasileiro teve alterações de regulamento durante o torneio e que times que haviam acabado atrás dele – como Santa Cruz e Náutico – permaneceram na Primeira Divisão.14 O Coritiba aproveitou o embalo, e foi seguido por Sport e outros times. Diante de um país em crise, com uma inflação galopante, o fracasso de 86 e diversas pendências judiciais, Octávio Pinto Guimarães anunciou, em julho de 1987, que a CBF não teria condições financeiras de organizar o campeonato brasileiro.15

Dois dos principais defensores da autonomia e organização dos clubes – o que significava, também, a defesa de um campeonato nacional menos inchado – sentiram o cheiro de sangue desde o início de 1987 e foram para cima da CBF. Márcio Braga, presidente do Flamengo, e Carlos Miguel Aidar, presidente do São Paulo, em reunião com Guimarães em abril daquele ano, se recusaram a ceder seus atletas para a seleção brasileira realizar amistosos. Na saída da sala, o eufórico mandatário flamenguista sentenciou: “é o fim do autoritarismo no futebol brasileiro”. Talvez nem mesmo o próprio Márcio Braga tenha se dado conta do quão simbólica foi essa afirmação.

Deputado Federal pelo PMDB na ocasião, Márcio Braga lançava mão da ideia que rompeu as barreiras da oposição e se tornou palavra de ordem em toda a sociedade brasileira: o “autoritarismo” sintetizava tudo que havia de errado no Brasil. Mas afinal, o que era exatamente aquele autoritarismo? Aqui é importante voltar para as primeiras linhas do texto e às formulações de David Maciel. Com o colapso do desenvolvimentismo decorrente de seu caráter associado ao capital externo, o novo consenso formulado pela burguesia brasileira – assim como já ocorria no coração do capitalismo há quase uma década – foi o neoliberalismo. O Estado passou a ser um problema, e suas ingerências seriam “autoritárias”. Os liberais, portanto, abandonaram seus aliados de 64 e passaram a denunciar suas práticas. Não eram as mortes, torturas e prisões arbitrárias que constituíam o “autoritarismo” largamente denunciado – sobre isso era preciso silenciar. Autoritárias eram as interferências do Estado na economia brasileira. Na nova chave que estava sendo gestada, “Autoritarismo” era todo e qualquer freio imposto pelo Estado às novas formas de acumulação.

Entre 1930 e 1964 o Brasil criou 53 estatais. Castelo Branco e Costa e Silva criaram mais de 100, e Médici sozinho criou 99. Assim, “ao longo dos anos 1980 o enfraquecimento politicamente orientado das empresas estatais fortaleceu sua demonização como antro de ineficiência, desperdício e cabide de emprego.”16 O Estado e suas empresas surgiam como um entrave ao novo padrão de acumulação e, mesmo que de forma inconsciente, Márcio Braga reproduzia essa mentalidade, como uma espécie de Fernando Henrique Cardoso avant la lettre: ao decretar o “fim da Era Vargas”, FHC não se referia às prisões, torturas e ao fechamento do Congresso, mas às estatais e à CLT. Os grandes clubes do país não tinham particular discordância com a relação da CBF com a Ditadura, seus formulismos e a centralização da organização do campeonato, mas a antiga aliada tornava-se um entrave na conquista desse novo mercado turbinado por grandes marcas e dinheiro de TV. Quanto mais rápido os grandes clubes do país se organizassem, maiores seriam as suas fatias do novo bolo que estava no forno. Foi nesse contexto que os clubes se organizaram para criar o campeonato brasileiro de 1987.

Em julho de 1987 começou a tomar forma o Clube dos 13, reunião dos clubes mais ricos e de maior torcida do Brasil. Originalmente seriam apenas 12: os 4 grandes de São Paulo, os 4 grandes do Rio, a dupla grenal e a dupla de Minas. O grupo achou por bem adicionar um nordestino, e acabou chamando o Bahia. Durante as reuniões, outros dois presidentes, além dos mandatários de Flamengo e São Paulo, também se destacaram: Elias Kalil, do Atlético-MG (pai de Alexadre Kalil, também ex-presidente do Galo e atual prefeito de Belo Horizonte pelo PSD) e Paulo Odone, do Grêmio (à época, suplente na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul pelo PMDB e que assumiria a cadeira logo após o término da presidência no tricolor, em 1992).

Como forma de “nacionalizar” ainda mais o torneio e garantir número par de participantes foram convidadas mais três equipes: o Goiás, o Coritiba e novamente o Santa Cruz de Marco Maciel. Nascia, assim, a Copa União, o campeonato brasileiro de 1987. Dois dos semifinalistas de 86 haviam sido deixados de fora no canetaço (Guarani e América-RJ), assim como equipes que haviam ficado entre as 16 melhores no torneio, como Portuguesa, Joinville e Criciúma. A indignação técnica e esportiva se tornou rapidamente uma indignação financeira: o publicitário João Henrique Areias, vice-presidente de Marketing do Flamengo, elaborou um inédito e ousado plano que contou com vultuoso patrocínio da Coca-Cola, transmissão e verbas gigantescas da TV Globo, parceria da Varig para transportar as equipes pelo Brasil e até mesmo o lançamento de um álbum de figurinhas pela Editora Abril – que apoiou a criação do torneio nessas bases desde seu nascedouro via Revista Placar.

Ao perceber que o torneio seria um sucesso e insuflada pelos clubes que haviam sido excluídos da competição sem justificativa técnica, a CBF voltou atrás e resolveu organizar o campeonato ao lado do Clube dos 13. Aqui é importante perceber mais uma vez como, evidentemente, não há “mocinhos” na situação: a CBF só mudou de ideia quando percebeu que o iminente sucesso da Copa União poderia minar seus poderes, mas a Copa em si era um torneio absolutamente excludente e que pretendia segregar o futebol brasileiro por acordos de bastidores e sem levar em conta questões esportivas. No final de agosto, a CBF sugere, mais uma vez, uma espécie de solução de consenso, levando em conta o campeonato e as promessas de 86: os 16 clubes da Copa União formariam o módulo verde, com transmissão da TV Globo, dinheiro da Coca-Cola etc. Os times excluídos do clubinho formariam o Módulo Amarelo, que ocorreria em paralelo e em condições bem mais modestas. Campeão e vice dos dois módulos fariam o quadrangular final para decidir o campeão brasileiro.

A sugestão desagradou a quase todos. Enquanto o Clube dos 13 firmou posição e se recusou a aceitar o cruzamento final, afirmando que o campeão brasileiro sairia de seu torneio, os clubes do módulo amarelo também não gostaram de não jogar contra os clubes do módulo verde ao longo do certame. Estamos falando de uma época em que grandes patrocinadores e dinheiro da TV ainda eram novidade, e os clubes dependiam muito da bilheteria de seus jogos – as equipes do módulo amarelo não teriam Flamengo, Vasco, Corinthians e cia. em seus estádios, atrativos não só para suas torcidas como chance de fazer caixa com o caráter nacional das torcidas dos clubes do eixo RJ-SP.

Os clubes do módulo amarelo – à exceção do América-RJ, que boicotou o campeonato – cederam, com a promessa do quadrangular final com os times do módulo verde. Aos olhos de hoje, o módulo amarelo tem toda a pinta de Segunda Divisão (Vitória, Náutico, América-MG, Criciúma…), mas é importante lembrar que muitos clubes de excelente campanha em 86 estavam ali, além do Bangu. Turbinado pelo dinheiro da contravenção de Castor de Andrade, o clube havia sido vice-campeão brasileiro em 1985 e possuía jogadores como Mauro Galvão, Marinho e Paulinho Criciúma. Eram times fortes e que poderiam sim fazer frente a qualquer dupla que viesse do módulo verde.

No dia 3 de setembro de 1987, 8 dias antes do início do campeonato, aconteceu um fato fundamental para a compreensão do imbróglio e que, em última análise, é o que garantiu a vitória judicial do Sport em todas as instâncias: em reunião da CBF e do Clube dos 13, o regulamento que previa o quadrangular final foi assinado pelo representante do Clube dos 13, Eurico Miranda. Revoltados, os clubes espernearam – e esperneiam até hoje – alegando que foram traídos pelo dirigente vascaíno. Provavelmente foram, mas aos olhos da justiça e dos clubes do módulo amarelo isso é irrelevante – todos sabiam a regra do jogo quando o campeonato começou no dia 11 de setembro.

Os dois módulos transcorreram em paralelo, até que Flamengo e Internacional chegaram à final do módulo verde e Sport e Guarani (atual vice-campeão brasileiro, não custa lembrar) fizeram a decisão do amarelo. Enquanto o Flamengo vencia o Inter e se declarava campeão brasileiro, Sport e Guarani conseguiram protagonizar uma das situações mais bizarras da história dos campeonatos brasileiros: empataram nos pênaltis. Após 24 cobranças e um empate em 11 x 11, os clubes acordaram por encerrar as penalidades – afinal, o que importava era o quadrangular final com os times do módulo verde.17 No quadrangular, Inter e Flamengo perderam por W.O. e o Sport derrotou o Guarani, sagrando-se campeão brasileiro em uma novela que é comentada até hoje.

O vice-presidente executivo do Sport, Luciano Bivar, saiu muito prestigiado de todo esse circo, tornando-se presidente do clube em 1989 – ano em que chegou à final da primeira Copa do Brasil, perdendo o título para o Grêmio. Em 1997 ele fundaria seu próprio partido, pelo qual seria eleito Deputado Federal em 1998: o Partido Social Liberal (PSL).

Conclusão: os vultos da Nova República

No ano seguinte, Clube dos 13 e CBF fizeram as pazes, com a entidade máxima do futebol voltando a organizar o campeonato brasileiro e a nova associação de clubes se dedicando exclusivamente a negociar contratos de televisão. Se hoje o Brasil possui um dos mais desiguais e concentradores sistemas de distribuição de dinheiro de TV,18 é graças à articulação dos grandes clubes brasileiros, que foram muito bem-sucedidos na identificação de um novo mundo que se abria com a globalização e os direitos de televisão durante a organização da Copa União de 1987.

Muitos dos protagonistas dessa engenharia tiveram importante carreira política, tornando-se atores fundamentais para a consolidação do consenso neoliberal. A mesma lógica concentradora e excludente vista no biênio esportivo de 86 e 87 enraizou-se nos legislativos pelo país e na Câmara dos Deputados. Se a Constituição de 1988 representou uma série de conquistas históricas para a população brasileira, boa parte dos seus artigos e mecanismos de justiça e redistribuição de renda jamais saíram do papel. A exemplo do quadrangular de 87, tornaram-se letra morta.

A própria Constituição rapidamente mostrou-se um entrave para certos objetivos, sendo facilmente alterada. Enquanto Fernando Henrique Cardoso consolidava o consenso em torno da hegemonia neoliberal – o príncipe dos sociólogos possuía muito mais pedigree e know how que Fernando Collor de Melo – a burguesia brasileira começou a ficar preocupada com as eleições presidenciais de 98. Por que mudar? Assim, em janeiro de 1997 a Câmara dos Deputados votava a emenda da reeleição, que garantiria um novo mandato a FHC. Em maio, a Folha de São Paulo estampava em suas páginas que os Deputados Ronivon Santiago e João Maia, do PFL do Acre, haviam sido gravados afirmando que receberam 200 mil reais para votar pela emenda.19 O PFL era o partido do vice-presidente da República, o pernambucano e ex-presidente do Santa Cruz, Marco Maciel.

 

1MACIEL, David. Ditadura Militar, transição política e hegemonia neoliberal no Brasil. In SILVA, Carla Luciana et. all. Ditadura, transição e democracia: estudos sobre dominação burguesa no Brasil contemporâneo. Porto Alegre: FCM, 2016, p. 187.

2Ibidem, p. 196.

3Cf. ALMEIDA, Maria H. T. Crise econômica e interesses organizados: o sindicalismo no Brasil nos anos 80. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 83.

4Cf. MACIEL, David. A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República (1974-1985). São Paulo: Xamã, 2004, p. 103.

5Cf. SANTOS, Daniel de Araújo; MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Década da esperança ou década perdida? A reestruturação do futebol brasileiro nos anos 1980. In QUADRAT, Samantha Viz (Org.). Não foi tempo perdido: os anos 80 em debate. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014, p. 101.

6A própria TV Globo, que logo aparecerá nessa história, transmitiu o campeonato italiano em 1985, desistindo da ideia após péssima temporada de Sócrates na Fiorentina, o retorno de Zico ao Flamengo e o título do nanico Hellas Verona. Ver https://trespontos.blog.br/2016/10/11/italiano_na_globo/

7Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1981, p. 4. Disponível em <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=112518_05&Pesq=CND&pagfis=5850> Acesso em 27 fev 2021.

8Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 9 de julho de 1986, p. 5. Disponível em <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=112518_05&Pesq=CND&pagfis=37159> Acesso em 27 fev 2021.

9Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 10 de julho de 1986, p. 11. Disponível em <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=112518_05&Pesq=%2228%20clubes%22&pagfis=37184> Acesso em 27 fev 2021.

10A fórmula foi checada em https://pt.wikipedia.org/wiki/Campeonato_Brasileiro_de_Futebol_de_1986 e nas páginas do Jornal dos Sports entre julho e agosto de 1986.

12ALMEIDA, Op. cit., p. 91.

13Ibidem, p. 92.

14A reclamação faz sentido: Santa Cruz e Náutico não acabaram entre os 32, mas ganharam a vida nos bastidores em função do caso Sergipe-Joinville-Vasco. Tendo uma inexplicável segunda chance, acabaram na frente do Botafogo.

15As próximas linhas estão baseadas em GALINDO, André; ZIRPOLI, Cássio. 1987 – de fato, de direito e de cabeça. São Paulo: Editora Onze Cultura, 2017, e https://trivela.com.br/brasil/como-surgiu-o-clube-dos-13/.

16MACIEL, Op, cit., p. 195.

17Posteriormente a CBF declarou o Sport campeão do módulo amarelo pela melhor campanha.

18Ver SANTOS, Anderson D. G. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Curitiba: Appris, 2019; LEITE JR. Emanuel. Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de “espanholização”. Edição do autor, 2015.

 


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