Ano 2 nº 05/2021: A Independência sob o Olhar de Emília Viotti da Costa em Introdução ao Estudo da Emancipação Política do Brasil - Clara Schuartz

boletem 2-5


Mundo acadêmico ...

 

A INDEPENDÊNCIA SOB O OLHAR DE EMÍLIA VIOTTI DA COSTA EM INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DO BRASIL

 

Clara Monteiro Schuartz

Graduanda em História - UNICAMP

 

DeopsEmilia

 

O texto Introdução ao Estudo da Emancipação Política do Brasil teve sua primeira publicação datada de 1968, encontra dentro da coletânea Brasil em Perspectiva, organizada por Carlos Guilherme Motta. O contexto da primeira publicação é marcado pela atuação de Viotti como professora no departamento de História da Universidade de São Paulo, que se encerra em 1969 com a determinação de sua aposentadoria compulsória e posterior exílio nos Estados Unidos.

O ensaio é dividido em uma série de seções, que vão de uma análise mais ampla sobre o sistema colonial e seguem para uma discussão mais específica sobre a situação brasileira até os acontecimentos mais próximos de 1822 e, por fim, sobre os debates em torno da Constituição de 1824. Viotti inicia o texto pela seção: “A historiografia tradicional: uma versão que se repete”. A autora traz na introdução um panorama sobre a historiografia classificada por ela como tradicional e seu trato a respeito do processo de Independência: menciona Varnhagen, Tobias Monteiro e Oliveira Lima, como exemplos de discussões consolidadas na historiografia brasileira que focam quase exclusivamente nos acontecimentos políticos e em uma análise descritiva dos movimentos que acontecem próximos ao sete de setembro. No olhar da Viotti essa historiografia não busca entender os sentidos desses processos anteriores à independência, mas acaba se tornando desnecessariamente descritiva, como se o desenrolar da história fosse resultado apenas de acontecimentos específicos, extremamente focados nas figuras individuais do processo de independência e seus anseios. Essa historiografia e esse tratamento do processo colocam a independência no lugar de “lenda histórica” para Viotti, marcada pela identificação, tanto da sociedade civil quanto dos historiadores, em relação aos personagens que marcam o desenrolar dos acontecimentos em 1822.

Partindo dessas observações, Viotti passa a tratar do que ela classifica como a nova historiografia. Os principais exemplos trazidos no texto como precursores de uma modificação nas diretrizes da análise da independência são as obras Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr e Introdução à história dos fundadores do Império do Brasil, de Octávio Tarquínio de Souza. Nesta nova historiografia o movimento da independência aparece relacionado com o desenvolvimento do capitalismo industrial e os entraves do antigo regime.

É na seção “Estado atual de questões” que a autora traz as principais perguntas norteadores do texto:

Como se manifesta no país a crise do sistema colonial? Até que ponto o desenvolvimento da colônia criou condições para o rompimento do pacto colonial? De que maneira os diversos grupos sociais assumem a consciência dos inconvenientes da situação colonial? Como se comportam em relação às ideologias literárias? Quais os grupos sociais que fornecem os maiores contingentes revolucionários e qual o seu grau de consciência e suas possibilidades de atuação? Em que medida os grupos dominantes, tradicionalmente associados à política colonial, dela se dissociam e por quê? Finalmente, como repercutem na América os sucessos da política européia?1

A forma como Viotti organiza o texto a seguir segue, portanto, de análises mais amplas sobre a crise do sistema colonial no mundo e seguem afunilando para uma discussão sobre a situação marginal portuguesa, e, depois, para uma análise mais específica dos processos internos que, no que diz respeito à independência, devem ser analisadas a partir da chegada da família real ao Brasil em 1808.

O texto todo se baseia nas colocações feitas pela autora na seção “A crise do sistema colonial”. É nesse momento que a Viotti define o que caracteriza o mercantilismo, que será o ponto base para entender a forma como essa crise mais ampla se desenrola no Brasil. O mercantilismo aparece para a autora como a expressão teórica da aliança entre capitalismo e Estado. Nesse sentido, para Viotti, o mercantilismo entra em crise justamente quando o capital industrial se torna preponderante e essa burguesia passa a buscar poder político. Nesta seção a autora adianta que o caso do debate sobre mercantilismo no Brasil se dá de forma diferente, já que na colônia a crítica ao sistema colonial aparece na ânsia por mudanças políticas na relação entre metrópole e colônia, mas não uma crítica à estrutura de produção colonial.

O texto segue depois dessa análise para uma discussão sobre a crítica ao sistema colonial no Brasil. Alguns elementos são elencados por Viotti como motivos do aumento da crítica no Brasil ao sistema colonial, especialmente os monopólios. Motivado em parte pelo enriquecimento das elites coloniais, vão se rompendo aos poucos nas décadas de 1810 e 1820 a comunhão de interesses entre as elites coloniais e a metrópole. É justamente nesse momento que a autora aponta a chegada de D. João VI em 1808 como um evento interno fundamental na análise da Independência. Para a Viotti, D. João VI incorpora em suas políticas uma tentativa de conciliação entre o interesse de quebra dos monopólios comerciais por parte dos colonos e a pressão dos comerciantes portugueses e da Coroa em manter esses laços coloniais. Esse jogo de forças se manifesta em todo o período em que João VI está no Brasil, marcado por alguns momentos de menor restrição, como a abertura dos portos logo no início de 1808, e de momentos de maior restrição, com o alvará de 1811, que traz alguns entraves para a admissão de navios estrangeiros em Portugal e no Brasil.

A seção “Reações à política de D. João VI” inicia a discussão de Viotti sobre a recepção dos diferentes grupos da sociedade brasileira e também da portuguesa em relação a essa tensão entre manutenção e quebra de monopólios. De acordo com a autora é necessário olhar não só para o sentido liberalizante das medidas de D. João VI, mas também seu caráter mercantilista, que se apresenta em uma série de manutenções de privilégios aos portugueses em território colonial. A autora olha nesta secção também para a história e tradição das ideias liberais no Brasil, a partir de importantes eventos que antecedem a Independência como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração do Rio de Janeiro (1794), Conjuração Baiana (1779), Conspiração de Suassuna (1808) e a Revolução Pernambucana de 1817. Todos esses movimentos foram influenciados pelo pensamento que a autora denomina Ilustrado e que ligavam de forma bastante íntima os movimentos de luta contra a Coroa na colônia com o pensamento francês. A Conjuração Baiana coincide com a fundação da primeira loja maçônica na Cidade da Barra, e posteriormente mais uma série de outras sedes dessa sociedade secreta. As sociedades secretas são organizações que para a Viotti tiveram uma importância muito grande no processo da Independência especialmente em meados de 1820, e reuniam, em sua relativa heterogeneidade, sujeitos representativos da sociedade colonial, incluindo professores, funcionários, comerciantes, fazendeiros e padres, se tornando, portanto, um movimento de elite dentro da luta pela Independência.

Em seguida a autora parte para entender qual era o liberalismo contido nas discussões desses grupos como a maçonaria. Para ela eram ideias que se contradiziam com a própria estrutura socioeconômica brasileira. Se, no caso da Europa, a crise do mercantilismo era marcada pela luta de uma burguesia industrial, a crítica a esse sistema no Brasil parte das próprias elites agrárias intimamente relacionadas com uma estrutura econômica colonial e, portanto, mercantilista. Um grande exemplo disso está nos participantes do movimento de 1817 em Pernambuco, que eram em sua maioria os donos das grandes fortunas pernambucanas, enquanto os letrados que participaram do movimento estavam ligados por laços de família às camadas senhoriais. A escravidão era o principal elemento que se apresentava como contradição do liberalismo no Brasil, na medida em que a própria manutenção da escravatura passa a ser reivindicada como direito à propriedade.

O liberalismo toma, portanto, sentido no Brasil como uma forma de liquidar os laços coloniais e os monopólios, mas não mudar a estrutura da sociedade. Não foi, para a autora, um movimento que mobilizou de forma intensa o nacionalismo, mas sim uma face antimetropolitana do sentimento colonial, especialmente porque o nacionalismo tinha muitos entraves na estrutura da sociedade brasileira: distância e falta de identificação de unidade entre as províncias, além da grande distância entre as elites e os letrados e a população majoritária composta por escravos, alforriados e brancos miseráveis. Existia um medo muito grande que pairava nesses grupos de conquistar a independência por meio da rebelião popular, na medida em que essa colocaria em xeque a própria manutenção da escravatura. A autora identifica, portanto, que a própria independência associada ao príncipe seria uma forma de dispensar a necessidade de uma rebelião popular no processo. A independência para esses grupos coloniais estava totalmente dissociada de uma ideia de subversão ou modificação na ordem social e econômica do futuro país. Mas ligada, sim, a uma luta contra os monopólios.

É neste momento do texto que a autora trata um pouco sobre o olhar popular para as movimentações da Independência, tanto na seção “As várias faces da Revolução” quanto em “Limites do liberalismo e do nacionalismo no Brasil”. A autora aponta que nos grupos de escravizados e miseráveis a independência se apresentava como uma promessa de emancipação escrava, além da possibilidade de realizar a igualdade econômica e romper com as barreiras de cor no país. Percebemos, portanto, nesse momento do texto, que a ideia da revolução no Brasil mobilizava e tencionava visões opostas de diferentes grupos, o que torna ainda mais caro aos grupos dominantes a solução de uma independência sem a mobilização popular. É nesse sentido que, de acordo com Viotti, para as elites brasileiras, nem sempre houve interesse em um rompimento total com a Coroa portuguesa por parte da colônia:

Observando-se os textos de 1822 percebe-se que a palavra Independência nem sempre esteve associada à idéia de separação completa da metrópole. Refere-se frequentemente apenas à independência administrativa. Com exceção de uma minoria radical, os elementos mais chegados a D. Pedro pareciam desejar, até o último momento, a monarquia dual. A idéia de Independência completa e definitiva só se apresentou no último momento, imposta pelos atos recolonizadores das Cortes portuguesas.2

Em seguida a autora passa a tratar, nas próximas seções do texto, sobre a relação entre a visão portuguesa e brasileira a respeito da independência, os conflitos e aproximações na forma como esses diferentes grupos, não homogêneos, viam os acontecimentos no Brasil e em Portugal. Ocorre uma importante reação negativa dos portugueses às medidas liberalizantes de D. João VI, especialmente com a abertura dos portos em 1808 e o tratado de 1810 que garantia menores impostos aos produtos ingleses; Viotti afirma que, em 1820, a própria Revolução do Porto que acontece em nome dos princípios liberais, também tem como objetivo anular as medidas liberalizantes de D. João VI no Brasil. Essa tentativa dos portugueses de acabar com a liberdade de comércio e voltar à relação anterior com a colônia entraria em conflito com os brasileiros e com os estrangeiros aqui radicados.

Cada vez se torna mais difícil a conciliação entre os interesses brasileiros e portugueses, de acordo com a autora, e a própria ideia de monarquia dual se torna impraticável. Nesse momento em que se radicalizam as posições, Portugal pede a volta do príncipe, tornando urgente a declaração da Independência. A Independência começa a significar nesse momento para mais grupos o sentido de separação definitiva com Portugal, e D. Pedro aparece como solução para esse impasse, se juntando a grupos das sociedades secretas, que na Europa tinham um forte caráter antimonárquico, e realizando, aliado a esses grupos, a proclamação do 7 de Setembro.

Nos trechos finais do texto Viotti volta a enfatizar a emancipação política no Brasil na Independência como associada ao interesse de preservação da ordem estabelecida, que focava no rompimento com o sistema colonial mas a manutenção da ordem econômica, da escravidão, e de uma certa subordinação à economia colonial, que passa do domínio português para o britânico. A autora finaliza também trazendo algumas questões em torno da Constituição de 1824, especialmente no que diz respeito às garantias de liberdade e igualdade a todos perante a lei, excluindo a maior parte da população: os escravizados.

Afirmava-se a liberdade de pensamento e de expressão, mas não foram raros os que como Davi Pamplona ou Líbero Badaró pagaram caro por ela. Enquanto o texto da lei garantia a independência da justiça, ela se transformava num instrumento dos grandes proprietários. Aboliam-se as torturas, mas, nas senzalas, os troncos, os anjinhos, os açoites, as gargalheiras, continuavam a ser usadas, e o senhor era o supremo juiz decidindo da vida e da morte de seus homens.3

Um outro elemento bastante importante do texto é o lugar que Viotti dá, em suas discussões iniciais sobre a historiografia brasileira da Independência, ao livro Evolução política do Brasil de Caio Prado Jr., na medida em que “O caminho apresentado por Prado Jr. propõe pensar as contradições internas do processo histórico brasileiro e a explicação para o movimento da Independência”4. É com a referência de Prado Jr. que Viotti vai enfatizar a importância de entender o processo de independência associado ao movimento mais amplo de desenvolvimento do capitalismo industrial associado ao desenvolvimento interno da colônia.

É importante voltar, na conclusão das nossas análises, a um panorama sobre o momento de produção de Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil e a situação de Viotti na Universidade de São Paulo. Viotti se consolida, a partir da publicação de Da Senzala à Colônia em 1966, como uma historiadora da escravidão e uma defensora do papel político e social da academia como produtora de conhecimento para fora dos espaços universitários. Não são raras as entrevistas, colocações e depoimentos de Viotti que comprovam essa visão, de alguma forma endossada por suas críticas à reforma universitária do Mec-USAID e a inserção da lógica de mercado nas universidades, que levaram à sua aposentadoria compulsória em 1969. O texto aqui analisado se apresenta, nesse sentido, como uma denúncia às dinâmicas não emancipatórias do processo político da Independência, que se apresenta na prática para Viotti como uma forma de assegurar a ordem econômica e social, associada com o rompimento da restrição à liberdade de comércio e à autonomia administrativa.

 

1COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. Brasil em perspectiva. São Paulo: Difel, 1981.p.67

2 Ibidem, p.101

3 Ibidem, p.125

4 Ibidem, p.65


Expediente

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