Ano 2 nº 12/2021 (Edição Especial): Rebeliões da Senzala: caminhos sinuosos de um clássico - Gabriel Rocha

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REBELIÕES DA SENZALA: CAMINHOS SINUOSOS DE UM CLÁSSICO1

 

Gabriel dos Santos Rocha

Doutorando em História Econômica - USP

 

rebelioes

 

Antes de ganhar reconhecimento e se tornar um clássico sobre a luta de classes no Brasil, Rebeliões da Senzala enfrentou dificuldades para vir a público. Moura iniciou seu projeto de pesquisa para o livro na segunda metade dos anos 1940. Naquela ocasião o autor estava na casa dos 20 anos, vivia na cidade de Juazeiro, interior da Bahia, iniciava sua militância no PCB mantendo contato com os comunistas de Salvador (cidade onde havia morado). Também trocava correspondência com intelectuais que produziam no campo das ciências humanas como Donald Pierson, Emílio Willems, Arthur Ramos, Edison Carneiro. Foi neste contexto que Moura entrou em contato com seu correligionário de São Paulo, mais velho, experiente e prestigiado, Caio Prado Jr.; em um primeiro momento se apresentando, falando sobre seu plano de estudos e solicitando sugestões para a efetuação de seu projeto.

Caio Prado Jr. enviou uma carta em resposta a Clóvis Moura datada de 8 de março de 1949, em tom cordial, onde diz estar providenciando a remessa de um exemplar de Quilombo dos Palmares de Edison Carneiro – também militante do PCB – e prometendo enviar posteriormente uma segunda edição de seu História Econômica do Brasil logo que fosse publicada. Prado comentou a proposta do jovem Moura de escrever sobre as rebeliões de escravizados, porém, o aconselhando buscar outro tema de estudo:

“Não pretendo com isso desanimá-lo. Mas pelo contrário, sentido pela sua carta uma grande ânsia de criação e produção intelectual, contribuir para que não se perca e desoriente essa sua qualidade. Ao propor-se um assunto para estudo, um intelectual não deve ir buscá-lo no seu íntimo, trabalhar como que de dentro para fora. O caminho a seguir é o inverso: é procurar inspiração no mundo ou no meio que o rodeia. Vejamos o caso concreto do assunto que V. escolheu: as revoltas de escravos no Brasil. V. vive numa região onde a escravidão nunca teve grande papel. Acrescente-se a isso o fato de não encontrar a seu alcance fontes informativas conveniente, e a conclusão se impõe: para realizar seu trabalho, V. terá que desenvolver um esforço descomunal, e ele não alcançará com certeza o nível que V. aspira”(PRADO JÚNIOR, 1949)

Então, Caio Prado Jr. sugeriu que Clóvis Moura fizesse um estudo sobre a população local, ribeirinha e sertaneja de Juazeiro e proximidades:

“No entanto, não faltam à sua volta assuntos de maior interesse em que não somente V. se sentiria a vontade, como ainda estaria em condições de trazer contribuição apreciável para as nossas letras. Sua situação é no coração de uma das mais características regiões brasileiras, aliás duplamente interessante: como sertão e como ribeirinha de uma das grandes artérias históricas do Brasil. (...) Basta-lhe pegar a pena e contar com toda simplicidade o que V. observa a sua volta, e estará fornecendo a todos quantos se interessam pelas coisas brasileiras, informações preciosas”(PRADO JÚNIOR, Idem).

Felizmente o jovem Moura, na ocasião, aspirante a historiador, não seguiu os conselhos do notório intelectual paulista. Persistiu em seu objetivo de estudar os quilombos e insurreições negras do período escravista. O resultado foi sua estreia no campo da historiografia com uma obra seminal.

Em 1952, Rebeliões da Senzala estava pronto. Ao procurar uma editora para publicá-lo Moura mais uma vez recorreu a Caio Prado Jr. No entanto, a resposta foi negativa. Em carta de 21 de julho daquele ano, o editor e proprietário da Brasiliense elogiou o estudo do jovem pesquisador, parabenizou-o, mas alegou falta de recursos para publicação, além do investimento em um projeto de edição das obras de Monteiro Lobato, também proprietário da editora, ao qual estavam empenhados naquela ocasião:

“O que você apresenta e traz para o melhor conhecimento de nossa história, já é muito, e representa por certo um ponto de partida, que nos faltava, para a sistematização e compreensão geral de um assunto de considerável importância para nossa historiografia, que são as lutas de classe entre escravos e senhores. Aceite por isso minhas felicitações.

Quanto à edição de seu trabalho, estamos ainda no ponto que tive ocasião de lhe comunicar verbalmente: a Editora encontra-se com suas atividades paralisadas no que diz respeito a obras extra-programa. Estamos concentrados exclusivamente, por motivos de ordem comercial e financeira de que infelizmente não podemos nos afastar, nas edições de Monteiro Lobato, e daí não podemos, tão breve, desviar nossas atenções e recursos. A Editora teria a maior satisfação e desvanecimento em editar seu livro, mas para isso seria preciso que você não tivesse pressa. Não conheço suas disposições a respeito, e deixo por isso o assunto a seu critério” (PRADO JÚNIOR, 1952).

Não sabemos qual era o nível da pressa de Clóvis Moura em publicar seu trabalho. Sabemos que naquela ocasião o texto estava pronto, e inferimos que sua intensão era ao menos encaminhá-lo para publicação naquele mesmo ano. Porém o livro só veio a público sete anos depois daquela carta, em 1959, por outra editora, a Edições Zumbi. Uma pequena empresa com poucos recursos financeiros fundada em 1957 por Elvio Eligio Romero, Maria Antonietta Dias de Moraes e Emiliano Daspett, na cidade de São Paulo, localizada na Rua Barão de Tatuí, nº 214, Vila Buarque.

Os fundadores da Edições Zumbi eram militantes comunistas e publicavam obras que se alinhavam aos seus posicionamentos políticos, dentre as quais, Os 10 dias que abalaram o mundo e México Rebelde de John Reed, A Locomotiva de Afonso Schmidt, Sierra Maestra de Armando Gimenez. Segundo o historiador Gustavo Orsolon de Souza, Emiliano e Elvio eram paraguaios e haviam lutado contra a ditadura do General Higino Morinigo em 1947. A editora não possuía funcionários, os três sócios fundadores cuidavam de todas as funções, chegaram a publicar 16 títulos, todos com apenas uma edição. Três anos após sua fundação a Edições Zumbi encerrou suas atividades por problemas financeiros (SOUZA, 2013: P.72-73).

Rebeliões da Senzala foi lançado na União Brasileira de Escritores (UBE) em dezembro de 1959. Além das dificuldades de publicação, o reconhecimento da obra também não foi imediato, veio depois de uma década com sua segunda edição pela editora Conquista em 1972.  Em entrevista de 1995 para a revista Princípios, Clóvis Moura comentou sobre tal repercussão tardia:

“A primeira edição do livro teve pouca repercussão. Da crítica universitária não tive uma linha. Só começou a ser citado no Brasil depois que passou a ter referência nos Estados Unidos. Aí começaram a citar aqui. O Eugene Genovese, por exemplo, cita meu livro em um livro dele, chamando-o de excelente. Aí todo mundo se dá conta: “Oh, precisamos encontrar esse livro!” Aí começam a citar. O pessoal começou a levar a sério o livro, porque no começo a regra era negar a existência da luta dos escravos. Primeiro porque a escravidão era encarada como benigna, e segundo porque o negro era tido como inferior. Raça inferior que não contribuiu para o processo civilizatório” (MOURA, 1995: P.53).

A citação de Eugene Genovese à qual Moura se refere está no livro Da Rebelião à Revolução, onde o historiador estadunidense aborda as insurreições negras e quilombos na América Latina:

“Clóvis Moura, em seu notável livro Rebeliões da Senzala, fornece uma boa análise sobre o preço pago pelos quilombolas brasileiros, especialmente os de Palmares, por sua consolidação socioeconômica. Bem sucedidos em cultivar a terra e organizar a produção, para sustentar uma grande comunidade, os quilombolas perderam com frequência sua flexibilidade militar, pois tiveram de desistir de táticas específicas (como, por exemplo, os ataques de surpresa), a fim de defenderem suas famílias, lares e meios de subsistência. Assim, ao mesmo tempo que um número cada vez maior de quilombolas tornava possível uma defesa sólida contra ataques frontais, procurava também evitar a ocorrência desses confrontos diretos. Sem uma massa expressiva de camponeses com os quais pudessem misturar-se, à maneira da guerrilha clássica, as oportunidades dos quilombolas se reduziam a duas possibilidades: ataques fulminantes a partir de pequenas bases que não podiam aprovisionar-se e requeriam periodicamente perigosos movimentos de avanço, ou adoção do padrão comum de defesa dos redutos quilombolas. A primeira tática funcionou bem para pequenos grupos; a segunda tornou-se indispensável para os grandes quilombos, ao mesmo tempo que os tornava vulneráveis ao poder de fogo superior de seus inimigos” (GENOVESE, 1979: P.83).

No trecho em destaque Genovese aborda um tema importante presente também em outros trabalhos de Moura, a questão das táticas e estratégias militares das rebeliões negras no período escravista. O tema é basicamente onipresente em Rebeliões da Senzala, tendo também um capítulo todo dedicado a ele.

Entre a primeira e a segunda edição do livro, Moura manteve correspondência com intelectuais que o incentivaram a publicá-lo novamente dentre os quais Jorge Amado e Nelson Werneck Sodré, este escreveu em carta de 17 de abril de 1962:

“Em primeiro lugar, seu livro: li-o com proveito e agrado; usei-o em meus trabalhos e, ainda recentemente, na Formação Histórica do Brasil, que a Brasiliense vai lançar agora em maio. (...) Seu trabalho é pioneiro; considero por escrever a história das rebeliões brasileiras, e é uma grande história. Há quem sustente não haver, no Brasil, tradição de luta camponesa. Tenho dúvidas. Parece-me ao contrário, que há falta de história das lutas camponesas. Que parece a você? O seu livro está emprestado por mim a um estudioso na matéria, como fonte indispensável no assunto. Tenho tal livro em alta conta, portanto. Penso que merece uma reedição, com as correções de forma a que você se refere. Se mexer também no fundo não será mau; mas não é indispensável. Acrescente as partes que está elaborando, e fará um grande trabalho. (...) Tenho emprestado o seu livro a várias pessoas, a estudantes de história inclusive, e todos lhe afirmam as qualidades. E não lhe estou escrevendo isto por gentileza, creia. Não é dos meus hábitos o elogio gratuito” (SODRÉ, 1962).

Sodré utilizou a primeira edição do livro de Moura em seu Formação Histórica do Brasil, como afirmou nesta carta. No capítulo “Independência”, no tópico “Declínio Colonial”, o autor expõe as contradições internas do Brasil Colônia, dentre as quais, o antagonismo entre senhores e escravizados, chamando a atenção para poucos estudos até então produzidos sobre um tema de grande relevância. No final do trecho que segue, Sodré faz referência em “nota de fim” ao Rebeliões da Senzala de Clóvis Moura, e ao Quilombo dos Palmares de Edison Carneiro:

“Outra contradição antiga foi a que se levantou entre escravos e senhores de escravos: a história corrente tem omitido de forma sistemática os traços dessa contradição. Nos quatro séculos em que durou o trabalho escravo, entretanto foram importantes os acontecimentos que a assinalaram. Nos três primeiros, de que nos ocupamos agora, sucederam-se os motins da escravaria, as resistências, as fugas, os atentados, as violências particularmente caracterizados nos episódios dos quilombos. Ocultar uma contradição dessa natureza e dessa importância corresponde a desfigurar a história: só a sonegação reiterada vem afastando da atenção dos estudiosos um problema tão profundo” (SODRÉ, 1979: P.162).

Posteriormente, quando Rebeliões da Senzala estava em sua segunda edição Sodré o inseriu em sua antologia O que se deve ler para conhecer o Brasil, no capítulo intitulado “Tráfico Negreiro e Trabalho Escravo”, uma lista de 15 obras sobre o assunto, na qual também estão Capitalismo e Escravidão de Eric Williams e Palmares - A Guerra dos Escravos de Décio Freitas. Sodré escreveu:

“Os que acreditam que a vigência do escravismo brasileiro foi tranquila, entre os quais se destacam aqueles que acreditam ter sido a escravidão mansa, estão apenas embalados pelas ilusões de uma historiografia viciada na repetição, fornecedora de imagem deformada da realidade histórica. O escravismo brasileiro, como, de resto, todo o escravismo, o antigo e o moderno, foi turbulento na sua crueldade inata, sanguinolento, marcado por rebeliões as mais variadas. A investigação desse quadro que tanto contrasta com aquele fornecido pela historiografia oficial, está apenas no início. Entre as obras pioneiras, no assunto, a de Clóvis Moura se destaca, particularmente nesta reedição ampliada [2ªedição], em que coloca em novos termos as lutas dos escravos” (SODRÉ, 1997: P.79).

Em Rebeliões da Senzala, Moura tem como objeto as insurreições negras para compreender a formação econômica e social do Brasil escravista. Para além de ser um livro sobre escravidão, ou sobre as relações entre negros e brancos, é um livro sobre a luta de classes no Brasil com contribuições de grande importância para a história econômica e social.

Quanto a isso vale destacarmos o fato de Michel Löwy em sua antologia O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais, ter inserido o livro de Moura no capítulo sete, intitulado “A História Econômica e Social Marxista”. Trata-se de um excerto sobre o quilombo dos Palmares que, acertadamente, não está em um capítulo específico sobre escravidão ou relações raciais2. Uma demonstração de que os temas abordados por Clóvis Moura são pertinentes à história econômica e social marxista em geral.

 

1 Excerto de um artigo do autor publicado nos anais do XXV Encontro Estadual de História da ANPUH-SP, setembro 2020. Disponível em: https://www.encontro2020.sp.anpuh.org/resources/anais/14/anpuh-sp-erh20…;

2 Além de Moura, estão na referida seção Caio Prado Jr., C.R.L. James, Sergio Bagú, Marcelo Segall, Milcíades Peña e Rodney Arismendi. Michel Löwy (org.), O marxismo na América Latina.

 

FONTES

Carta de Caio Prado Júnior, 08/03/1949. CEDEM-UNESP. Fundo Clóvis Moura, Caixa 1, Correspondência recebida.

Carta de Caio Prado Júnior, 12/07/1952. CEDEM-UNESP. Fundo Clóvis Moura, Caixa 1, Correspondência recebida.

Carta de Nelson Werneck Sodré, 17/04/1962. CEDEM-UNESP. Fundo Clóvis Moura, Caixa 2, Correspondência recebida.

 

BIBLIOGRAFIA

GENOVESE, Eugene. Da Rebelião à Revolução, Global Editora, São Paulo: 1983. 1a. edição.

LÖWY, Michael (org.), O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. 4ª ed. ampl., São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016.

MOURA, Clóvis. “A história do trabalho no Brasil ainda não foi escrita”, in: Princípios, edição 37, mai/jun/jul, 1995.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5ª ed. São Paulo: Anita Garibald / Fundação Maurício Grabois, 2014.

OLIVEIRA, Fábio Nogueira.Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra[dissertação de mestrado]. Niterói: UFF, 2009.

SODRÉ, Nelson Werneck, O que se deve ler para conhecer o Brasil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Bretand Brasil, 1997.

SODRÉ, Nelson Werneck, Formação Histórica do Brasil. 10ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

SOUZA, Gustavo Orsolon de. “Rebeliões na Senzala”: diálogos, memória e legado de um intelectual brasileiro [dissertação de mestrado]. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2013.

UNESP, Guia do Acervo CEDEM. São Paulo, 2018.

 


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