Ano 2 nº 13/2021: Massacre de Jacarezinho, Mais um Retrato da Falsa Abolição - Helena Santos

boletim 2-13


A conjuntura ...

 

MASSACRE DE JACAREZINHO, MAIS UM RETRATO DA FALSA ABOLIÇÃO

 

Helena Pontes dos Santos

Especialista em Direito do Trabalho (FD-USP), membra do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC-USP) e GPTC-Gênero, militante dos coletivos Quilombo Dandara e Semana Tereza de Benguela da Baixada Santista

 

maos-livres

Mãos Livres, por Daniel Zanini H.

 

Quinta-feira, dia 06 de maio, cedo começaram as mensagens e as notícias tristes vindas do Rio de Janeiro, de Jacarezinho. Quem milita no movimento negro não tem um momento de paz. Todo dia é uma notícia de violência, pública ou privada, sofrida por amigos, familiares, desconhecidos, de perto, de longe, que alguém indicou ou entrou em contato pelas redes sociais.

Todas essas violências nós, negras e negros, sentimos. “Tudo que nóis tem é nóis”1, em bom pretuguês, não é só refrão de música. É parte de ensinamentos, saberes, filosofia africana que permitiu aos nossos ancestrais e a nós seguirmos vivos apesar de todas as políticas institucionais de assédio, descaso e abandono da população negra e seus territórios. O que acontece com um afeta a todas as pessoas que vivem a negritude.

O racismo em todas as suas variáveis não atinge a uma pessoa, mas a toda uma comunidade sobrevivendo e resistindo em diáspora. As mortes que acontecem com os nossos não comove a sociedade e nós estamos ali enlutadas todes, todas e todos. Vivemos a sangrar vendo a festividade de uma classe média branca diante do “corpo estendido no chão”, com a vida a correr normalmente. Nosso sentimento é invisível, invisibilizado e nossas vozes que reclamam acolhimento recebidas como ataques em diversos agrupamentos e setores sociais.

Reagem mais as suas consciências incapazes de romper com o pacto narcísico da branquitude2, por sentirem profundamente a morte dos seus espelhos e não demonstrarem o mesmo pelos nossos, do que a nosso “ataques”3? Provavelmente. Os oprimidos não raramente se desculpam ao vislumbrar a falta de condições de rupturas que ainda vivem seus aliados, mas certos da possibilidade de avanços. Saber de tudo isso não consola ou fere menos.

A primeira coisa que vem a mente é “de novo num mês de maio”4. Mais mães transformadas em mortas vivas, tendo que lidar com a dor da perda de um filho que poderia ser evitada, como poderiam ser boa parte das mortes por covid-19. Famílias inteiras que não terão acesso a tratamentos psicológicos, que não terão a sua disposição microfones abertos para falarem de suas dores e que ficarão anos e anos - se tiverem força - lutando por Justiça. Nesse percurso serão, ainda, como seus filhos, criminalizadas5. Além disso, mães negras que passaram o mês de maio sem a troca de acalantos com seus filhos.

Tudo é muito tocante e não é questão de apelação ao emocional se mostrar humanidade de corpos, viveres e saberes negros. Esse chamado é racional, como é racional o saber e os alertas que a militância negra traz há anos sobre esse assunto.

É importante, antes de avançar, trazer algumas informações sobre o que houve, ainda que muitas já tenham sido, ao longo desses dias, veiculadas na imprensa, a fim de fazer um apanhado do que sabemos. Até agora, segundo os dados oficiais são 28 mortos. No processo no 0158323-03.2020.8.19.0001, que tramita perante a 19ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, por ordem do excelentíssimo doutor Juiz de Direito Carlos Eduardo Carvalho de Figueiredo foram expedidas ordens de prisão contra os 21 réus. Foram essas ordens que deram origem a Operação Exceptis.

No que se refere ao cumprimento das ordens de prisão, já verificamos o desastre da ação: somente três pessoas foram presas, como determinou a Justiça. Três pessoas contra as quais havia ordem de prisão foram mortas e não levadas às barras da lei (Richard Gabriel da Silva Ferreira, conhecido como “Kako”; Isaac Pinheiro de Oliveira, conhecido como “Pee da Vasco”; Rômulo Oliveira Lúcio, conhecido como "Romulozinho”).

Desde o início, no entanto, a narrativa oficial repete o senso comum construído habilmente nas últimas décadas por programas policiais de fim de tarde de que “bandido bom é bandido morto” e não se esquivam do trabalho de rapidamente transformar o desejo das consciências alvas de classe média em verdades de papel.

Observa-se então a construção da narrativa que tranquiliza a sociedade “que importa” sobre as mortes (narrativa essa expressa no pronunciamento do Vice-Presidente da República sobre a segunda maior chacina do Rio de Janeiro): da lista de mortos apresentada pela Polícia Civil, um era  inspetor de polícia civil, 25 tinham ficha criminal (mas não foram apresentadas as fichas criminais, demonstrativos de a quais crimes estavam relacionados ou quais suspeitas recaiam sobre cada um), e contra dois dos assassinados, não há provas6.

O que se pode verificar em consulta junto ao sítio do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é que o processo teve origem em denúncia realizada pelo promotor Salvador Bemerguy, na qual são arrolados 21 réus acusados dos crimes de Associação para a Produção e Tráfico e Condutas Afins (Art. 35 – Lei 11.343/06) C/C Aumento de Pena Por Tráfico Ilícito de Drogas (Art. 40 - Lei 11.343/2006).

Apesar disso, os crimes de aliciamento de crianças e adolescentes, roubo de cargas, assaltos a pedestres, homicídios e sequestros de trens da SuperVia foram arrolados pela Polícia Civil do Rio de Janeiro como justificativa da ação.

À CNN, em nota7, a Polícia Civil informou no dia 08 de maio que outro inquérito sigiloso investigava a cooptação de jovens para o tráfico no Jacarezinho, sendo dessa investigação fornecida diversas informações de inteligência. Também foram recebidas informações por meio do canal Disque-Denúncia. A prisão dos denunciados foi decretada no último dia 28 e a operação foi realizada oito dias depois.

Várias análises sobre o caso foram feitas. Todas elas relevantes e importantes no sentido de romper os silêncios e performativos, que na perspectiva derridiana, pela citacionalidade e iterabilidade, têm o objetivo de naturalizar discursos opressores, que no caso brasileiro, mantenham as estruturas de poder, bem como naturalizam o autoritarismo sempre presente em nossa sociedade, mas que agora se volta e atingi, novamente, parte da classe média crítica.

Poucas foram as análises que li – e a maioria delas foram oriundas de pensadores, intelectuais orgânicos e militantes (não menos produtores de saberes, negrite-se) do Movimento Negro Brasileiro – que apontaram para a falta de novidade desse tipo de ação ilegal, no que se refere a atuação estatal em territórios racializados. Também racionalizaram denunciando a falta de ineditismo entre ações policiais que fortalecem a entrada das milícias em lugares antes dominados pelo narcotráfico dirigido pelo Comando Vermelho, como é o caso de Jacarezinho.

Corroboram com esses apontamentos os dados mantidos pelos pesquisadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) que apontam, entre os anos de 2007 e março de 2021, nas 290 incursões da polícia no território conhecido como Jacarezinho, o saldo de 186 mortos o que corresponde a 6,4 mortes a cada dez entradas do aparato de policiamento estatal8. Isso significa que é, dos locais acompanhados pelo citado grupo, o com maior taxa de mortes.

Segundo os dados apurados pelo Instituto de Segurança Pública nos anos de 2018 tivemos 1.534 vítimas de intervenção policial, enquanto em 2019 esse número subiu para 1.814 e em 2020 tem queda para 1.245 vítimas. Apesar da queda isso significa uma média que ultrapassa três mortes por dia.9 Ligado a queda da quantidade de vítimas de ações policiais está a liminar concedida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, em 5 de junho de 2020, que limitou, enquanto durar a epidemia de Covid-19, as operações policiais em favelas do Rio a casos “absolutamente excepcionais” o que, conforme se capta de todo o narrado, não era o caso da Operação Exceptis.

Também é em Jacarezinho, segundo os acadêmicos do GENI-UFF, a maioria das operações que contam com alta taxa de letalidade (três ou mais mortes): das 100 ações ali realizadas pela polícia, 21 tiveram alta taxa de letalidade, ou seja, uma taxa de 7,2 operações é com alta letalidade; Santa Cruz e Costa Barros, que ocupam as segunda e terceira colocações no mesmo ranking, tem taxas, 6,6 e 5,2, respectivamente.

Estamos aqui falando, não por coincidência, da favela mais negra do Rio de Janeiro, onde mais de 37 mil pessoas vivem, com um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) do Rio de Janeiro-RJ. O bairro Jacarezinho ocupa a quarta das piores colocações entre 160 bairros da cidade maravilhosa. Segundo dados do censo de 2010, o valor do rendimento mensal das pessoas de 10 anos ou mais era em média de R$ 411,25.10

Jacarezinho é um território marcado pela história de resistência do povo negro, como boa parte das favelas. Conforme se retira de história registrada em samba11, guardado e passado adiante via oral, a região era um Quilombo. Essa região era conhecida como Preto Forro e abrigava em suas grutas pessoas negras que fugiam da escravização em fazendas na Serra do Matheus, na boca do Mato.

É território no qual Tia Dorinha e outras mulheres negras seguem resistindo ao epistemicídio e racismo religioso a que estão expostas por falta de respeito ao que não é referenciado e segue desconhecido e ignorado pelo Ocidente: a filosofia negra presente entre os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana.

Esse episódio sangrento da história brasileira é demonstração de racismo institucional que impede o debate do aborto e seu acesso a mulheres negras, mas promove controle dessa população através da promoção do genocídio da juventude negra.

Estamos, aliás, diante de mais um dos esqueletos que foram mantidos no armário e que não se debateu, combateu e se livrou no processo de redemocratização. Por quê? Uma hipótese é porque não agredia mais os filhos da classe média. Nunca, no entanto, deixou de enlutar mães negras, periféricas, trabalhadoras precarizadas, no período pós-Constituição Cidadã.

Milícias são grupos de extermínio, é esquadrão da morte12 avançando sobre o Estado. A novidade é que com isso não são só os da base da pirâmide social os alvos. Isso assusta a quem acha que o Estado Democrático de Direito começou a ruir só agora ou acreditou que algum dia ele existiu por não ver para além de sua bolha. O que é o discurso dos que estão com medo do fechamento do regime que não a ausência de crítica e autocrítica sobre a falta de solidariedade com os milhares que vivem essa realidade diariamente?

Não tem como separar os ataques constantes que sofre esse território e a falsa abolição de 13 de maio, também encruzilhados ao mito da democracia (racial, mas não só essa).

O Brasil segue vivendo o mito da democracia. Diz-se mito pois não há como se falar em democracia em país no qual, encerrado o regime ditatorial empresarial-militar, seguem acontecendo impunemente torturas de jovens negros diariamente, bem como seguem vigendo as leis precarizantes das relações de trabalho arrancadas por meio de intervenções nos sindicatos, morte de sindicalistas e alta repressão policial ou mesmo a Lei de Segurança Nacional.

Só haverá democracia quando a sociedade brasileira for uma sociedade igualitária (RIOS e RATTS, 2016), já gritava a plenos pulmões a militância negra brasileira em luta pela redemocratização do país no final da década de 70 do século passado.

Não há como se falar em democracia como algo abstrato, materializando a cidadania e os direitos sociais parcialmente e/ou para poucos do povo. Democracia pressupõe igualdade e respeito às diferenças, assegurada a diversidade e bem viver coletivo, pela garantia do patamar mínimo civilizatório presente na Constituição (GOMES, 2011).

Deslegitimar a Constituição de 1988, suas políticas e garantias, é questão de honra para certos setores da elite, pois a Constituição Cidadã (com todas as suas limitações) foi derrota imposta pela classe trabalhadora e movimentos sociais aos empresários que conduziram o golpe empresarial-militar de 1964: o texto aprovado não lhes garantiu a “liberdade” necessária para seguirem a pilhagem das riquezas nacionais e superexploração e controle da força de trabalho como conquistaram pela força antes.

É necessário, para seguir o projeto interrompido pela redemocratização – fruto da campanha por Diretas Já e das grandes mobilizações da classe trabalhadora – destruir a Constituição e lhe esvaziar as políticas públicas e as instituições que a defendem. Ocorre que esse processo vem sendo realizado há anos, não é novo.

É necessário solidariedade e unidade na ação. Treze de maio é dia de denunciar a maior falácia da história brasileira, a abolição da escravização da população negra, a que condenou a maioria da população do Brasil à pobreza extrema por gerações por falta de uma política de memória, verdade e justiça a nós, descendentes dos vitimados pela escravização (da qual também foram beneficiadas famílias de classe média urbana).

Justiça por André Frias, Bruno Brasil, Caio Da Silva Figueiredo, Carlos Ivan Avelino Da Costa Junior, Cleyton Da Silva Freitas De Lima, Diogo Barbosa Gomes, Evandro Da Silva Santos, Francisco Fábio Dias Araújo Chaves, Guilherme De Aquino Simões, Isaac Pinheiro De Oliveira, John Jefferson Mendes Rufino Da Silva, Jonas Do Carmo Santos, Jonathan Araújo Da Silva, Luiz Augusto Oliveira De Farias, Márcio Da Silva Bezerra, Marlon Santana De Araújo, Matheus Gomes Dos Santos, Maurício Ferreira Da Silva, Natan Oliveira De Almeida, Omar Pereira Da Silva, Pablo Araújo De Mello, Pedro Donato De Sant'ana, Ray Barreiros De Araújo, Richard Gabriel Da Silva Ferreira, Rodrigo Paula De Barros, Rômulo Oliveira Lúcio, Toni Da Conceição, Wagner Luiz Magalhães Fagundes e todas as vítimas dessa guerra contra a população negra trabalhadora, independente de cor ou profissão, de lado em que foi lançada.
Treze de maio de luta, reflexão e busca por Democracia!

 

1 O refrão referido está na música Principia, escrita por Emicida (Lenadro Roque de Oliveira) e Nave, faixa 1 do álbum Amarelo.

2 Sobre o assunto recomento muitíssimo os escritos de Maria Aparecida Silva Bento, como sua tese Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público, disponível em https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/

3 Ataques esses impossíveis, ante a nossa concreta fragilidade em dias de profundo luto, mas que têm embasamento, reconheça-se ou não, no discurso da mulher negra raivosa. A respeito disso recomenta-se a leitura de Winie Bueno, “A quem serve o mito da agressividade da mulher negra”, disponível em https://medium.com/@winniebueno/a-quem-serve-o-mito-da-agressividade-da…

4 CRUZ, Elaine Patrícia. Crimes de Maio causaram 564 mortes em 2006; entenda o caso. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/crime…

5 STABILE, Arthur. Na luta pela memória dos filhos, Mães de Maio são ligadas ao crime pelo próprio Estado que os matou. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-07/na-luta-pela-memoria-dos-fi… .

6 G1 RIO. Lista de mortos no Jacarezinho: 25 tinham ficha criminal e há provas contra os outros 2, diz polícia. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/08/veja-a-lista-…

7 MOLICA, Fernando. Jacarezinho: denúncia não fala em aliciamento de menores e sequestro de trens. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/amp/nacional/2021/05/08/jacarezinho-denunc…

8 SOARES, Rafael. Operações policiais no Jacarezinho são as que têm maior taxa de mortes entre as favelas do Rio. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacoes-policiais-no-jacarez…

9 BBC NEWS. Operação no Jacarezinho: polícia do Rio de Janeiro matou 3 pessoas por dia em 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/05/4923330-operacao-n…

10 AGÊNCIA O GLOBO. Jacarezinho e Manguinhos estão entre os piores IDHs do Rio. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/jacarezinho-e-manguinh…

11 Diz o samba trazido por Rumba Gabriel em reportagem que fala sobre a Favela de Jacarezinho: “Lá na Serra do Matheus, na Boca do Mato, todo negro dono da sua liberdade, na maior felicidade, se dirigia para lá”. Disponível em Coluna de William Reis: https://vejario.abril.com.br/blog/william-reis/historia-favela-jacarezi…

12 COSTA, Marcia Regina da. O Esquadrão da Morte no Rio e em São Paulo. Disponível em: http://www.direitoscivis.net.br/2014/04/o-esquadrao-da-morte-no-rio-e-e…

 


Expediente

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