Ano 2 nº 28/2021: Contra a Guerra Híbrida - Lucas Marangão

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Mundo acadêmico...

Contra a Guerra Híbrida 


Lucas Rodrigues Marangão

Bacharel em História pela USP e pós graduando no prolam USP

 

 

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O General Augusto Heleno, hoje ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional - Luis Hidalgo / AFP

 

​​​​​​​Desde meados de 2013, surgiram várias interpretações dentro da esquerda para entender a crise da República de 1988 que se iniciou com as manifestações de junho de 2013, passou pela destituição da presidente Dilma Roussef, pela prisão ilegal do ex-presidente Lula, pela ascensão de Jair Bolsonaro ao poder e chega aos dias atuais. Uma dessas interpretações que vêm ocupando cada vez mais espaço é a de que o Brasil está sob ataque de uma nova forma de guerra, isto é, a guerra híbrida. Ela ganhou força, sobretudo, através da publicação pela editora Expressão Popular do livro de Andrew Korybko, Guerras Híbridas - Das revoluções coloridas aos golpes, em 2018, obra que desde então tem sido central para a difusão do conceito no Brasil. 

Essa noção foi recentemente mobilizada em razão da polêmica em torno do incêndio à estátua de Borba Gato: o ex-ministro e futuro candidato à presidente Aldo Rebelo (Solidariedade) classificou a iniciativa do grupo Revolução Periférica como um ato típico de guerra híbrida em entrevista ao jornalista Leonardo Attuch, para o canal TV2471 . Mas o que é, afinal, a guerra híbrida e quais seus fundamentos?

Segundo Korybko, a guerra híbrida seria uma forma de guerra em que um dos lados beligerantes escolheria uma abordagem indireta do Estado eleito como inimigo, atuando por procuração. Como forma de evitar o custo humano e político de um confronto direto que visa uma mudança de regime, na guerra híbrida o Estado interventor ataca de forma velada, mobilizando elementos internos ao território e membros da sociedade onde deseja interferir para atingir seus objetivos. Através dessa interferência, o Estado que promove a guerra híbrida gera uma disrupção entre a liderança política e instituições do Estado atingido e a sua sociedade, levando à paralisia decisória e posterior derrubada do regime alvo2

A guerra híbrida possui dois momentos básicos para Korybko: as revoluções coloridas e as guerras não convencionais. Nas primeiras, a mudança de regime é obtida através da mobilização daquilo que o autor chama de "enxames", grupos de manifestantes mais ou menos coesos e sem uma liderança clara (isto é, com autonomia tática), os quais têm, contudo, o mesmo objetivo: a mudança dos regimes alvo através de manifestações, desobediência civil, intervenções artísticas e derrubada de páginas oficiais de internet, entre outras táticas não-violentas (p. 45-70). Nas segundas, a mudança de regime é atingida através do estímulo a grupos insurgentes que recorrem à violência contra o Estado alvo sem que, contudo, as forças convencionais do Estado interventor atuem, poupando-o, assim, da maior parte do desgaste (p. 71-90). Cabe salientar, Korybko afirma que existe fluidez entre estes dois momentos, sendo possível que a guerra híbrida transite entre um e outro e que elementos criados em um sirvam aos fins do outros ,como, por exemplo, o armamento de manifestantes durante manifestações de rua servindo à criação de grupos insurgentes ( p. 91-95). 

Para Korybko, apenas os Estados Unidos empregam hoje em dia a guerra híbrida. Contudo, ainda que no livro citado o autor afirme que os alvos da guerra híbrida sejam a China, o Irã e a Rússia em razão da disputa geopolítica pelo Heartland eurasiático, Korybko expandiu os Estados-alvo após a publicação da obra: segundo o autor, no momento atual os Estados Unidos estão aplicando a guerra híbrida ao Brasil3 - declaração que obviamente estimula a difusão do conceito sob análise para explicar os processos históricos recentes no Brasil.

Porém, existem vários problemas na obra de Korybko e na forma com que sua teoria vêm sendo recebida no Brasil. Sublinharemos os principais. Em primeiro lugar, nos chama a atenção o fato de que a análise de Korybko permite que se faça exatamente aquilo que ele acusa os Estados Unidos de fazer, isso é, dissolver a diferenciação entre beligerantes e civis. É o que se conclui se a atuação de um grupo de manifestantes artísticos contra o governo faz parte de um continuum fluido do qual fazem parte grupos terroristas e agentes de inteligência de um Estado inimigo. 

Na prática, a análise de Korybko permite que se militarize qualquer tipo de conflito social, reduzindo-o à agência de Estados hostis e interpretando-o enquanto parte de um fenômeno centralmente bélico. A tradição marxista de interpretação do fenômeno da guerra tomava exatamente outro rumo: ao analisar os conflitos entre os Estados, ela enxergava subjacente à guerra os conflitos sociais (buscando extrapolá-los e converter a guerra interimperialista em guerra civil global). Nesse sentido, se faz tábula rasa das lutas de classes no Brasil, igualando as manifestações pela redução da passagem à mobilização em defesa da Operação Lava-Jato, em razão da sua comum oposição aos governos instituídos à época - sendo ambas, assim, "tropas híbridas" movidas no xadrez político. 

Tampouco a dissolução da distinção entre combatente e não-combatente é uma novidade trazida pela guerra híbrida. Já na década de 30, teóricos alemães ligados ao fascismo naquele país teorizavam uma nova forma de fazer a guerra que ignorasse essas distinções. É o caso do ensaio "A Mobilização Total", de Ernst Jünger, de 1930, e do panfleto do general Erich Ludendorff, "A Guerra Total", de 1935. Um ponto importante que iremos retomar é que ambos não restringiam o uso deste tipo de mobilização somente a agressões a outros Estados, mas também para a defesa do seu país.

Além disso, Korybko parte de pressupostos problemáticos para elaborar sua teorização sobre as revoluções coloridas. Um destes pressupostos é o de Edward Bernays, autor de "Propaganda", segundo o qual grupos pequenos de pessoas invisíveis são capazes de ordenar e orientar as massas para onde queiram (p. 46). Na prática, o que Korybko propõe aqui é que a política pode ser  determinada através da comunicação e da informação profissionalmente elaborada voltada a determinados públicos, ignorando que mesmo o melhor discurso encontra barreiras materiais na realidade concreta. Conspirações de oposições de todos os tipos sempre existiram e sempre existirão, com todo tipo de mensagem elaborada para atingir o público: a questão que se coloca são os motivos pelos quais elas se tornam bem-sucedidas em determinados momentos e não em outros. A análise centrada na guerra híbrida ignora, assim, os problemas e contradições que o capitalismo brasileiro têm acumulado nos últimos anos e que têm permitido a ascensão de movimentos fascistas de diversos matizes como forma de solução, reduzindo a questão a uma mera operação elaborada em centrais de inteligência dos Estados Unidos.

Não se ignora, é claro, que existam verdadeiras armas informacionais e diversos mecanismos de interferência na disputa política através das tecnologias de informação e comunicação. Contudo, mesmo no caso do gênero que recebeu maior investigação e com maior repercussão, isto é, o da Cambridge Analytica e sua atuação apoiando o Brexit e a eleição de Donald Trump, os relatórios e confissões demonstraram que a operação se restringia aos indecisos - uma parcela significativamente minoritária da população. O nome da técnica militar empregada no caso, cabe lembrar, é  psychographic microtargeting, ou em uma tradução livre a busca psicográfica de micro alvos. A questão que se coloca é como as maiores parcelas (ou os macro alvos) das sociedades adotam suas posições nos conflitos sociais, contudo.

Korybko também aponta soluções problemáticas para Estados se contraporem à guerra híbrida. Ele propõe a criação de uma "autarquia informacional" e o fomento à propaganda nacionalista e à criação de redes articulando Estado e ONGs, estimulando a formação de "contraenxames" em defesa dos regimes alvo - na prática, replicando aquilo que ele define como revoluções coloridas, engendrando assim uma espécie de "guerra híbrida defensiva" (p. 98-99). Cabe lembrar, a autarquia econômica e social era uma meta do fascismo histórico e a defesa de Korybko da mobilização para fins militares da população civil em defesa do Estado (sem qualquer horizonte utópico, sublinhamos) ecoa a tradição dos já citados Jünger e Ludendorff.

Finalmente, nos permitimos questionar parte das fontes que Korybko usa. Citaremos alguns poucos exemplos. Uma das fontes citadas por Korybko é Thierry Meyssan (p. 107). Meyssan é um jornalista francês ligado à Rede Voltaire, espaço onde já difundiu teorias conspiratórias como a do Plano Andinia, segundo a qual a Patagônia estaria sendo ocupada por grupos judaicos para criação de um novo Estado judeu (em algumas versões, com apoio da etnia mapuche)4. Meyssan também defendeu na mesma rede a carta golpista escrita por generais franceses, afirmando que o "islamo-esquerdismo" era uma ameaça nacional à França5. Em certa altura, Korybko admite ter sido a sua visão sobre as revoluções coloridas influenciadas pelo analista geopolítico russo Leonid Savin (p. 45). Savin, contudo, é ligado a redes do neofascismo russo, tendo participado inclusive aqui no Brasil de reuniões voltadas à promoção de Alexander Dugin6, autor ligado ao Tradicionalismo, escola de pensamento de Olavo de Carvalho e Steve Bannon7. De fato, um dos sites que Korybko referencia ao mobilizar Savin é o extinto OpenRevolt (p. 104), mantido por James Porrazzo, militante da extrema-direita dos Estados Unidos e antigo líder do grupo supremacista American Front​​​​​​​8. Que Korybko denuncie a participação de grupos neonazistas na deposição do ex-presidente Yanukovich na Ucrânia sem debater minimamente suas próprias fontes é curioso; que esse tipo de conteúdo circule quase sem questionamento entre a esquerda brasileira é alarmante. Nesse sentido, quando Breno Altman afirmou que Aldo Rebelo tinha se tornado uma espécie de Alexander Dugin brasileiro em meio à polêmica quanto ao ato no Borba Gato, foi certeiro ao identificar a origem de parte de seu discurso. Korybko e o uso que se faz da sua "teoria" da guerra híbrida fazem parte desse problema, como vimos.

Não pretendemos discutir aqui o ato em si do incêndio do Borba Gato. O problema que nos chamou atenção é a operação discursiva que reduz os manifestantes a agentes político-militares de outro Estado. Essa operação foi a mesma realizada para suprimir o PCB no início da República de 1946, caracterizando-os como agentes soviéticos. Aldo Rebelo, que reivindica na entrevista citada seu passado de comunista, deveria se recordar disso.

 

Notas:

1 - TV 247, "Aldo Rebelo debate a guerra cultural e o caso Borba Gato". YouTube, 27 Jul 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pvPZ8RO8Bgg>. Acesso em 02 Ago. 2021.
 

2 - KORYBKO,  Andrew. Guerras  Híbridas:  das  revoluções  coloridas  aos golpes. Expressão Popular: São Paulo, 2018, p. 30-36. Em função da quantidade de menções a esse livro no artigo, as referências a ele serão feitas doravante apenas com a indicação do número da página entre parênteses no corpo do texto.

 

3 - LUCENA, E.; LUCENA, R. "Agentes externos provocaram uma 'guerra híbrida' no Brasil, diz escritor".  Brasil de Fato. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/10/19/agentes-externos-provocaram-uma-guerra-hibrida-no-brasil-diz-escritor>. Acesso em: 02 ago. 2021.
 

4 - MEYSSAN, T. "Qual é o projecto para Israel na Argentina?". Rede Voltaire. Disponível em: <https://www.voltairenet.org/article198976.html>. Acesso em: 02 ago. 2021.

 

5 - MEYSSAN, T. "A Carta aberta de antigos militares : um complô contra a República?". Disponível em: <https://www.voltairenet.org/article213007.html>. Acesso em: 02 ago. 2021.

 

6 - STUDIO STRATAGEMS, "Cuarta teoría política. La vista emergente y radical. Por Leonid Savin". YouTube. Disponível em: <https://4tpes.wordpress.com/2013/12/10/la-cuarta-teoria-politica-el-intento-de-una-interpretacion-emergente-y-radical/>. Acesso em: 02 ago. 2021.

 

7 - TEITELBAUM, Benjamin. Guerra Pela Eternidade: o Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista. Editora da UNICAMP: Campinas, 2020.


8 - MCNAUGHT, R. "Fundador do grupo 'New Resistance' dos EUA faz acusações". Tribuna da Imprensa Livre.  Disponível em: <https://tribunadaimprensalivre.com/fundador-do-grupo-new-resistance-dos-eua-faz-acusacoes-contra-nova-resistencia-entristas/>. Acesso em: 02 ago. 2021.

 


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