Ano 2 nº 27/2021: A Commedia All'Italiana Engajada de "Os Companheiros" - Gilda Prado

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ARTirando ...

 

A COMMEDIA ALL’ITALIANA ENGAJADA DE “OS COMPANHEIROS”

 

Gilda Walther de Almeida Prado

Graduanda em História – USP

 

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Não surpreende que, nas várias homenagens publicadas em jornais e revistas de cinema na ocasião da sua morte em 2010, o cineasta italiano Mario Monicelli seja reconhecido como o “pai da commedia all’italiana”. Seu longa “Os Eternos Desconhecidos” (I Soliti Ignoti, 1958) é considerado por muitos críticos como a estréia do gênero cinematográfico dentro do qual seriam produzidos alguns dos melhores filmes populares da década de 1960, dirigidos por autores como Dino Risi e Ettore Scola. No entanto, o próprio Monicelli discordaria deste título. Segundo ele, a commedia all’italiana é uma tradição muito anterior a ele mesmo, e a sua verdadeira paternidade está no clássico de Dante Alighieri:

O nascimento artístico e teatral próprio do tipo de comédia que é amarga, que é irônica, que é contrária, pungente e cativa, vem de um tempo muito antigo, de um livro muito famoso chamado “A Comédia”, que depois foi renomeado como “A Divina Comédia”, mas cujo verdadeiro nome era simplesmente “A Comédia” – e é isso que ele era, uma mistura de todos os gêneros: drama, entretenimento,  vulgaridade (...) [1]

A perspectiva de Monicelli parte então deste princípio literário original da Comédia: que cabe a ela a representação dos assuntos dos homens e de suas vidas, e que suas peças fundamentais são as pessoas em suas diferenças e a realidade em suas contradições. Os seus protagonistas são comoventes e familiares, apesar de exagerados em suas falhas e fracassos, e caminham errantes, superestimando a própria competência, na direção de seus finais infelizes. Descrevendo dessa forma, a obra de Monicelli parece um desfile de tragédia mas, ainda segundo o próprio, o riso vem justamente dessa miséria compartilhada e conhecida, da pobreza, da fome, da doença e da velhice. A graça casada com a desgraça: “Esses são os temas que fazem os italianos rirem, pelo menos.[2]

Nesta última ideia, que é mencionada em qualquer artigo sobre a commedia all’italiana, estão os dois componentes fundamentais dos argumentos de praticamente todos os filmes de Monicelli: a dinâmica conjunta de um grupo de pessoas que pretende muito mais do que tem a capacidade de atingir. A fundação dramática, a premissa trágica das vontades inatingíveis dos personagens, é balanceada com as situações cômicas que essa coragem e confiança equivocadas provocam ao longo da trama.

A necessidade do final trágico, ou do final infeliz, está ligada justamente à essa premissa dramática, ao objeto “sério” de onde o diretor vai tirar o irônico e o absurdo. Então se há um convite para rir na cara do que, fora do cinema, é opressivo – a guerra, a ditadura, a exploração do trabalho – os filmes de Mario Monicelli também são extremamente engajados politicamente, preocupados e apaixonados pelas questões do presente, dominados pelo conhecimento das contradições da realidade, mas movidos pelo anseio de mudança dos protagonistas, e nenhuma de suas obras se encaixa tanto neste encontro como "Os Companheiros" (I Compagni, 1963), uma história de greve, situada em Turim no final do século XIX.

 

O Filme

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A velha capital já havia sido tomada há muito tempo pelas modernas fábricas de automóveis FIAT (Fabbrica Italiana Automobili Torino, fundada em 1899), então foram utilizadas locações em outras pequenas cidades industriais na região de Piemonte, no Norte da Itália. Mas a lógica da direção, produção e fotografia é a autenticidade na representação do passado, e já nos créditos iniciais, ao som da marcha composta por Carlo Rustichelli (“Eles fecharam a fiação, só sobraram ratos para dançar a sarabanda até a barba do diretor!”), imagens da época se misturam com fotogramas do próprio filme, operários reais aparecendo lado a lado aos atores.

O interior da fábrica é impressionante em sua dimensão, com gigantescas máquinas dominando o quadro, engrenagens, tiras girando, bocas de ferro que abrem e fecham com brutalidade. Uma atmosfera de fatiga, nas palavras do próprio diretor. Na fotografia, do grande Giuseppe Rotunno, que depois se tornaria frequente colaborador de Federico Fellini, se entende que são as máquinas que empregam os trabalhadores, são elas que os torcem, puxam, engolem. Isso figurativamente, mas, no acidente que dá o disparo no enredo, um operário tem seu braço literalmente agarrado para dentro dos grandes mecanismos de ferro.

Reunidos no hospital, Monicelli faz a introdução desse seu personagem titular: i compagni, os camaradas. Se nos primeiros 15 minutos de filme são apresentadas a atmosfera fabril, Turim em plena e acelerada industrialização e a jornada diária de alguns operários – Homero, o adolescente, Raoul, o mulherengo, Adele e seu pai Pautasso, Salvatore, o migrante siciliano, entre muitos outros – agora podemos vê los em discussão, formando um comitê para planejar uma demonstração no dia seguinte.

A construção da familiaridade com este grupo é priorizada diante da introdução de quem seria o ator principal, o ícone do cinema italiano Marcello Mastroianni, cuja chegada oportuna como o Professor Giuseppe Sinigaglia ocorre depois de meia hora dentro do filme. É uma escolha deliberada e marcante. O Professor entre os operários encontra-se entre iguais, e a direção trata Mastroianni entre os demais atores da mesma forma. Esta é uma história fundamentalmente coletiva, um filme de ensamble, onde o peso sentimental, a agência para mover o enredo e os desenlaces dramáticos são compartilhados entre todo o elenco. Sinigaglia pode até ser um agitador profissional, fugido de Milão, mas ele chega em Turim como um forasteiro, se inserindo em uma teia de afetos, teimosias e dificuldades muito anterior à ele, tanto do ponto de vista interno da história quanto do ponto de vista narrativo do filme. Ele tanto não é um protagonista tradicional quanto é um catalisador de mudança, provocando e agitando a reunião do comitê em direção aos caminhos que seus estudos e experiência lhe indicam.

Sinigaglia tampouco é um retrato típico de um líder revolucionário. Ele é um tipo vagabundo à la Charles Chaplin, que espirra em xícaras de chá para ter uma desculpa para tomá-lo sozinho, e é muito mais teimoso, atrapalhado e tímido do que aparenta. Quando a personagem de Annie Girardot lhe pergunta para que meter-se em tanta confusão ele responde honestamente: “Por egoísmo. Por que eu gosto.” Ao mesmo tempo, então, o Professor se revela um orador nato, que rapidamente ascende na liderança dos trabalhadores revoltados, e que, escondendo-se da polícia, ainda pede para que mandem um último recado ao companheiro Raoul: “Diga a ele que continuem resistindo e vencerão.

“Os Companheiros” é um filme que se encaixa entre a estética e inspiração do neorealismo da década anterior e os princípios narrativos que orientam a commedia all’italiana - ambas influências permeiam cada momento de performance, estão no roteiro e na fotografia. Nesta história de greve, a forma dramática do emaranhado dos romances, dramas familiares e sobrevivência, junto do senso de camaradagem que vem de poder rir dessas dificuldades são um reflexo do conflito principal do filme, que são os desafios que o Capital impõe a solidariedade e ação coletiva dos operários.

 

Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade

 

No artigo “Os Companheiros: Descrição de uma luta”, escrito para o lançamento do filme pela Criterion Collection, o crítico estadunidense James Hoberman o define como um filme de memória: “não é tanto um apelo à ação quanto uma lembrança[3]. No entanto, essa não é uma lembrança passiva, desengajada. Este é um assunto que é comentado pelo próprio filme através do Professor Sinigaglia, respondendo às frustrações do seu companheiro de quarto Raoul: “O que vocês querem? Ganhar já no primeiro encontro? Seria fácil. Não foram vocês que iniciaram esta luta. Essa luta existe desde Spartacus!

Como um velho socialista, formado em História e Filosofia pela Universidade de Pisa e cujo pai foi jornalista e escreveu para o histórico diário Avanti!, do Partido Socialista Italiano (PSI)[4], seria fácil pensar que essa poderia ser uma mensagem direta de Monicelli sobre seu tempo presente. O próprio Hoberman aponta para a forma como o filme, lançado em 1963, dialoga com a continuidade da luta por direitos trabalhistas na Itália no século XX, e a localidade de Turim, a capital automobilística do país, traz um ponto de vista privilegiado nesse sentido. Apenas um ano antes do lançamento de “Os Companheiros” a cidade foi palco de uma enorme manifestação de operários no que ficou conhecida como o levante da Piazza Statuto, em repúdio às associações das fábricas da cidade deixarem a representação sindical de fora das renegociações dos contratos com a FIAT em 1962. É relevante a importância colocada nos primeiros momentos do filme em Salvatore Arro (Antonio Casamonica), o migrante siciliano, também um reflexo das crescentes tensões internas no movimento dos metalúrgicos de Turim diante do uso de trabalhadores vindos do sul do país pelas fábricas em expansão.

Diante de todos esse diálogos e a complexidade como é tratada essa “dramatização de um fracasso”, como coloca o crítico, me parece mais verdadeira, em relação à obra de Monicelli, a ideia final trazida por Hoberman em seu artigo através da citação de Gramsci: “Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.” Há aqui como que uma síntese do que torna a obra de Mario Monicelli tão efetiva: as suas premissas trágicas – a luta por sobrevivência entre sistemas de exploração antigos e capitalistas intocáveis – se transformam em espaço de comunhão através da comédia. Além disso, de acordo com a tradição da commedia all’italiana, cujos protagonistas estão sempre querendo mais do que têm a competência de alcançar, o motor principal da narrativa é o movimento dos personagens como grupo. Por mais que os planos acabem frustrados e tenham consequências trágicas, a ênfase permanece na ação. Na possibilidade de responder, de mudar as coisas.

Mario Monicelli atinge, através da forma de sua “comédia de erros”, uma obra que evoca de forma honesta a realidade e os desafios da luta por direitos trabalhistas no contexto italiano da virada do século XIX sem deixar-se paralisar no diálogo com o presente. Discordo de muitos que descrevem os seus finais trágicos como cínicos pois, embora “Os Companheiros” tenha um dos últimos planos mais devastadores da História do Cinema, o sentimento final jamais é de conformismo.

companheiros-cartaz Ficha do Filme: Os Companheiros  (I Compangni)

Itália, França, Iugoslávia | 1963 |  Drama | 130 min.

Direção: Mario Monicelli

Roteiro: Agenore Incrocci, Mario Monicelli, Furio Scarpelli

Elenco: Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, Bernard Blier

https://www.youtube.com/watch?v=Zjjez-7sUCA

 

[1] Entrevista com o diretor Mario Monicelli concedida em 2006 para a Criterion Collection. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X-HQTl4wdvQ.

[2] MONICELLI, Mario. Interview with Mario Monicelli: Comedy Italian Style. Entrevista concedida a Donato Totaro para a revista Offscreen, Montréal, Vol. 3, n. 5, Setembro de 1999. Disponível em: https://offscreen.com/view/mario_monicelli. Acesso em 11/08/2021.

[3] HOBERMAN, J. "The Organizer: Description of a Struggle". In The Criterion Collection: Essays. Abril de 2012. Disponível em: https://www.criterion.com/current/posts/2268-the-organizer-description-…

[4] CASA, Stefano Della. "MONICELLI, Mario" In Dizionario Biografico degli Italiani, Volume 75, 2011. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/mario-monicelli_(Dizionario-Biogra….

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