Ano 2 nº 35/2021: A Escravidão e a Assim Chamada Acumulação Primitiva - Gabriel Rocha

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Mundo acadêmico ...

 

A ESCRAVIDÃO E “A ASSIM CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”[1]

 

Gabriel dos Santos Rocha

Doutorando em História Econômica – USP

 

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Família e escravos domésticos, Henry Klumb, c. 1860.

 

A escravidão é tema extensamente estudado pela historiografia brasileira. Afinal, é impossível entender um país subtraindo-lhe cerca de 350 anos de história. No ano de 2021, completaram-se 133 anos de abolição. Desde a colonização portuguesa aos dias atuais, o escravismo ocupa a maior parte da nossa história: quase três vezes maior do que o período de “trabalho livre”.

O passado colonial e escravista lança luz – ou seria sombra? – sobre o presente do Brasil: um capitalismo periférico e dependente, uma democracia disfuncional, desigualdades sociais colossais marcadas pelo racismo. A escravidão por si só não explica todos os nossos problemas atuais, mas certamente nos ajuda a entender o caráter autocrático da burguesia que se consolidou à frente do poder político e econômico, as dificuldades em efetivar uma cidadania plena para a maior parte da população (mantida à margem do Estado de Direito), o caráter super exploratório das relações de trabalho, o racismo, entre outras coisas.

No entanto, para além da história do Brasil, colonialismo e escravidão são elementos fundamentais para a compreendermos a história do capitalismo mundial. A escravização de africanos e seus descendentes nas Américas insere-se na etapa de expansão da economia-mundo europeia do Mediterrâneo para o Atlântico. Trata-se de uma etapa fundamental no processo de acumulação primitiva e de transformação da economia mercantil em economia capitalista (BARBOSA, 2021). Marx observou, em seu tempo histórico:

 

“A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para caça comercial de peles-negras, caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a dominação Espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China” (MARX, 2013, p.821).

 

Em meados do século XVII a Inglaterra tornou-se senhora absoluta dos mares, e passou a dominar o tráfico negreiro. Ao abordar esse fato, Clóvis Moura menciona a Ata de Navegação de 1651, que impunha que as mercadorias procedentes da Ásia, África e América só fossem transportadas por navios britânicos. Em 1776, havia quinhentos mil escravizados nas colônias inglesas da América do Norte. Em 1792, havia 132 embarcações inglesas com a finalidade de traficar escravizados, atividade que contribuiu em escala ponderável para a acumulação primitiva de capital. O conhecido Porto de Liverpool nasceu de um entreposto de escravizados (MOURA, 2014, p.85).

 

“(...) na paz de Utrecht, a Inglaterra arrancara aos espanhóis, pelo Tratado de Asiento, o privilégio de explorar também entre a África e a América espanhola o tráfico de negros, que até então ela só explorava entre a África e as Índias Ocidentais inglesas. A Inglaterra obteve o direito de guarnecer a América espanhola, até 1743, com 4800 negros por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, uma cobertura oficial para o contrabando britânico. Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi o método de acumulação primitiva, e até hoje, a ‘respeitabilidade’ de Liverpool é o Píndaro do tráfico de escravos, que – cf. o escrito citado do dr, Aikin, de 1795 – ‘eleva até a paixão o espírito de empreendimento comercial, forma navegantes afamados e rende quantias enormes de dinheiro’” (MARX, 2013, p.829).

 

A Inglaterra fez sua revolução burguesa no século XVII (1642-1653). No entanto, durante longo período manteve o tráfico de escravizados como atividade econômica da qual se beneficiava, e só investiu em seu fim quando a escravidão se tornou um entrave em determinada etapa de seu desenvolvimento capitalista. A Inglaterra beneficiou-se da escravidão mesmo no período da Revolução Industrial. A diplomacia Inglesa, em meados do século XIX combateu o tráfico de escravizados no Brasil forçando a implementação da Lei Eusébio de Queirós (1850), que o proibiu. Porém, uma década depois os ingleses apoiavam os Confederados do Sul, escravistas, na Guerra Civil dos EUA (1861-1865). As indústrias inglesas, orientadas pelo liberalismo econômico, dependiam do algodão dos escravistas do sul estadunidense (MOURA, 2014, pp. 87-89).

 

“Ao mesmo tempo que introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo” (MARX, 2013, p.829).

 

Clóvis Moura também entende a escravidão moderna, lastreada pelo tráfico de africanos escravizados (ambos pilares fundamentais do antigo sistema colonial) como elemento essencial na formação e na expansão do capitalismo industrial: “(...) como cimento e alicerces da sociedade capitalista, a escravidão, durante um período de tempo relativamente longo, foi um de seus elementos mais importantes”(MOURA, 2014, p.87). Tal qual Eric Williams demonstrou em sua obra seminal:

 

“Assim, o comércio marítimo triangular deu um triplo estímulo à indústria britânica. Os negros eram comprados com artigos britânicos; transportados para as fazendas, eles produziam açúcar, algodão, anil, melaço e outros produtos tropicais, cujo processamento criava novas indústrias na Inglaterra; e, enquanto isso, a manutenção dos negros e seus donos nas fazendas fornecia mais um mercado à indústria britânica, à agricultura da Nova Inglaterra e aos pesqueiros da Terra Nova. Em 1750, praticamente não existia nenhuma cidade mercantil ou manufatureira na Inglaterra que não estivesse ligada de alguma maneira ao comércio colonial triangular ou direto. Os lucros obtidos forneceram um dos principais fluxos da acumulação do capital que, na Inglaterra, financiou a Revolução Industrial” (WILLIAMS, 2012, p.90).

 

Para além da compreensão da história do Brasil e de outros países americanos, o sistema escravista que vigorou dos séculos XVI ao XIX se inscreve em um processo de longa duração em escala global, sem o qual não compreendemos as forças estruturais do capitalismo na história (MARQUESE).

 

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Wilson do Nascimento. A Economia do Negro no Brasil. 1ª ed. São Paulo: GMARX – USP, 2021.

MARQUESE, Rafael Bivar. “Desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira”. In: Revista de História, São Paulo, nº 169, pp.223-253, Julho/Dezembro, 2013.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5ª ed. São Paulo: Anita Garibald / Fundação Maurício Grabois, 2014.

WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das letras, 2012.

 

[1] Este texto é uma seção, com alterações, de um artigo de minha autoria: “Escravidão e Capitalismo na obra de Clóvis Moura”, publicado originalmente na revista História e Luta de Classes, Ano 16, Nº 31, Março, 2021. Disponível em: http://dev.historiaelutadeclasses.com.br/

 


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