Ano 2 nº 37/2021: A Política Imperialista do Fascismo Italiano na Espanha - Davi Paulino

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A POLÍTICA IMPERIALISTA DO FASCISMO ITALIANO NA ESPANHA:

UM COMENTÁRIO A PARTIR DO TRABALHO DE CAMILLO BERNERI

 

Davi Luiz Paulino

Mestrando em História Econômica –USP e membro da Biblioteca Terra Livre

 

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Imagem por Antonio B. Canellas

 

Camillo Berneri (1897-1937) foi um militante anarquista italiano que, após a Primeira Guerra Mundial, passou a lecionar filosofia na Universidade de Camerino e a colaborar com os periódicos Umanitá Nuova e Pensiero e Volontá. Com a instauração da ditadura fascista na Itália, refugiou-se em diversos países como França, Suíça, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Holanda e, com a eclosão da Guerra Civil na Espanha, dirigiu-se ao país para lutar ao lado de voluntários italianos em uma Coluna. Posteriormente, como membro da CNT-FAI, passou a intervir nos rumos políticos da organização anarcossindicalista. 

Além de sua intervenção no espaço cenetista, Berneri buscou compreender o papel da Espanha no cenário europeu naquele contexto. Se de um lado temos a política de não intervenção encabeçada pela Inglaterra, por outro lado, Itália, Alemanha e Portugal garantiam apoio político e material para os militares espanhóis insurgidos. O interesse desses países em intervir nos rumos da guerra chamou a atenção de Berneri, que passou a buscar as raízes dessas pretensões, principalmente da Itália fascista.

A Itália, no período da ascensão do fascismo ao poder, era semelhante à Espanha em relação à dinâmica socioeconômica do país. Nicos Poulantzas, em seu estudo sobre as ditaduras, fala da dificuldade de se constituir a unidade italiana, pois, para o autor, o país se dividia entre a “burguesia do norte e os agrários do sul”, dado que a “ausência de acumulação de capital na agricultura deixou os agrários à margem da industrialização.”[1] Essa situação era parecida com o que se passava na Espanha – regiões com técnicas arcaicas de exploração do solo, como a Andaluzia, encontravam-se às margens de regiões industrializadas como Catalunha e Astúrias.[2]

Para Poulantzas, no caso italiano, essa divisão do norte com o sul era a representação de duas perspectivas. De um lado, um pensamento feudal (sul) e, de outro lado, um pensamento imperialista (norte) – este último sendo o representante da ideia “expansionista e intervencionista”[3].

Segundo Camillo Berneri, no trabalho Mussolini e a conquista de Baleares[4], o fundamento do suporte fornecido pelo governo italiano aos militares espanhóis na guerra civil consistia em abrir caminho para a conquista e expansão de seu poder no Mediterrâneo, através da região das Baleares. No entanto, essa política imperialista se iniciou antes da década de 1930. Começou com as incursões da Liga Naval Italiana pela costa espanhola com a perspectiva de aumentar o prestígio da Itália na região[5]. O autor aponta que em 1928 foi realizada a primeira esquadra mediterrânica com paradas nos portos de Palma de Mallorca, Alcudia, Ibiza, Máhon, Pollensa, Sóler e Ciudadela. É importante destacar que esse percurso teve a aprovação do governo espanhol.

No estudo de Berneri, é possível identificar a rede de monitoração que os italianos tinham sobre essas cidades. A administração de Palma de Mallorca fornecia, por exemplo, informes detalhados acerca da movimentação das frotas navais inglesas na região. Esse intercâmbio de informações era baseado na troca de “cartas, informes e telegramas entre a Agência Consular de Palma, o Consulado Geral de Barcelona, a Embaixada de Madri e o Ministério de Assuntos Exteriores".[6]

Com um trabalho bem documentado, Camillo Berneri nos desenha um quadro que evidencia a política imperialista do fascismo italiano em relação à Espanha desde os anos de 1920 até meados da década de 1930. Embora pareça exaustivo, achamos importante destacar os momentos em que as atenções de Roma estavam voltadas para o Mediterrâneo:

  • 28 de julho de 1926 - o consulado de Barcelona informava ao embaixador em Madri as bases estratégicas espanholas no Mar Mediterrâneo com destaque para as Ilhas Baleares;
  • 11 de dezembro de 1926 - o consulado de Barcelona em contato com a embaixada em Madri e com o Ministério de Assuntos Exteriores informava a chegada de artilharia na região de Palma de Mallorca;
  • 21 de maio de 1927 - o consulado de Barcelona solicita ao representante militar da embaixada em Madri dois mapas militares da Ilha de Mallorca e no dia 6 de outubro renova essa solicitação;
  • 19 de outubro de 1928 - o consulado de Barcelona requisita informações para a Agência Consular de Palma sobre a visita do rei da Espanha na Ilha de Mallorca;
  • 17 de junho de 1929 - a Agência de Palma comunicou o consulado em Barcelona da chegada em Alcudia de veículos militares da Armada Espanhola. Esses informes acerca da chegada de militares espanhóis na região continuariam até o fim da guerra civil.[7]

 A monitoração não se restringia apenas a essas atividades. Em um telegrama de 1933, o conde Romanelli se dirige ao embaixador em Madri alegando que a “Alemanha quer ativar sua ação política e econômica na Espanha, na qual conta com muita simpatia e admiração”[8]

No entanto, para a Itália, o perigo maior eram os britânicos. Isso fica mais evidente quando o consulado de Barcelona demonstra a intenção de divulgar publicações na qual pretendem denunciar a intervenção inglesa no Mediterrâneo. Em um telegrama, de fevereiro de 1936, o cônsul de Barcelona reporta à embaixada em Madri que uma revista na qual o consulado publica artigos de interesse dos italianos está trabalhando em uma edição sobre as Ilhas Baleares e que seria importante ter nessa revista ao menos um artigo que abordasse a atuação britânica na região[9].

Segundo Berneri, as Ilhas Baleares, nos documentos italianos, apareciam a partir de três pontos que dominavam a pauta dos assuntos discutidos entre as autoridades diplomáticas. Com efeito, o autor destaca “a importância estratégica dos portos, o prestígio italiano sobre a população e a situação política local.”[10]

Essa postura do governo italiano não incomodava os setores conservadores da sociedade espanhola – pelo contrário, as incursões imperialistas italianas eram vistas com bons olhos por esses setores. Podemos ver um exemplo dessa simpatia na declaração do jornalista José Mª Salaverría no diário La Vanguardia de Barcelona, na qual dizia que a,

Itália teve a virtude de restituir ao Mediterrâneo a importância que ele vinha perdendo. O mar que antes era o centro vital da civilização concluiu por se converter em um modesto lago rodeado de ilustres ruínas e veneráveis recordações. [...] França e Espanha podem olhar para outros lados, escolher outras saídas para o mundo, já a Itália se vê fechada em seu pequeno mar e como não é capaz de se resignar à pequenez, procura alargar seu “cárcere” [...] O Mediterrâneo volta a recuperar sua categoria política graças à Itália.[11]

Nesse trecho é perceptível a busca por retornar a um passado grandioso, de um mar que antes era o centro do mundo. Esse discurso era uma característica presente no pensamento conservador, não é apenas coincidência que Salaverría fale da virtuosidade da política italiana.

Tal política, no contexto da guerra civil, delimitou os espaços de controle dos militares italianos no mediterrâneo. Camillo Berneri nos mostra como as operações militares na região eram praticamente controladas pela Itália e fica claro, também, seu poderio bélico.

Palma de Mallorca se converte em uma base importante da aviação italiana. Berneri recorre às informações do jornal Le Journal de Barcelona para mostrar que ao longo das operações da aviação no Mediterrâneo, dos 150 pilotos em atuação apenas 2 eram espanhóis, os demais eram todos italianos.

Continuando com sua análise do crescimento do domínio italiano no mediterrâneo, o autor aponta que isso “está se convertendo em um fato e Mussolini poderia incitar o Egito contra a Inglaterra e Túnis, Argélia e Marrocos contra a França, enquanto reforça seu poder colonial italiano em Trípoli e Etiópia.”[12]

Essa análise demonstra como Camillo Berneri preocupava-se em compreender os rumos da política internacional e o papel subserviente que a Espanha vinha ocupando nesse cenário. Sua principal contribuição foi a de historiar as relações diplomáticas da Itália e a cooperação de setores conservadores da sociedade espanhola com a expansão italiana.

 

Referências

BERNERI, Camillo. “Mussolini a la conquista de las baleares”. In BERNERI, Camillo. Escritos. Madrid: La Congregación, 2016, p. 545-602. Disponível em: es.theanarchistlibrary.org. Acesso em abr. 2021.

LARA, Manuel Tuñon de. Tres claves de la Segunda Republica. Madri: Alianza Editorial, 1985.

POULANTZAS, Nicos. Fascismo y dictadura. México: Siglo XXI Editores, 1971.

 

 

[1] POULANTZAS, Nicos. Fascismo y dictadura. México: Siglo XXI Editores, 1971, p. 126-127. Todas as traduções são nossas.

[2] Para uma análise sobre a dinâmica da estrutura espanhola foi consultado o trabalho de LARA, Manuel Tuñon de. Tres claves de la Segunda Republica. Madri: Alianza Editorial, 1985.

[3] POULANTZAS, op. cit., p. 145.

[4] Trabalho publicado originalmente pela seção italiana da Oficina de Propaganda da CNT-FAI em Barcelona no ano de 1937.

[5] BERNERI, Camillo. “Mussolini a la conquista de las baleares”. In BERNERI, Camillo. Escritos. Madrid: La Congregación, 2016, p. 553.

[6] Ibid., p. 570.

[7] Todas essas informações foram extraídas do trabalho de Berneri.

[8] Ibid., p. 571.

[9] Ibid., p. 580.

[10] Ibid., p. 595.

[11] Ibid., p. 595.

[12] Ibid., p. 602.

 


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