Ano 2 nº 38/2021: Revolução de 1932: identificação de acervos e levantamento de fontes sobre a economia e o esforço de guerra - Lorena Gnaccarini

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Notícias de pesquisa ...

 

REVOLUÇÃO DE 1932: IDENTIFICAÇÃO DE ACERVOS E LEVANTAMENTO DE FONTES SOBRE A ECONOMIA E O ESFORÇO DE GUERRA

 

Lorena Gnaccarini

Graduanda em História - USP

 

Em agosto de 2018, início de meu segundo semestre de graduação em História na USP – Universidade de São Paulo, me candidatei à vaga de bolsista de iniciação científica no projeto do professor Lincoln Secco, entitulado Revolução de 1932: Identificação de Acervos e Levantamento de Fontes sobre a Economia e o Esforço de Guerra. Embora desde o início da faculdade eu viesse me interessando especialmente pela Idade Moderna, vi no tema proposto pelo professor uma oportunidade de retomar e aprofundar um estudo já iniciado para a monografia de conclusão do Ensino Médio, na qual tratei da contribuição do movimento tenentista para a ascensão de Getúlio Vargas na Revolução de 1930. Eu nutria, à época, certo fascínio pela Era Vargas, que sem muito embasamento considerava ser o momento de ruptura definitiva do Brasil com suas estruturas coloniais – enfraquecia-se ali, afinal, a hegemonia política das burguesias oligarcas, e os interesses dessa classe davam lugar, pela primeira vez, a um planejamento de desenvolvimento nacional. Tal constatação era suficiente para os meus 18 anos afirmarem: Vargas fundou o Brasil.

Leituras posteriormente indicadas pelo professor Lincoln certamente viriam a matizar meu pensamento. Edgar Carone, antigetulista e também avesso à vanglorização da elite paulistana e de sua revolta em 1932, cujo estudo pioneiro da República brasileira baseou-se em seleções de jornais do período nunca antes revisitados, certamente foi minha principal referência nesse processo. Em O Estado Novo (1937-1945), o autor desassocia a formação da democracia à atuação do Estado, que afirma ser sempre autoritário – os momentos democráticos seriam, essencialmente, aqueles em que a classe trabalhadora se organiza livremente. Carone não nega que tenha havido transformações econômicas importantes a partir da Revolução de 1930, mas evidencia também o caráter conservador do novo Estado, que adotou postura continuamente repressora em relação aos movimentos operários, alternando entre recursos propriamente violentos e a ação persuasiva.

Logo em 1931 é extinguida a pluralidade sindical, recuperada em 1934 após fortes protestos e novamente suprimida no golpe de 1937. A legislação trabalhista, estabelecida em 1934 e aperfeiçoada no decorrer da ditadura varguista, integra as corporações e seus trabalhadores à instância estatal, colocando toda a estrutura trabalhista sob tutela do Ministério do Trabalho. Carone coloca em questionamento até mesmo o Movimento Queremista, sugerindo que boa parte de seus integrantes não apoiam, de fato, o líder Getúlio Vargas, mas buscam aproveitar-se da conjuntura para obter conquistas trabalhistas e salariais. Todos esses fatores somados à permanência do militarismo repressivo da República Velha levam, no mínimo, à relativização das intenções inovadoras e revolucionárias do movimento de 1930.

Na reunião de seleção para a bolsa, entretanto, o professor Lincoln ouviu, com os modos acolhedores que lhe são típicos, todos os meus relatos sobre a paixão de repente reacesa por Getúlio, inclusive sobre o dia em que, visitando o Palácio do Catete, encostei meu dedo indicador na mancha de sangue remanescente no colchão em que ele se matou – rompo novamente a promessa que fiz ao segurança do Palácio de jamais contar a ninguém. Devo ter sido convincente sobre minha qualificação para a pesquisa, porque o professor prontamente me aceitou. A pesquisa consistia na identificação e visita a acervos nos quais se pudesse encontrar documentos relevantes para o estudo do conflito bélico de 1932 e de suas implicações econômicas, sociais e culturais. Lincoln sugeriu que inicialmente eu buscasse os livros de ordens do dia do Exército no arquivo do MPMESP - Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo e, em seguida, verificasse o AEL - Arquivo Edgard Leuenroth e o Arquivo da Cúria Metropolitana Dom Duarte e Silva.

 

MPMESP – Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo

 

No dia 18 de setembro de 2018, escrevi ao professor:

“Hoje visitei o museu. O livro de ordens do dia não está acessível porque está em péssimo estado - embalado não se sabe quando nem por quem, com bastante fungo a ponto de configurar risco à saúde. No entanto, pude analisar os boletins gerais do ano de 1932, e acredito que fosse isso o que você tinha em mente. Neles constam, diariamente com exceção dos domingos, todas as atividades cotidianas e burocráticas da Força Pública do Estado - alistamento, afastamento, transferências, mortes, convocações para eventos, decretos e vez ou outra quadros esquematizando dados numéricos referentes, por exemplo, à quantidade de cabos e soldados distribuídos pelas instituições militares.

O diretor do museu, Coronel Galdino, me explicou a diferença entre as ordens do dia e os boletins gerais: aquelas eram mais locais, ou seja, específicas de cada batalhão (1°, 2°), enquanto estes diziam respeito à Força Pública como um todo. De qualquer forma, com o tempo as ordens do dia passaram a se chamar boletins gerais também. Ele me recomendou que checasse os jornais de 1932, pois os registros dos boletins são em sua maioria práticos. Achei uma boa ideia, mas não descartaria os boletins porque desde o mês de janeiro encontrei trechos de condenação a um certo movimento separatista, e as referências tornam-se explícitas e contundentes no mês de julho.”

Ficou combinado que eu analisaria, no arquivo do Museu, os registros referentes a todos os meses de 1932 e fotografaria as páginas que julgasse relevantes para a pesquisa. 10 dias depois, a bibliotecária do Museu, Fernanda Moreira, a pedido do Coronel Galdino, me propôs fazer a digitalização completa dos Boletins Gerais daquele ano em parceria com a USP - o Museu, financiado pela Lei de Incentivo à Cultura, popular Lei Rouanet, não dispunha dos equipamentos necessários, e os Boletins estavam em processo preocupante de deterioração. O MPMESP foi instalado no antigo Hospital da Força Pública, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo em 1896, e afora os cuidados de jardinagem não parece haver ali muito investimento voltado à manutenção do prédio. O arquivo, instalado em um dos cômodos do segundo andar, não conta com sistema de climatização ou outros recursos tecnológicos de conservação, e sua preservação depende exclusivamente do elogiável zelo da bibliotecária.

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Tendo recebido o documento de autorização para retirada dos Boletins Gerais da Força Pública de São Paulo de 1932 das dependências do Museu, organizei a digitalização e elaborei um sumário, na intenção de facilitar futuras análises dessas fontes. Identifiquei cinco categorias temáticas nelas tratadas e indiquei as datas em que cada tema aparece: (1) referência direta à rebelião constitucionalista; (2) relações do Exército com autoridades estatais; (3) decretos; (4) organização interna da Força Pública; e (5) princípios/manifestações ideológicas[1]. Os registros logísticos, organizativos e contábeis referentes às atividades cotidianas dos diferentes batalhões constituem o conteúdo essencial dos Boletins, mas junto deles circulam também informações preciosas para o estudo das articulações políticas e do contexto social da época.

É o caso dos telegramas enviados por autoridades. Mensagens do interventor federal Pedro de Toledo contribuem para a compreensão do processo de sua cooptação pelo movimento revolucionário. Ele ocupava o cargo desde março, mas é a partir de maio, por ocasião de uma carta organizada por agentes da Força Pública em apoio à sua atuação, que as mensagens do interventor aparecem com crescente frequência e com teor cada vez mais simpático à instituição militar de São Paulo. O caso do capitão Odilon Aquino de Oliveira, constante no boletim do dia 21 de maio de 1932 e exposto nas imagens abaixo, requer análise mais aprofundada, mas já fornece alguns detalhes sobre os primórdios da negociação entre Pedro de Toledo e a Frente Única Paulista (FUP) – a FUP foi uma organização derivada da união entre o Partido Democrático (PD), que outrora apoiara Vargas, e o Partido Republicano Paulista (PRP), fundado durante a Convenção de Itu e predominante no cenário político de São Paulo durante toda a República Velha; suas bandeiras eram a reinstituição da Constituição e a defesa da autonomia estadual paulista.

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Outro exemplo da variedade de informações que esses documentos podem oferecer é o recado de agradecimento do Palacete Santa Helena pelo comparecimento dos oficiais da Força Pública à exibição, no Cine Teatro do prédio, do filme O Último Pelotão (1919), dirigido pelo norte-americano Burton L. King. Originalmente com o título The Lost Battalion, o filme mudo narra a investida da 77º Divisão de Infantaria dos Estados Unidos na Floresta Argonne, França, em outubro de 1918, ao fim da 1ª Guerra Mundial[2]. O Palacete Santa Helena, inaugurado em 1925, foi projetado pelos arquitetos Corberi e José Sacchetti, contendo cinco blocos e sete andares, com dois cinemas, quatro lojas, duas sobrelojas e 276 salas multiuso, além do Cine Teatro que recebeu os oficiais da Força Pública. O prédio foi demolido no ano de 1971, dando lugar à estação metroviária Sé. No dia 06 de janeiro de 1932, a administração do Palacete oferecia ainda desconto no ingresso do cinema aos militares que comparecessem fardados, o que demonstra o fervor bélico latente no cotidiano paulista nos meses que precederam a rebelião constitucionalista.

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AEL - Arquivo Edgard Leuenroth/Centro de Pesquisa e Documentação Social

 

Finalizada a digitalização e sumarização das fontes do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo, a pesquisa se dirigiu ao AEL - Arquivo Edgard Leuenroth/Centro de Pesquisa e Documentação Social, pertencente ao IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas. Nesse arquivo há um catálogo de microfilmes em que consta, entre outros conjuntos, o ADEB – Arquivos Diplomáticos e Estrangeiros sobre o Brasil I (Estados Unidos) e II (Grã-Bretanha). O acervo inicial do Arquivo adveio de uma aquisição da UNICAMP, em parceria com a FAPESP, da coleção de documentos impressos relativos ao movimento operário reunidos pelo jornalista, militante e pensador anarquista que dá o nome à instituição. Edgard Frederico Leuenroth (1881-1968) trabalhou por 12 anos no jornal paulistano O Commercio, atuava na imprensa operária do século XX e criou diversos periódicos que propunham fazer a organização e educação da classe trabalhadora – os mais importantes foram O Trabalhador GráficoFolha do PovoA Luta ProletáriaA LanternaA Guerra SocialSpartacusA Plebe[3].

Dentre o conjunto documental ADEB, selecionei os 48 rolos de microfilme referentes ao código MR/0140-MR/0187 – Records of the Department of State Relating to Internal Affairs of Brazil, 1930-1939, destacado em vermelho na imagem abaixo, que contém documentos diplomáticos norte-americanos. O Arquivo conta com processadores de microfilme conectados a scanners digitais, o que permite fazer a digitalização de maneira simultânea à visualização do conteúdo. Vale frisar, no entanto, que o processo de digitalização é lento e os rolos são extensos, de maneira que o pesquisador deve selecionar os fólios mais relevantes. Além disso, o Arquivo exige que, ao final do dia de pesquisa, seja declarado quantas imagens foram digitalizadas em cada rolo. Eu cheguei a digitalizar 179 imagens do referido grupo de microfilmes, mas as perdi devido a um problema com o pendrive onde as havia deixado armazenadas – deixo o alerta aos pesquisadores iniciantes, sugerindo o uso do sistema de armazenamento em nuvem, além do uso conjunto de mais de um pendrive, para a segurança de suas fontes.

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Ainda que tenha perdido as imagens, eu havia feito um fichamento manuscrito reunindo os trechos mais importantes desse conjunto de documentos microfilmados. Reproduzo abaixo o fichamento em duas tabelas, uma para o ano de 1930 e outra para o ano de 1932, na esperança de que essas informações possam adiantar o trabalho de futuros pesquisadores:

 

TABELA 1: 1930

ADEB I (Estados Unidos) - RECORDS OF THE DEPARTMENT OF STATE RELATING TO INTERNAL AFFAIR OF BRAZIL (1930-1939)

1930

TEMA

CONTEÚDO

08/fev

Atentado de Montes Claros

"[...] intense political feeling which characterizes the present presidential campaign but President Washington Luis appears to have the situation well in hands."

06/mar

Notificação de envio de artigos de jornal sobre atentado

"Diário da Manhã": jornal oficial do Estado do ES; "The Journal": órgão da Aliança Liberal; "Correio da Manhã": independente e imparcial; discussão sobre o número de mortos.

08/abr

Background report covering the political, financial and economic conditions in Brazil during the past five weeks

 

22/abr

Manifesto of the Liberal Alliance

 

10/mai

Resumo da situação política; desordens na Paraíba e agitações da Aliança Liberal

conteúdo desenvolvido no dia 12/mai

01/jun

"To the Brazilian Nation", by Getúlio Vargas

 

03/jun

Conflitos na Paraíba

frase cortada: "[...] in arming its police and acquiring airplanes."

25/jul

Background report covering the political, financial and economic conditions in Brazil

 

28/jul

Confidencial: rumores de assassinato de João Pessoa

confirmação do assassinato no dia 01/ago

05/ago

Visita de Julio Prestes aos EUA (11-20/junho) e à Europa (17/junho-19/julho)

 

15/ago

Iminência de revolução no RS

 

18/ago

Funeral de João Pessoa (7-8/ago); conflitos continuam na Paraíba

"Jornal do Brasil: 'Agitação Estéril'"

02/set

Washington Luís nega as notícias de jornal

"[...] public order was complete."

16/set

Olegário Maciel assume como governador de Minas Gerais

"Jornal da Manhã": candidato é apoiado pelos conservadores e legalistas; posicionamento contrário à Revolução

09/out

Correspondências de Lafferty; São Paulo political report

diplomata americano sugere envio de "Friendly Intermediary Commission" para intervenção americana (a favor ou contra a Revolução?)

11/out

São Paulo political report

 

15/out

Correspondências de Lafferty; Western Union

 

24/out

Correspondências de Lafferty

 

25/out

The Brazilian Background

 

01-07/nov

The situation in Bahia, Brazil

 

02/nov

Possibilidade de ascensão de Getúlio Vargas

 

11/nov

The Fundamental Law of the Provisional Government

decretos do Governo Provisório de 11 de novembro enviados aos EUA no dia 12/nov

19/nov

Exílio dos antigos governantes; Revolução de 1930 segundo os militares brasileiros

 

05/dez

Declaração de Assis Chateaubriand

"O Jornal": declaração anti-getulista de Assis Chateaubriand

08/dez

Dissolução do Congresso Nacional

"Official Gazette"

 

TABELA 2: 1932

ADEB I (Estados Unidos) - RECORDS OF THE DEPARTMENT OF STATE RELATING TO INTERNAL AFFAIR OF BRAZIL (1930-1939)

1932

TEMA

30/jan

Relato da situação do Brasil, ainda conflituosa

09/fev

Political developments in Pernambuco during January, 1932

07/mar

Statement of the chief of the Provisional Government to the visiting members of the 3rd October club

11/mar

Brazil's political complications (SP)

13/mar

The Germany election of March 13, 1932

17/mar

Relations between the political leaders of RS and the chief of the Provisional Government in RJ

19/mar

Political situation in Rio Grande do Sul

21/mar

"The political situation in Pernambuco becomes more tranquil"

31/mar

Rio Grande Heptalogue; RS breaks with administration

12/abr

Two letters from Brazil: (I) conditions at the end of 1931; (II) conditions in march, 1932 - political troubles in SP

20/mai

"Manifesto à Nação", por Getúlio Vargas

23-24/mai

Telegramas sobre manifestações em São Paulo

25/mai

Situação política de São Paulo

03/jun

Situação política de São Paulo

11/jun; 30/jul; 09/ago

São Paulo political report nºs 47, 48 and 49

14/jul

Quadro de "Fac-Similes"

31/jul

Carta de Pedro de Toledo, governador de SP; impossibilidade de bloqueio de SP

23/ago

São Paulo political report nº 50

01/set

Movimento Constitucionalista no Rio Grande do Sul

 

Arquivo da Cúria Metropolitana Dom Duarte e Silva

 

A documentação do Arquivo da Cúria Metropolitana foi reunida pelo sacerdote Dom Duarte Leopoldo e Silva em 1918, mas ele foi instalado no Seminário Central do Ipiranga, onde atualmente funciona, somente em 1984. O Arquivo se localiza na parte de trás do prédio da Paróquia Imaculada Conceição do Ipiranga, construída em 1967. A primeira sede do então chamado Seminário Provincial de São Paulo datava de 1856 e se localizava na Avenida Tiradentes, mas ela foi atingida pelo bombardeio do governo à Estação da Luz em 1924, durante a Revolta Paulista liderada pelo general Isidoro Dias Lopes. A nova sede, no bairro do Ipiranga, foi construída entre os anos de 1929 e 1934 sob as ordens de Dom Duarte e Silva, que também havia comandado a construção da Catedral da Sé. Hoje funcionam no terreno do Seminário também o campus Ipiranga da PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica e a Biblioteca Teológica Dom José Gaspar.

No Arquivo da Cúria Metropolitana Dom Duarte e Silva,  analisei o Livro de Tombo da Catedral da Sé referente ao ano de 1932. Os Livros de Tombo são tradicionalmente escritos pelo pároco responsável, que deve registrar acontecimentos históricos e procedimentos administrativos de maior relevância para a comunidade eclesial. Ao analisar a fonte, fiz transcrição manuscrita de trechos relevantes e registro fotográfico de uma das páginas, em que é mencionada uma matéria do jornal Folha da Manhã, do dia 13 de novembro de 1932, a respeito da instalação da Liga Eleitoral Catholica – a foto está reproduzida abaixo. Diante da progressiva urbanização brasileira a partir da segunda década do século XX, da criação do Partido Comunista Brasileiro e do decorrente enfraquecimento da influência da tradição católica no país, a Igreja buscava maneiras de fortalecer as pautas e ideais cristãos no âmbito político. Nesse contexto foi criada, em 1921, a revista A Ordem, onde mais tarde circulariam os princípios da Liga Eleitoral Católica (LEC) e de seu organizador, Dom Sebastião Leme, registros que nos ajudam a compreender a inserção dessa frente eclesial no cenário sociopolítico da Era Vargas.

A Liga Eleitoral Católica foi fundada no final de 1932, quando começava o processo de reconstitucionalização, com o objetivo de dar o apoio da Igreja a candidatos afins ao programa católico sem associar a imagem eclesiástica a nenhum partido político. Reunindo intelectuais e setores da classe média paulista, a LEC teve uma participação expressiva nas eleições de 1933 para a Assembleia Nacional Constituinte. Durante a Revolução de 1930, Dom Leme já havia exercido o papel de intermediário entre os chefes militares e o presidente deposto Washington Luís, e o clérigo buscou imprimir a mesma postura diplomática à LEC – o estímulo à participação, pela comunidade católica, no processo de construção da nova ordem institucional buscava não entrar em conflito direto com o governo de Getúlio Vargas e por vezes colaborava com ele, no intuito de obter concessões à Igreja. Vale notar, entretanto, que nas atas analisadas constam diversas passagens favoráveis ao movimento constitucionalista, bem como o registro da organização de missas direcionadas à “alma dos heróicos patriotas” mortos na repressão à rebelião paulista e a reprodução de diversas notícias dos principais jornais do Estado de São Paulo relacionadas ao assunto.

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Transcrevo abaixo alguns trechos do Livro de Tombo da Catedral da Sé. Nos dias em que estavam copiados trechos extensos de jornais, eu apenas indiquei o nome do periódico e o título da matéria, para o caso de interessar a futuros pesquisadores:

 

JANEIRO

17/01: Vigário da Boa Morte – anúncio dia 17

“Em todos os domingos, de hoje em diante, far-se-a na Capella de Sta Luzia, às 7 horas da tarde, uma hora de adoração e de rezas pela conversão dos peccadores da parochia, da Capital e do mundo inteiro. Todos os fiéis são convidados para participarem desta hora de supplicas pelos peccadores porém sem causarem prejuízo às demais horas de adoração, porque senão Nosso Senhor ficaria sósinho nas outras horas do dia.

É uma hora supplementar, uma hora de generoza delicadeza para com N. Senhor offendido pelos peccadores. Aquelles que tiverem compaixão dos Nossos irmãos, os peccadores, não faltarão a este apello de Jesus Sacramento.”

***

JULHO

13/07: Estado de São Paulo 12/07: “À Nação” [...]

***

14/07: Estado de São Paulo 11/07: “Ao Povo Brasileiro” [...]

Estado de São Paulo 23/07: “Pela Paz do Brasil” [...]

Estado de São Paulo 20/07: “Pela Paz da Familia brasileira” [...]

***

25/07: Da Folha da Noite: domingo, 24 de julho primeira edição

Romaria à Apparecida pela paz do Brasil [...]

***

27/07: Do Estado de S. Paulo – terça-feira, 26/07

Assistencia espiritual aos combatentes [...]

O Vigario desta parochia mandou no dia 27 de julho ’32 o seguinte aviso para os diários de S. Paulo:

“Missa Campal no quartel do Corpo de Bombeiros

De acordo com as autoridades Metropolitana e Militar o Vigario da Bôa Morte celebrará amanhã, ás 8 horas, missa campal no quartel do Corpo de Bombeiros, situado á rua Annita Garibaldi, por alma dos heroicos patriotas que já deram seu sangue pelo triumpho do Direito e da Justiça.

O padre Affonso Chiaradia fará antes da missa um sermão alusivo á ceremonia, durante a qual haverá comunhão geral dos militares.

O Vigario convida a todos os parochianos, especialmente as creanças da Cruzada Eucharistica e demais fieis para assistirem a este solene acto de grandioso patriotismo e receberem a Sagrada Communhão.”

***

29/07: Folha da Noite 28 de julho

Pela Alma dos que cahiram na luta

UMA EXORTAÇÃO

Antes de (o vigario) começar o santo sacrifício, o remo padre Affonso Chiarodio fez um impressionante sermão. As suas palavras, repassadas de sentimento christão, não deixaram, porém de constituir uma exortação aos soldados que partiam. O orador encitava-os a que combatessem, com valor, pois disso dependia a felicidade do Brasil, que, desse modo, se ia integras no regime da lei.

Em seguida, passa (o vigario) a celebrar a missa, que é assistida pelos presentes, com elevado espirito de religiosidade.

Numerosas Communhões

A nota mais impressionante desse acto religioso foi, sem dúvida, o numero de pessôas que, em memoria dos combatentes mortos, receberam a communhão: Varios soldados (um só), senhoras e creanças, para mais de cem*, _____ que equivale a um rogo al Altissimo pela proteção à causa de S. Paulo.

* mais ou menos 250 pessôas comungaram, entre as quaes 80 creanças da Cruzada Eucharistica recem fundada. O Vigario.

***

SETEMBRO

05/09: O Vigario da Bôa Morte mandou a 5 diarios desta Capital o seguinte aviso:

“Missa Campal em suffragio dos soldados mortos

No dia 6 de Setembro, ás 8 horas, no Corpo de Bombeiros, sito á rua Anitta Garibaldi, será celebrada uma Missa com Communhão geral em suffragio das almas dos nossos irmãos falecidos em combate.

Para esse acto de caridade, o Vigário da Bôa Morte convida a comparecerem com seus distinctivos todas as irmandades, creanças de catecismos, cruzados e demais fieis.

Após a missa o S.S. Sacramento será conduzido em procissão até á Igreja da Bôa Morte.

***

07/09: Da Folha da Noite 1ª edição. Terça-feira 6 de septembro de 1932

Em memoria dos que tombaram na luta pelo Brasil [...]

***

10/09: Da Folha da Noite digo da Manhã (2 ed) VI feira 9 de set. 1932.

Uma empolgante manifestação de fé religiosa. [...]

A Missa Campal hontem realizada na Praça da Sé. [...]

***

14/09: Da Folha da Manhã “13-11-‘32

          Installação da Liga Eleitoral Catholica [...]

Circular ao Clero.

          Ao clero da archidiocese foi dirigida a seguinte circular:

          “Obedecendo a um plano geral, já em andamento nas diversas dioceses do Brasil, está constituída nesta archidiocese a comissão da Liga Eleitoral Catholica, composta dos seguintes srs.: Drs. Estevam de Rezende Adolpho Borba, Mario de Soreza Aranha, ____ Limongi, Paulo ____ e Plinio Corrêa de Oliveira."

 

Próximas etapas

 

Como complemento à análise do Livro de Tombo da Catedral da Sé, seria interessante analisar também o Livro de Tombo da Barra Funda, disponível no mesmo local. Evidentemente, é necessário entrar em contato com a Cúria para saber quais as novas condições de visitação decorrentes da pandemia de Covid-19, mas deixo aqui as informações que recebi, em abril de 2019, do Diretor Técnico do Arquivo da Cúria Metropolitana, Jair Mongelli Junior:

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Além disso, há uma lista de próximas fontes a serem pesquisadas para o projeto do professor Lincoln Secco:

  • Revista da sociedade rural brasileira;
  • Universitário: órgão do Departamento Universitário Constitucionalista;
  • Anuário militar do Brasil / Ministério da Guerra;
  • Revista militar paulista / Oficialidade da Força Pública;
  • Revista militar brasileira.

 

Análise

 

A ocupação da sede da II Região Militar de São Paulo, no dia 9 de julho, deu início ao levante paulista de 1932. A autoproclamada “contrarrevolução”, ou, nas palavras de Getúlio Vargas, a “revanche” paulista ao rompimento da política do café-com-leite, a princípio pretendeu se dirigir ao Rio de Janeiro. Se retendo, entretanto, numa guerra civil de trincheiras, o movimento exigiu planejamento econômico e reconfiguração da economia militar, com mobilização de apoiadores locais não militares. Embora restrito aos limites territoriais de São Paulo, contou com aliados de oligarquias descontentes do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e diversos outros estados. Foram vários, aliás, os interesses, nacionais e internacionais, que permearam a empreitada de 1932, cuja capilaridade social e relevância política à época se expressam nos registros deixados nos mais variados espaços simbólicos – de atas eclesiásticas a documentos diplomáticos.

Foi observado o posicionamento incisivamente favorável da Força Pública de São Paulo em relação à revolta paulista contra a assunção de Getúlio Vargas, com direcionamento dos recursos da instituição estatal para esse fim, cooptação do interventor federal ao movimento, correspondência com governadores de outros estados e articulação de suporte material e humano pela população paulista civil. Além disso, constatou-se um forte interesse norte-americano pelos acontecimentos da política brasileira à época; as tensões eram detalhadamente relatadas às autoridades estrangeiras por agentes americanos residentes no Brasil que, estando em contato com autoridades brasileiras e com o cotidiano político nacional, realizavam envio periódico de relatórios informativos e de notícias de jornal, em suas versões originais e traduzidas. Por fim, as atas da Catedral da Sé também evidenciam o apoio, embora mais comedido por razões de estratégia política, da Igreja Católica ao movimento constitucionalista; o Livro de Tombo da Catedral do ano de 1932 registra a organização de missas direcionadas à “alma dos heroicos patriotas” paulistas, a formação da chamada Liga Eleitoral Catholica pela reconstitucionalização e a reprodução de diversas notícias dos principais jornais do Estado de São Paulo relacionadas à Revolução Constitucionalista.

 

Fotos

 

Gostaria de apresentar aqui algumas fotos que tirei do prédio da Paróquia Imaculada Conceição do Ipiranga quando fui pesquisar no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, em 2019. Seguem adiante.

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Estátua na entrada da Paróquia Imaculada Conceição do Ipiranga (abr/2019).

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Fachada da Paróquia Imaculada Conceição do Ipiranga (abr/2019).

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Detalhe da fachada da Paróquia Imaculada Conceição do Ipiranga (abr/2019).

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Lateral da Paróquia Imaculada Conceição do Ipiranga (abr/2019).

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Corredor lateral que leva ao Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (abr/2019).

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Detalhe da escadaria que leva ao Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (abr/2019).

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Placa indicando o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (abr/2019).

 

Referências Bibliográficas

 

CARONE, E.  O Estado Novo (1937-1945). 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1988.

Da Arquidiocese. Disponível em: <http://www.arquisp.org.br/historia/da-arquidiocese>. Acesso em: 15/09/2021.

Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.

RAMOS, V.; ABRANCHES, V. Santa Helena: A marretadas, novo toma espaço do velho. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/aquijazsaopaulo/te0212200304.shtml>. Acesso em: 25/09/2021.

SECCO, L. O poder moderador de São Paulo na política nacional. 2015. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/10/1689175-o-poder-mode…;. Acesso em: 09/08/2019.

SECCO, L. Getúlio Vargas ontem e hoje. 2015. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Getulio-Vargas-Ontem-…;. Acesso em: 09/08/2019.

Quem Foi Edgard Leuenroth. Disponível em: <https://www.ael.ifch.unicamp.br/edgard-leuenroth>. Acesso em: 25/09/2021.

Arquivos consultados

Arquivo da Cúria Metropolitana Dom Duarte e Silva

AEL - Arquivo Edgard Leuenroth

Arquivo do MPMESP - Museu da Polícia Militar de São Paulo

 

[1] O sumário, juntamente com as imagens digitalizadas das fontes em questão, estarão disponíveis no site do GMARX/USP - Grupo de Estudos de História e Economia Política.

[2] O filme está disponível na plataforma do YouTube e pode ser acessado através deste link: https://www.youtube.com/watch?v=IF7a-370JeE.

[3] O acesso aos inventários e catálogos do Arquivo Edgard Leuenroth pode ser feito pela internet, através deste link: https://www.ael.ifch.unicamp.br/instrumentos-pesquisa.

 


Comitê de Redação: Adriana Marinho, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes , Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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