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RESENHA - PERICÁS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln. História do PCB. Cotia: Ateliê, 2022.
Renan Somogyi Rodrigues da Silva
Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo
Capa do livro "História do PCB" organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco
História do PCB é um livro que marcará os estudos especializados no tema. Organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, pesquisadores com publicações já renomadas no campo, a obra é composta por 19 textos, cuja abrangência é extensa, mas com um assunto em comum: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e seus múltiplos imbricamentos com a sociedade e seus diversos segmentos e instituições. Lançado como marco do centenário dessa organização política – considerada por muitos o primeiro partido verdadeiramente nacional sob direção unificada no país (CARONE, 1976, 258-259) –, o livro junta-se aos demais volumes também lançados em 2022 com o mote de perscrutar a rica história pecebista, tais como: Comunistas no Brasil – 100 Anos: Um Partido Centenário Para um Novo Tempo (CARVALHO; LIMA, 2022), 100 Anos do Comunismo no Brasil (POMAR (org), 2022), Livro-Agenda 2022: Partido Comunista Brasileiro 100 anos (2022).[1] Junta-se também às reedições de livros já consagrados, como Formação do PCB (1922-1928) (PEREIRA, 2022) e Sinfonia Inacabada (MAZZEO, 2022).
Os 19 artigos utilizam diferentes prismas metodológicos para cada temática. A história editorial faz-se presente, contando com três textos: o de Wilson Milani, cujo assunto abordado é as gráficas clandestinas do partido e a repressão que elas sofreram, tanto com a prisão de seus militantes responsáveis, quanto com a apreensão e incineração do material apreendido pela polícia política – haja vista o importante papel de convencimento ideológico que esses materiais cumpriam (PERICÁS; SECCO, 2022, p. 308-310); o escrito de Pedro Estevão da Rocha Pomar, focalizado nas publicações marxistas lançadas no ínterim entre 1945 e 1964, denominado por Roberto Schwarz de um período de “relativa hegemonia cultural da esquerda no país” (SCHWARZ, 2008, p. 71). Pomar concorda que a produção teórica e gráfica de esquerda foi significativa no período, atestado pela editoração de revistas como Novos Rumos e Estudos Sociais, bem como os jornais Hoje, O Democrata, O Momento, etc., mas classifica-a como um esforço contra-hegemônico cultural (PERICÁS; SECCO, Op. cit., p. 348) – circunscrevendo sempre os veículos de mídia ao contexto político brasileiro, o qual era, via de regra, de repressão contra os marxistas. O último texto, mas não menos importante, que utiliza da história editorial como ferramenta de pesquisa é o de Dainis Karepovs, cujo intento – ainda que não enunciado – é o de complementar um estudo já iniciado por Edgard Carone sobre as edições do Manifesto Comunista no Brasil (DEAECTO; SECCO, 2004, p. 75-102). O escopo do texto, portanto, é investigar quais foram as edições lançadas durante a Ditadura Militar (1964-1985), quais traduções foram empreendidas e como as capas eram desenhadas visando burlar a censura da caserna.
Um outro grupo de textos dedica-se aos casos de “rachas” nas fileiras pecebistas, após a exposição do Relatório Secreto de Nikita Kruschev, publicado no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956. O documento é uma acusação formal contra os crimes cometidos por Joseph Stálin e teve repercussão mundial entre os seguidores do marxismo. O artigo de Milton Pinheiro trata de um evento resultante desse relatório: o VI Congresso do PCB, ocorrido em 1967, em cujo seio ocorreu a determinação da predominância do politicismo tático como forma de combater a ditadura. Em outras palavras, contrariando a linha política voluntarista afirmada pelo Comitê Central (CC) em 1958 – que teve como resultado, segundo o CC, a incapacidade de fazer frente ao golpe –, o VI Congresso exalta a participação dos militantes comunistas na política institucional (ou “oportunismo cupulista” como chamou o autor (Ibidem, p. 183)), reincidindo no mesmo erro pós-1935, quando o PCB conferiu demasiado protagonismo à fração nacional da burguesia brasileira, incorrendo novamente na mesma falha: desconectar-se da classe trabalhadora e, por conseguinte, perder protagonismo político frente a essa casta (Ibidem, p. 192-195).
O escrito de José Reinaldo Carvalho aborda a construção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), também fruto da ressonância do XX Congresso. Erros e acertos são expostos, buscando um balanço das ações políticas que o partido teve em sua história. Ao mesmo tempo, o texto não deixa de prestar uma ode aos comunistas nacionais que combateram as forças conservadoras e angariaram muitas conquistas importantes para a classe trabalhadora. Nomes como João Amazonas, Maurício Grabois, Carlos Danielli e Pedro Pomar são ressaltados como os dissidentes que permitiram a continuidade do projeto revolucionário do PCdoB – que reivindica a história do partido fundado em 1922 em contraposição ao PCB –, pautado “nos princípios do marxismo-leninismo, e de uma tática simultaneamente ampla, combativa e flexível, noções indissociáveis” (Ibidem, p. 179).
Outro racha que é abordado, sem estar ligado diretamente, contudo, ao XX Congresso, mas só tangencialmente, é o dos comunistas paulistas na década de 1970 e 1980. Com dois textos que se contrapõem, Anita Leocádia Prestes e Breno Altman discorrem sobre o assunto. A historiadora e professora aposentada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) assume o posicionamento favorável à tática manifestada por Luís Carlos Prestes, em oposição à Declaração de Março de 1958 – ainda que esta tenha contado com seu apoio para ser publicada. Segundo a autora, Prestes revelou sua relutância com o documento, pois haveria o perigo de uma “tática reformista que nos colocaria a reboque da burguesia” (Ibidem, p. 203). Os autodenominados renovadores, como classifica Anita Prestes, eram, por conseguinte, reformistas – influenciados pelo eurocomunismo – que apostaram na Democracia Como Valor Universal (COUTINHO, 1979), sem questionar o caráter de classe do sistema político. Não obstante a vitória desse segmento sobre o de Prestes, a direção do partido ficou sob controle do “pântano”, grupo classificado como oportunista e quase fisiológico – encabeçado por Salomão Malina e Giocondo Dias –, incapaz de construir uma democracia que não fosse burguesa e excludente (PERICÁS; SECCO, Op. cit., p. 211).
Breno Altman, por sua vez, defende a tese que os comunistas de São Paulo estavam preocupados com o modelo de revolução encampado pelo CC desde setembro de 1928, data do VI Congresso Mundial da Internacional Comunista (IC), quando foi instituído o modelo de revolução por etapas para países dependentes, tais como o Brasil, balizador da política pecebista até a década de 1980, incorrendo no movimento pendular entre ações à direita e à esquerda (Ibidem, p. 215). Com o objetivo de rever esse modelo, os renovadores paulistas – liderados por David Capistrano e influenciados pelas Revoluções Cubana e Nicaraguense – contestaram a necessidade de conciliações que precedessem a derrocada da Ditadura Militar.
A avaliação era que, após a vitória oposicionista de 1982, somando-se às poderosas mobilizações dos trabalhadores, o novo equilíbrio de forças tornava viável a passagem da resistência à ofensiva, levando milhões às greves e às ruas para colocar um ponto final à ditadura, através de uma rebelião popular que forçasse a precipitação de eleições presidenciais ou fosse capaz de responder à altura eventuais tentativas de endurecimento do regime[2]
Atacados e perseguidos pelo “pântano”, os militantes do grupo deixaram a sigla e adentraram no Partido dos Trabalhadores (PT), cuja “hegemonia proletária”, quando adicionada a um programa anti-imperialista, antilatifundiário e antimonopolista, poderia erigir um governo de transição, ainda nos marcos do capitalismo, para que – através do voto e da ordem política constitucional – pudesse ensejar uma sociedade socialista (Ibidem, p. 226).
Três dos textos presentes na obra são derivações de outros livros, estes já consagrados no campo de pesquisa. Tratam-se dos artigos de Marly Vianna, Marcos Del Roio e Victor e Lazar Jeifets. Vianna é reconhecida estudiosa do movimento insurrecional de 1935, batizado pela direita de "Intentona Comunista". Em seu texto, a linha argumentativa construída é clara: o projeto putschista era derivado do tenentismo e sua tática de guerrilha, expressa mais de uma vez em episódios como o Levante dos 18 do Forte de Copacabana, a Coluna Miguel Costa, a Coluna Prestes. A Internacional Comunista, com as informações apresentadas por Antônio Maciel Bonfim, o Miranda – então secretário geral do PCB –, aderiu à insurreição e enviou agentes para ajudar na empreitada, como Harry e Elize Berger, Rodolfo Ghioldi, Victor Allen Barron e Olga Benário (Ibidem, p. 108-110). O golpe, todavia, não deu certo e engendrou uma contrarrevolução ferrenha da extrema direita, como é também explicado no título da autora, Revolucionários de 35 (VIANNA, 1992).
Outro livro que teve seu conteúdo resumido como um capítulo em História do PCB foi o A Classe Operária na Revolução Burguesa: As Políticas de Alianças do PCB (1928-1935), de Marcos Del Roio (DEL ROIO, 1980). No escrito que compõe o livro resenhado, Del Roio expande o tempo abrangido em sua obra original e descreve como o PCB passou da orientação de classe-contra-classe, balizadora da insurreição de 1935, para a estratégia da revolução democrática-burguesa, da qual o cerne é a aliança policlassista para a luta antifascista e anti-imperialista, orientadora da política comunista brasileira a partir de 1936, e que termina com a deflagração da Guerra Fria e a cassação do PCB em 1947 (PERICÁS; SECCO, Op. cit., p. 121-128).
O terceiro texto é derivado de publicações mais gerais empreendidas pelos historiadores russos Victor e Lazar Jeifets. Obras como La Internacional Comunista en América Latina: Documentos del Archivo de Moscú (JEIFETS; SCHELCHKOV, 2018) e América Latina en la Internacional Comunista (1919-1943): Diccionario Biográfico (JEIFETS; JEIFETS, 2017) foram produzidas com o intuito de elucidar os estudiosos europeus sobre a experiência latino-americana na Internacional Comunista, bem como – inversamente – expor ao público da América Latina as informações contidas nos arquivos de Moscou. No capítulo do livro, os irmãos traçam uma narrativa das sucessivas intervenções da IC sobre suas filiais sul-americanas, tanto no plano teórico-ideológico, quanto no plano das políticas efetivas. Intervindo através do envio de agentes e da própria hierarquia institucional presente nas relações entre o partido mundial (IC) e as seções nacionais, o Comintern garantiu sempre ser levado em conta nas posições assumidas pelos PCs do subcontinente. Entretanto, Victor e Lazar Jeifets enfatizam claramente a limitação dessas intervenções e a resistência das seções nacionais à submissão completa à IC. Nas palavras dos autores: "As condições de atividade e formação teórica dos partidos, as personalidades de seus dirigentes, etc. eram muito diferentes. Diversos partidos muitas vezes conservaram o direito às próprias posições" (PERICÁS; SECCO, OP. cit., p. 54).
O último conjunto de artigos a destacar-se é o que trata das relações entre segmentos sociais específicos e o PCB. As mulheres, os negros, a juventude e os militares têm seus contatos com a entidade elucidados, demonstrando sempre suas aproximações e afastamentos, bem como a adesão ou não de seus planos pelo CC. Fernando Garcia, cujo capítulo aborda a história da juventude comunista vinculada ao PC brasileiro, traça um panorama amplo e ao mesmo tempo sucinto da formação e atuação da entidade juvenil. O texto remonta às primeiras organizações socialistas de jovens na Europa e descreve as vicissitudes às quais a Federação da Juventude Comunista do Brasil foi submetida até 1936, ano de seu encerramento pelo partido (Ibidem, p. 239).
Iracélli da Cruz Alvez, por sua vez, discursa sobre as reivindicações das mulheres no século XX brasileiro, manifestadas, muitas vezes, através do periódico Momento Feminino, cujos apontamentos como “luta contra a carestia, contra a crise do abastecimento, por moradia, pela qualidade dos transportes públicos e outras demandas que pudessem tornar mais confortável o cotidiano das camadas populares” (Ibidem, p. 292), nem sempre eram ouvidos pelo CC. Na realidade, muitas vezes as mulheres foram postas em uma condição passiva pelos comunistas do país, sendo um objetivo conseguir filiações femininas, mas não levar suas opiniões em consideração para traçar as linhas políticas do PCB – conjuntura contra a qual as comunistas nacionais sempre lutaram (Ibidem, p. 298-300).
Paulo Ribeiro da Cunha é o responsável por discorrer a respeito do contato travado entre a Seção Brasileira da Internacional Comunista e os militares. Interação existente desde antes da própria fundação do partido, sobre o qual o positivismo – até então predominante entre o exército nacional – exerceu grande influência. Seus teóricos e ideólogos compartilhavam, portanto, alguns conceitos em comum com os subversivos de esquerda (Ibidem, p. 355). A relação entre os campos estreitou-se e complexificou-se com o passar dos anos, principalmente após a inauguração, em 1929, do setor Antimil do PCB, responsável pela propagação do marxismo entre os militares. Os mais perseguidos durante os estados de sítio que tivemos no Brasil – principalmente a Ditadura Militar de 1964 –, os praças, soldados, cabos, tenentes e demais armígeros foram peças importantes na história do partido, participando de episódios como o já abordado levante de 1935 e ocupando diversos cargos no CC, tal como ocorreu com Luís Carlos Prestes, Agildo Barata, Apolônio de Carvalho, Dinarco Reis, personagens fundamentais na narrativa traçada e elucidada por Cunha.
A questão racial e sua relação com o partido é o objeto de análise de Gabriel dos Santos Rocha. A narrativa histórica construída demonstra a inconstância com a qual os comunistas brasileiros enfrentaram a questão racial. A princípio, como os liberais e conservadores, os marxistas negavam a existência de um racismo que não dependesse dos elementos excludentes derivados da classe social (Ibidem, p. 247-248). Com o decorrer do tempo, as mudanças surgidas no seio da IC, a relação dos marxistas brasileiros com a intelectualidade que passou a confrontar a questão racial como um problema a ser resolvido no país – como os modernistas de 1922 e a geração de 1930 da sociologia – e o surgimento de entidades militantes pelo movimento negro – como a Frente Negra Brasileira (FNB) – engendraram a incorporação da pauta na política pecebista (Ibidem, p. 252-261).
Por último, o artigo que inaugura o livro: um levantamento bibliográfico extenso, que referencia com quase 200 livros, teses, dissertações e artigos sobre a história do Partido Comunista Brasileiro. Escrito à duas mãos pelos organizadores, Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, o escrito revela grande domínio sobre a produção já realizada acerca do tema, contando com textos sobre o caráter organizativo do partido, sua produção ideológica, suas influências culturais, econômicas, políticas, suas imbricações com os diversos segmentos sociais. Um texto, em resumo, que entra para os anais das pesquisas historiográficas sobre a sigla, sendo incontornável aos seus estudiosos por realizar, talvez, o maior levantamento bibliográfico sobre o objeto.
Referências bibliográficas:
CARONE, Edgard. A Primeira República (1889-1930). Rio de Janeiro: Difel, 1976.
CARVALHO, José Reinaldo. Comunistas no Brasil – 100 Anos: Um Partido Centenário Para um Novo Tempo. Curitiba: Kotter, 2022.
COUTINHO, Carlos Nelson. “A Democracia como Valor Universal”. Encontros com a Civilização Brasileira. V. 9. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
DEAECTO, Marisa Midori; SECCO, Lincoln. Leituras Marxistas e outros estudos. São Paulo: Xamã, 2004.
DEL ROIO, Marcos. A Classe Operária na Revolução Burguesa: As Políticas de Alianças do PCB (1928-1935).Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.
JEIFETS, Victor; SCHELCHKOV, Andrey. La Internacional Comunista en América Latina: Documentos del Archivo de Moscú. Santiago: Ariadna Ediciones, 2018.
JEIFETS, Victor; JEIFETS, Lazar. América Latina en la Internacional Comunista (1919-1943): Diccionario Biográfico. Buenos Aires: CLACSO, 2017.
MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfonia Inacabada. São Paulo: Boitempo, 2022.
PEREIRA, Astrojildo. Formação do PCB (1922-1928). São Paulo: Boitempo, 2022.
PERICÁS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln. História do PCB. Cotia: Ateliê, 2022.
POMAR, Valter (org). 100 Anos do Comunismo no Brasil. Curitiba: Kotter, 2022.
SCHWARZ, Roberto. O Pai de Família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[1] O exemplar não possui autor ou organizador, mas foi escrito e editado por militantes do partido e pela Fundação Dinarco Reis.
[2] PERICÁS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln. História do PCB. Cotia: Ateliê, 2022. p.223
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