Ano 4 nº 01/2023: Vá e veja - A Democracia Operária dá certo! Os 40 anos da Comissão de Fábrica da Asama - Clara Schuartz

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Vá e veja ...

 

A DEMOCRACIA OPERÁRIA DÁ CERTO! OS 40 ANOS DA COMISSÃO DE FÁBRICA DA ASAMA (1982-2022)

 

Clara Monteiro Schuartz

Graduada em História - UNICAMP

 

asama

 

Introdução

 

A celebração dos 40 anos da Comissão de Fábrica da ASAMA foi marcada pelo enaltecimento de uma experiência ímpar de organização operária na cidade de São Paulo. Evento sediado no Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, contou com o apoio de diversas instituições como o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), o Sindicato dos Professores de Osasco e Região e o Sindicato dos Químicos Unificados de Campinas e Osasco. Contando com a exibição de um documentário e mesas com diversos representantes da Comissão da ASAMA e da luta sindical paulista desde a Greve de 1968 na Cobrasma, o evento foi marcado pelo debate sobre a importância da manutenção da memória do movimento operário na cidade de São Paulo e das experiências de Comissão de Fábrica.

No entanto, a Comissão de Fábrica da ASAMA ainda é uma experiência pouco debatida no movimento de esquerda e nos círculos acadêmicos. Nesse sentido, é importante trazer à tona, mais uma vez, a experiência dos trabalhadores da ASAMA para dentro do debate sobre o movimento sindical e as organizações operárias no Brasil. Este texto se dedica, em primeiro lugar, a situar em linhas gerais a experiência da Comissão de Fábrica da ASAMA. Em seguida, buscarei apresentar o evento dos 40 anos, as figuras envolvidas nos debates e homenagens, inserindo a memória sobre a experiência dos trabalhadores metalúrgicos da ASAMA na discussão da esquerda em São Paulo. Mais do que propor uma reflexão nova e autoral sobre o tema, o objetivo aqui é recolocar esta experiência em debate a partir da vasta bibliografia já existente e da força do evento realizado em 2022.

O debate aqui travado e a retomada da própria história da Comissão de Fábrica foi pautada por um diálogo que pude estabelecer, como pesquisadora da Equipe do IIEP, de forma direta com os membros da Comissão de Fábrica da ASAMA, que nos concederam inúmeras entrevistas e conversas ao longo de toda a preparação do evento, do documentário e da revista dos 40 anos. A própria Comissão de Fábrica foi protagonista na elaboração de todas as pesquisas e debates travados ao longo do processo de construção do evento, motivo pelo qual escolho, ao longo deste texto, me nortear pelos pontos que estes próprios militantes elencaram como centrais na elaboração de sua história como, por exemplo, sua autonomia financeira e transparência.

 

A Comissão de Fábrica da ASAMA: Origens, reivindicações e atuação

 

“Entre os anos de 1982 e 1986 os operários da Fábrica ASAMA, na cidade de São Paulo, criaram uma comissão de fábrica. A ASAMA era uma empresa metalúrgica da região oeste de São Paulo, em um cinturão industrial, sem casas, apenas fábricas, que somavam 20 mil operários. Seu capital era francês, e produzia equipamentos e peças sob encomenda. A sua produção não era seriada, não havia linha de montagem, e era controlada e cronometrada pelos chefes, na base do tempo para cada tipo de peça. Quando a Comissão de Fábrica foi formada a ASAMA tinha 280 empregados, entre produção e escritório. Na produção, a maioria dos operários são profissionais. Vários trabalhadores vinham das grandes empresas da região do ABC e já tinham, portanto, a experiência das greves dos anos anteriores.”[1]

 

É a partir desta caracterização que Josué Medeiros[2] inicia sua investigação sobre a experiência da ASAMA em um estudo de caso da organização dentro da empresa, em artigo publicado em 2013 para a Revista Mundos do Trabalho. Formada a partir de 1982, a Comissão de Fábrica da ASAMA se organiza a partir das experiências de luta de metalúrgicos ao longo dos anos 1970, como é o caso de Geraldo Ferreira da Silva, traçador de ferramentas e usinagem na empresa. Localizada na região Oeste, mais especificamente na Avenida Mofarrej, importante polo industrial de São Paulo nos anos 1980 e, por consequência, central na organização operária no período, marcando a mobilização de movimentos como a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) e sua Zonal Oeste, veiculadora de um importante boletim no período: O Faísca, Boletim da Oposição Metalúrgica da Vila Leopoldina, distribuído semanalmente na região.

 

“A experiência da Comissão de Fábrica da ASAMA só pôde existir e desenvolver toda a riqueza de suas propostas e de suas práticas pela relação contínua e estreita que manteve, em toda  sua  existência,  com  a Oposição  Sindical  Metalúrgica  de  São  Paulo.  Esta  relação  se  manifestou  continuamente  através  da participação  de  muitos  trabalhadores  da  ASAMA  e  membros da Comissão de Fábrica nas atividades da Oposição Sindical, ao apoio e ao respaldo que a Oposição Sindical sempre deu à luta dos operários da ASAMA.”[3]

 

A influência das lutas operárias anteriores de São Paulo é marcada pela própria construção do estatuto da comissão em 1982, criado sob orientação jurídica de Gilda Graciano, baseado no estatuto da Comissão de Fábrica da Cobrasma, 1968. O estatuto jurídico dessas comissões apresentava algumas marcas características e importantes sob a ótica da representação dos trabalhadores: a assembleia como principal instância deliberativa no lugar do coordenador e das instâncias superiores e a revogabilidade dos mandatos. Modelo distinto, por exemplo, do Estatuto da Comissão de Fábrica da Ford (1981), que previa maior influência da coordenação sindical sobre a comissão. A relação entre o Sindicato e a Comissão da ASAMA foi marcada por uma série de conflitos, especialmente pela reivindicação, por parte dos trabalhadores da empresa, da independência da Comissão em relação a sindicatos e partidos. O elemento central dessa organização era o debate interno à fábrica e às demandas de seus trabalhadores.

Sobre a relação entre as experiências anteriores do movimento operário e a experiência da ASAMA, Hercílio Correia Filho, mais conhecido como Alemão, mecânico de manutenção da General Eletric (GE), presta importante depoimento ao documentário Comissão de Fábrica da ASAMA 40 anos, realizado em 2022 pelo Projeto Memória da OSM-SP sob coordenação do IIEP:

 

“Eu acho que o que culminou com a Comissão de Fábrica da ASAMA foi a experiência acumulada em outras empresas. E lá na ASAMA o Geraldo teve a felicidade de contar com vários companheiros que já tinham alguma experiência, é o caso do saudoso Arcênio, que já tinha uma experiência de luta em fábrica, tinha o Pedrão. Então acho que foi a coroação de um trabalho que veio vindo lá de baixo e acabou sendo determinante para a formação da Comissão.[4]

 

Uma das primeiras conquistas da Comissão da ASAMA ao longo de sua atuação foram a equiparação salarial entre os trabalhadores na fábrica, conquista essa que foi fundamental sua legitimação por parte dos trabalhadores da fábrica e na campanha por reajuste salarial, travada no 1º semestre de 1983 que resultou em uma vitória parcial para a organização. A credibilidade da Comissão de Fábrica também se fortaleceu a partir da ênfase na transparência das decisões e gestão da Comissão de Fábrica ao longo da atuação, sempre estabelecendo um diálogo direto com os trabalhadores da fábrica.

No entanto, um dos elementos mais centrais, do ponto de vista dos próprios trabalhadores da Comissão da ASAMA, como testemunhamos pelo documentário produzido e citado acima, era sua independência e autonomia financeira, bancada pelo financiamento dos próprios trabalhadores. Neste sentido, a comissão nunca dependeu do apoio da empresa ou do sindicato, o que trazia, por consequência, mais autonomia política para a célula de organização. A caixinha que os trabalhadores realizavam para a sustentação financeira da Comissão de Fábrica via os resultados não só na mobilização dos trabalhadores por importantes reivindicações na fábrica mas também no processo formativo que se dava pela divulgação de jornais, “conversas de banheiro” e o diálogo com companheiros de outras fábricas, com divulgação de boletins de greve de outras empresas da região.

A Comissão de Fábrica da ASAMA, apesar das diversas dificuldades enfrentadas ao longo de sua existência, atuou de maneira firme até o ano de 1986, mesmo após os turbulentos acontecimentos de 1985: a demissão em massa dos trabalhadores da empresa e dos membros da comissão e posterior reintegração de posse conquistada com a orientação jurídica de Gilda Graciano, tornando a Comissão de Fábrica da ASAMA a primeira Comissão de Fábrica reintegrada no Brasil. Finalizando seus trabalhos em 1986, os principais companheiros membros da Comissão acabam saindo da empresa e construindo a luta operária em outras fábricas e ambientes de trabalho, deixando na empresa e no movimento sindical de São Paulo a marca de uma construção democrática, participativa e transparente de gestão das reivindicações e formação de trabalhadores no local de trabalho.

 

O evento dos 40 anos

 

O evento dos 40 anos, realizado em 2022 no Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco - SP, contou, em primeiro lugar, com presença das lideranças da Comissão de Fábrica, respectivamente: Geraldo Ferreira da Silva, Nelson Lira da Silva, Djalma Alexandre Dias, Josué Júlio Couto e Pedro Marcondes. O evento contou com a distribuição da revista 40 anos da Democracia Operária e Comissão de Fábrica: 40 anos da Comissão da ASAMA (1982-2022), produzida pelo IIEP por meio de uma reedição da revista de 30 anos, publicada em 2012, a divulgação de um documentário feito a partir da coleta de testemunhos de militantes e o debate aberto com lideranças sindicais históricas.

A festa da ASAMA contou com a presença e falas de companheiros centrais na história do movimento operário em São Paulo como Roque Aparecido, secretário da Comissão de Fábrica da Cobrasma em 1968, Stanislaw Szermeta, militante da OSM-SP e da base de Osasco, Pedro Barbosa da Comissão de Fábrica da Columbia, na Vila Leopoldina e Hercílio Correia Filho (Alemão) operário na General Eletric (GE). Além disso, o evento contou também com as falas de estudiosos do movimento sindical em São Paulo, Murilo Leal[5] e Antônio Carlos Roxo[6] sobre a importância não só da experiência da ASAMA, mas da investigação sobre as diversas Comissões de Fábrica existentes no Brasil especialmente a partir da segunda metade dos anos 1970. Mas a formalidade aparente das mesas de debate não foi a tônica do evento, marcado, especialmente, pela confraternização entre os presentes, contando com churrasco, distribuição de camisetas e importantes trocas de experiência e visões sobre o movimento de esquerda.

O principal mote da comemoração foi baseado em uma potente afirmação, sustentada pelos seus membros da Comissão de Fábrica em suas falas, pelos cartazes espalhados pelo evento e pelos boletins da época, reproduzidos também nas paredes do ambiente: A democracia operária dá certo. A explanação sobre as experiências da Cobrasma em paralelo à experiência da ASAMA, assim como os mais diversos comentários proferidos por lideranças sindicais e acadêmicos ao longo da festa, foram fundamentais para o entendimento da forma mais central de organização operária: a organização no local de trabalho por grupos de fábrica. É a importância desta forma de organização que ressoa a partir do evento organizado pelos trabalhadores da ASAMA e a atualidade deste debate para o ano de 2023. 

 

Considerações finais

 

Por que a nossa função qual que era? Nossa função primordial era organizar a categoria para a luta coletiva inicialmente como uma forma de autodefesa e com foco no poder lá na frente, queremos o poder.[7]

 

É com a frase acima, de Geraldo Ferreira da Silva, que se finaliza o documentário sobre os 40 anos da Comissão de Fábrica da ASAMA. Nesta sintética fala, Geraldo define o cerne da compreensão do ideal de democracia operária na experiência dos trabalhadores da ASAMA: a organização no local de trabalho, que tem como objetivo não só a conquista das reivindicações específicas dos trabalhadores mas também o processo formativo, a partir do diálogo entre companheiros, que busca, pôr fim, a conquista das instituições e, portanto, do poder. É sob esta perspectiva, que parte do contexto específico da fábrica para as formas mais amplas de organização, que se sustentam as formas operárias de democracia.

Nesse sentido, a realização do evento/festa em homenagem aos 40 anos da Comissão de Fábrica da ASAMA e as produções realizadas em torno deste tema, se mostraram extremamente atuais para o difícil contexto de 2022, ano no qual foi realizado o evento, marcado pela retomada do debate intenso sobre os sentidos da democracia no Brasil e para as expectativas e possibilidades de 2023, ano de estruturação de uma nova democracia, sob diferentes perspectivas no país.

Conhecer as experiências de organização e construção democrática nos ambientes de trabalho, marcadas, na história brasileira e, especificamente, de São Paulo, pela formação de Comissões de Fábrica, é fundamental na retomada do debate sobre a democracia no Brasil e as estruturas de deliberação da sociedade civil. Se a Comissão de Fábrica da ASAMA (1982), assim como a da Cobrasma (1968) e tantas outras que pautaram a história do movimento operário no Brasil nos demonstram que a democracia operária, de fato, dá certo, também podem orientar a esquerda e os movimentos sociais no debate sobre o trabalho de base no país, marcado, na experiência aqui analisada, pela construção de redes de solidariedade entre trabalhadores, a autonomia,  transparência e a articulação entre as demandas específicas das categorias profissionais e o atuação e debate sobre o horizonte político brasileiro.

Por fim agradeço aos membros da Comissão de Fábrica da ASAMA pela possibilidade de construção deste texto mas também aos aprendizados que me foram passados, especialmente o companheiro Geraldo Ferreira da Silva, com quem muito pude trocar ao longo de minha atuação no Projeto Memória da OSM-SP, assim como ao companheiro Sebastião Neto, coordenador do IIEP, entidade central no resgate da memória operária no Brasil. Aproveito a oportunidade também para homenagear o companheiro, membro da Comissão de Fábrica da ASAMA, Nelson Zanholo: o Espingarda ou Nevoeiro. Falecido em agosto de 2022, Zanholo participou ativamente do resgate da memória da comissão para construção do evento, e deve ser lembrado por sua atuação como metalúrgico organizado pela história das mobilizações operárias em São Paulo.

 

Bibliografia

 

PROJETO MEMÓRIA DA OSM-SP. Democracia Operária e Comissão de Fábrica: 40 anos da Comissão da ASAMA (1982-2022). Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP), São Paulo, Coleção Arquivo da OSM, 2, 2022

MEDEIROS, Josué. As dimensões das comissões de fábrica na história do sindicalismo brasileiro: um estudo de caso sobre a democracia operária na ASAMA. Mosaico, v. 4, n. 6, p. 25-41, 2013

Comissão de Fábrica da ASAMA. Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP). São Paulo, SP, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IQe9Q_u1NaU&list=PLdN7D9h6a1VkIx0mlFX8j…

 

[1] MEDEIROS, Josué. As dimensões das comissões de fábrica na história do sindicalismo brasileiro: um estudo de caso sobre a democracia operária na ASAMA. Mosaico, v. 4, n. 6, p. 25-41, 2013. pp.12-13

[2] Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[3] MEDEIROS, Josué. As dimensões das comissões de fábrica na história do sindicalismo brasileiro: um estudo de caso sobre a democracia operária na ASAMA. Mosaico, v. 4, n. 6, p. 25-41, 2013.p.22

[4] Comissão de Fábrica da ASAMA. Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP). São Paulo, SP, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IQe9Q_u1NaU&list=PLdN7D9h6a1VkIx0mlFX8j…. Grifos meus.

[5] Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), possui graduação, mestrado e doutorado em História com ênfase no estudo sobre movimento sindical brasileiro e movimento trotskista no país. Atua como coordenador da pesquisa sobre a empresa Cobrasma realizada pelo CAAF - Unifesp de título “Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”.

[6] Graduado em Ciências Econômicas, possui mestrado em demografia e doutorado na área de História Econômica a respeito da trajetória da Cobrasma como empresa no Brasil. Atua como presidente da Fundação SEADE e da Cooperativa de Consumo de Trabalhadores da Grande São Paulo (Coopergran.

[7]  Comissão de Fábrica da ASAMA. Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP). São Paulo, SP, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IQe9Q_u1NaU&list=PLdN7D9h6a1VkIx0mlFX8j…

 


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