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RESENHA – PRADO JÚNIOR, Caio. URSS, um novo mundo; O mundo do socialismo. São Paulo: Boitempo, 2023. 286p.
Giulia Oleani Bataglini Benatti
Mestranda em Criminologia pela FD-USP
Capa do livro " URSS, um novo mundo e o mundo do socialismo" de Caio Prado Jr. reeditado pela editora Boitempo (2023)
Apesar da inequívoca atualidade do pensamento de Caio Prado Júnior (CPJ), parcela significativa das obras do historiador permaneceu, por décadas, sem reedição. Coordenada por Luiz Bernardo Pericás e publicada pela editora Boitempo, a coleção Caio Prado Júnior consiste em uma rica iniciativa, já há muito necessária, de ampliar e facilitar a difusão da obra caiopradiana, para além dos clássicos que formaram uma corrente própria na formação do pensamento social brasileiro. Após a publicação de História e Desenvolvimento, uniu-se, em um só volume, seus dois livros a respeito da União Soviética (URSS) – URSS, um novo mundo e O mundo do socialismo.
De sua primeira visita à pátria do socialismo, realizada em 1933, resultou URSS, um novo mundo. Com o retorno ao Brasil, o historiador apresenta duas conferências no Clube dos Artistas Modernos e é reiteradamente demandado por novas palestras. A fim de não se repetir, sem implicar prejuízos à veiculação das informações, aceitou a proposta da Companhia Editora Nacional e publicou em 1934 a obra em comento; no mesmo ano em que CPJ ocupou a presidência regional da Aliança Nacional Libertadora em São Paulo (1935), o livro recebeu uma segunda edição, rapidamente retirada de circulação a mando do Governo Vargas[1].
O escrito se insere em um contexto de grande interesse pela URSS, com publicações consideravelmente tendenciosas, tanto em termos positivos[2] quanto negativos[3]. A priori, o autor se propõe a um “depoimento imparcial”[4]. Nota-se sua preocupação em desmistificar a imagem veiculada pela propaganda dos países capitalistas acerca do caráter repressivo do regime soviético – tema que inaugura o primeiro capítulo, sobre a organização política. Narra episódios em que presenciou a inserção ativa das massas na ordem política e, partindo da violência como pressuposto das transformações sociais, aduz ser a democracia indissociável da ditadura do proletariado, dado que a força e violência em que essa se apoia, nos termos da definição leninista[5], são monopolizadas pela classe proletária para a destruição da sociedade burguesa e construção da sociedade socialista. Trata-se de uma crítica direta aos partidos social-democratas, chegando até mesmo a cravar que “o socialismo só será realizado pelo partido que seguir as pegadas dos bolchevistas, isto é, pela insurreição armada”[6]. Para CPJ, a organização dos sovietes – mobilização das massas de trabalhadores para exercício efetivo do poder político e concentração dos poderes Executivo e Legislativo – evidenciava o “conteúdo visceralmente democrático do regime soviético”[7], que justamente por efetivar a organização do proletariado em classe dominante, inviabilizaria a realização do que denominava como a ditadura de um partido. Nesse sentido, o autor destaca que, embora único, o PCUS se estruturava em células distintas e constituía a vanguarda política do proletariado – sujeita a um rigoroso controle para ingresso e permanência –, ao passo que a existência de outro partido somente se formaria ante uma oposição ao proletariado a fim de concretizar “um obstáculo à realização das finalidades revolucionárias”[8].
O repúdio às tentativas de “comunismo por decreto” dá ensejo à discussão do segundo capítulo em torno da organização econômica da URSS. Para o autor, que observou como a transitoriedade do socialismo implica a coexistência de elementos típicos de modos de produção distintos, interessava justamente compreender como estava se operando, concretamente, a passagem do capitalismo para comunismo. De início, discorre com muito entusiasmo a respeito do planejamento, formado pelos planos quinquenais e cifras de controle, como estratégia de equilíbrio econômico. Em seguida, passa a tratar mais especificamente da heterogeneidade evolutiva da socialização soviética – apenas o setor industrial ficou sob monopólio estatal, ao passo que a agricultura e o comércio se organizaram, majoritariamente[9], em cooperativas, pertencentes e dirigidas por seus membros. De acordo com o historiador, esses dois setores sofriam influência de resquícios da Nova Política Econômica, principalmente a agricultura. À época, as cooperativas de produção agrícola (colcozes) se dividiam entre os artels e comunas. Nessas, com exceção de itens de consumo pessoal, tudo era coletivo. Já nos artels apenas a produção principal era coletivizada, conservando-se o trabalho individual e privado nas pequenas culturas. As comunas são descritas como uma espécie de fazenda-modelo, cujo formato mantinha-se minoritário por constituir “um estágio avançado da ideologia camponesa”[10] se comparada ao camponês médio, ainda muito atrelado à propriedade privada. Aliás, o autor pontua que essa “mentalidade pequeno-burguesa de produtores independentes”[11] era responsável por conservar a existência dos mercados colcozianos, regulados segundo oferta e demanda, onde se vendia a produção não adquirida pelo Estado.
No terceiro capítulo, encontra-se a posição de CPJ acerca de aspectos de diferentes matizes da organização social. No que diz respeito às relações sociais, pondera que, não obstante a presença da desigualdade material, a emulação socialista do trabalho evitou a hierarquização da ordem social, fator que, simbolicamente, refletia no pronome de tratamento único com que todos indistintamente se tratavam – camarada. Sobre a família, identificou um “processo de dupla emancipação da mulher e dos filhos do poder paterno”[12], a partir de uma reorientação do direito soviético em prol dos interesses de cada um dos membros da família, em vez de tutelar a instituição familiar. Antes de encerrar o capítulo, elabora alguns comentários a respeito das atividades religiosas na URSS, com destaques à coexistência de intensa propaganda antirreligiosa e liberdade da população para professar sua fé, seja qual fosse.
As críticas mais expressivas à URSS se concentram no quarto capítulo, que realiza um certo balanço das realizações do regime. Em síntese, ele reconhece o salto da indústria pesada, porém não ignora os problemas em termos de qualidade e eficiência produtiva, os quais reputa, essencialmente, à insuficiência de diretores, técnicos e operários qualificados. Além disso, elenca uma série de equívocos no que diz respeito à logística de distribuição de mercadorias. Para CPJ, a possibilidade de reversão desse quadro estaria no progresso de ordem intelectual que já se iniciara na URSS, com o incremento do acesso à educação formal e a redução do índice de analfabetos a patamares inferiores a 10% da população soviética.
O historiador retornará à URSS em 1960 – em uma jornada que se estendeu até a China Popular –, poucos meses após fundar, junto com intelectuais como Florestan Fernandes, a União Cultural Brasil-União Soviética[13]. Nesse ínterim de 27 anos entre as duas visitas, o mundo assistiu ao triunfo das revoluções chinesa, com o início do Grande Salto em 1958, e cubana – declaradamente socialista a partir de 1961 –, sem esquecer, por óbvio, da vitória do exército soviético sobre os nazistas em 1945. No que diz respeito à produção teórica, até 1960, além de URSS, um novo mundo, CPJ publicou obras que revolucionaram a historiografia brasileira (Formação do Brasil contemporâneo e História econômica do Brasil); ingressou no campo filosófico com Dialética do conhecimento e Notas introdutórias à lógica dialética; recebeu o título de Livre Docente com a tese Diretrizes para uma política econômica brasileira; e publicou Esboços dos fundamentos da teoria econômica.
Com a primeira edição datada de 1962[14], as primeiras linhas de O mundo do socialismo denotam a maturidade intelectual de seu autor, que renunciou de início a qualquer tentativa de parecer imparcial e declarou-se, desde logo, um comunista. O livro concentra-se em confrontar capitalismo e socialismo desde um ponto de vista de suas distinções essenciais e históricas, que residem fundamentalmente “na forma de apropriação dos meios de produção”[15]. A natureza antagônica do capitalismo, em que a obstinação pelo lucro gera um conflito de caráter tanto interclasse quanto intraclasse, é contrastada com a organização cooperativa elementar do socialismo.
Preocupado em fornecer respostas concretas para problemas concretos, Caio não instrumentalizou sua acertada rejeição a leituras mecanicistas para se furtar da elaboração teórica de elementos constitutivos do socialismo. A substituição da livre-iniciativa privada, como consequência da abolição da propriedade privada dos meios de produção, “pelo ordenamento e pela coordenação da ação econômica em função do interesse coletivo”[16], seria, de acordo com ele, a característica invariável do socialismo, ainda que a esse não se chegasse por um único caminho, dado que competiria à particularidade sócio-histórica de cada formação revelar as soluções específicas para a realização de tal objetivo. Nesse ponto, denota-se uma diferença em relação ao primeiro livro, no qual a luta armada é apresentada como a única via revolucionária factível[17].
A discussão em torno da propriedade privada dos meios de produção e da liberdade econômica como características fulcrais do modo de produção capitalista é apresentada no segundo capítulo, intitulado O problema da liberdade. Em síntese, CPJ realiza um cotejo entre a liberdade formal e a liberdade concreta. Aponta que, no capitalismo, a forma jurídico-política consiste na democracia burguesa, a qual pressupõe igualdade jurídica, e, por consequência disso, reconhece todos, sem distinção, como sujeitos de direitos, livres para pactuarem trocas. Para tanto, impõe-se um exercício de abstração que retira os indivíduos de suas condições concretas, dado que a desigualdade material é incontornável em uma estrutura determinada pela cisão entre detentores dos meios de produção e detentores da força de trabalho. Por outro lado, no socialismo, a liberdade seria regulada a partir do interesse coletivo, de modo que o indivíduo “mesmo quando contrariado nas suas pretensões, o será na base de um interesse geral, não de vontades e decisões individuais e particularistas”[18]. Conclui a liberdade como meio e não fim, definindo-a como “a faculdade [...] de o indivíduo se realizar, isto é, dar vazão às suas potencialidades e fixar em função delas suas aspirações, logrando alcançá-las”[19].
O Estado socialista consiste no objeto de análise do terceiro capítulo. CPJ afirma que a presença do aparelho estatal requer a existência de uma classe dominante. A distinção essencial apresentada reside no fato de que, enquanto o Estado burguês tem como finalidade estabelecer e assegurar a ordem jurídica para perpetuar o modo de produção capitalista e, ao fim e ao cabo, a dominação de uma classe sobre a outra, o Estado socialista visa realizar o socialismo, no sentido de eliminar a divisão classista da sociedade e, “na medida em que vai realizando sua finalidade, perde também a característica essencial de “Estado”, a saber, a de órgão de dominação de classe”[20], limitando-se progressivamente a tarefas administrativas.
No quarto capítulo, retoma-se a temática do Partido Comunista (PC), já apresentada na obra anterior. Segundo o historiador, ao contrário do que ocorre nos partidos burgueses e mesmo social-democratas, o PC deve ser composto pela vanguarda política do proletariado, pois, com o início da transformação socialista, ele é alçado à condição de “órgão condutor e dirigente de todo processo histórico de transformação social”[21], a quem compete, a partir da unidade entre teoria e prática, reorganizar o país sobre bases socialistas, tanto em termos econômicos e políticos, como para a construção do homem novo do socialismo, isso é, “fazer do homem individualista de hoje, produto do capitalismo, o homem socialista de amanhã”[22].
Por fim, o último capítulo é dedicado à marcha para o comunismo. À luz das conclusões do XXII Congresso do PCUS, o autor divide a análise consoante as duas partes do brocardo comunista – “de todos segundo suas possibilidades” e “a todos segundo suas necessidades”[23]. Quanto a essa, os salários ainda eram proporcionais ao esforço produtivo de cada indivíduo e à contribuição social resultante seu trabalho. No entanto, CPJ aponta que já se verificava a distribuição gratuita de uma parcela do produto social com serviços públicos. Assim, nesse particular, o caminho não estaria no igualitarismo forçado, mas no “aumento e extensão desses bens e serviços postos gratuita e indiscriminadamente à disposição de um número sempre crescente de cidadãos”[24]. Sobre o primeiro princípio, a emulação socialista do trabalho e as distinções de ordem moral e o prestígio social conferidos ao trabalhador assegurariam que cada indivíduo desse o máximo de si, ainda que inexistisse distinção em termos de recompensa material. No plano político, além da crescente integração entre as massas e os sovietes, a marcha se evidenciava ante a redução da esfera de atuação do Estado, denotada por CPJ no estabelecimento de uma espécie de polícia comunitária de caráter preventivo; na esfera punitiva, “a sanção usual do castigo e da pena dá lugar à persuasão e aos métodos educativos”[25], inclusive a partir da dissuasão oriunda da opinião popular, tudo processado pelos tribunais de camaradas. Assim, substitui-se a imposição estatal autoritária pela autogestão e administração comunitária. Ou seja, um caminho de autofagia cuja própria dinâmica opera a partir do progressivo desaparecimento do aparelho estatal.
Ao final do livro, o autor não hesita em qualificar o socialismo como “a resposta dos fatos e a solução que a história dá aos problemas e contradições gerados no próprio seio do capitalismo”[26]. Ainda que seguro da superação do modo de produção capitalista, nas considerações finais de URSS, um novo mundo, fez questão de salientar que “a questão mais importante não é a do socialismo em si. É a do caminho que para lá conduz”[27].
Propõe-se ao leitor que trate as obras resenhadas, agora unidas em volume duplo, sob esse mesmo prisma. Mais importante que os relatos sobre a URSS em si – sem negar a relevância documental que possuem –, talvez a grande contribuição desses textos seja justamente complexificar a compreensão do pensamento caiopradiano, não apenas no que concerne à diacronia, mas também com elaborações teóricas sobre elementos como as questões do Estado e da ideologia, que extrapolam o que tradicionalmente se debate a partir das obras mais consagradas. Caio Prado Júnior é um intelectual que se mantém imprescindível para formar interpretações do que já foi o Brasil e para projetar o que ele ainda pode ser.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
EDMUNDO, Cláudio. Um engenheiro brasileiro na Rússia. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1933.
FARIA, Octavio de. O destino do socialismo. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1933.
KAUTSKY, Karl; LENIN, Vladimir Ilitch, 1870-1924. A ditadura do proletariado / A revolução proletária e o renegado Kautsky. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
NAPAL, Dionisio. O império Soviético. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1934.
PEREIRA, Astrojildo. URSS Itália e Brasil. São Paulo: Boitempo, 2022.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016.
PRADO JÚNIOR, Caio. URSS, um novo mundo; O mundo do socialismo. São Paulo: Boitempo, 2023.
[1] PERICÁS, Luiz Bernardo. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 81-95.
[2] Ver EDMUNDO, Cláudio. Um engenheiro brasileiro na Rússia. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1933; e PEREIRA, Astrojildo. URSS Itália e Brasil. São Paulo: Boitempo, 2022.
[3] Ver FARIA, Octavio de. O destino do socialismo. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1933; e NAPAL, Dionisio. O império Soviético. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1934.
[4] PRADO JÚNIOR, Caio. URSS, um novo mundo; O mundo do socialismo. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 46.
[5] KAUTSKY, Karl; LENIN, Vladimir Ilitch. A ditadura do proletariado / A revolução proletária e o renegado Kautsky. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 95-104.
[6] PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit., p. 147.
[7] Ibid., p. 59.
[8] Ibid., p. 63.
[9] Isso porque o Estado era proprietário de fazendas (sovcozes) e dos armazéns de Estado.
[10] PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit., p. 92.
[11] Ibid., p. 102.
[12] Ibid., p. 115.
[13] PERICÁS, Luiz Bernardo. Op. cit., p. 172.
[14] Sobreveio a segunda edição naquele mesmo ano e a terceira em 1967.
[15] PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit., p. 163.
[16] Ibid., p. 174.
[17] Sobre a mudança de perspectiva a respeito da luta armada, ver PERICÁS, Luiz Bernardo. Op. cit., p. 225-238.
[18] PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit., p. 191.
[19] Ibid., p. 207.
[20] Ibid., p. 217.
[21] Ibid., p. 229
[22] Ibid., p. 232
[23] Ibid., p. 246.
[24] Ibid., p. 253.
[25] Ibid., p. 263.
[26] Ibid., p. 270.
[27] Ibid., p. 147.
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