Ano 4 nº 03/2023: A conjuntura - A Crise Argentina - Fernando Ferreira

boletim4-03


A conjuntura ...

 

A CRISE ARGENTINA

 

Fernardo Sarti Ferreira

Professor de História - UFES

autor do livro A Contra Revolução Produtiva

 

semana tragica

Era de Ouro e tiroteio na rua para conter a greve em 1919

 

Há uma prisão mental de longa duração que afirma com os pés juntos que a Argentina viveu uma “Era de Ouro” na primeira metade do século XX e que, especialmente a partir dos governos do general Perón (1946-1955), o país teria entrado numa longa e paulatina decadência, principalmente em decorrência do “populismo econômico” e da “interferência do Estado na economia” contrária à sua “vocação natural agroexportadora”. No entanto, se comparado aos países vizinhos, mesmo nesta longa decadência, o país ainda chama atenção pelos altos índices de desenvolvimento humano e pelo moderno padrão de consumo de boa parte de sua população.

Curiosamente, no ano de 2002, durante uma das agudas crises que marcaram esse longo processo, José Serra e Regina Duarte usaram o horário eleitoral para avisar, em tom de ameaça, que aquele seria o destino do Brasil caso o PT chegasse ao poder – mais uma das tantas temáticas comuns aos tucanos e aos fascistas brasileiros. No entanto, o que estava acontecendo era que a Argentina que caminhava para se tornar o Brasil: um país com altíssimos índices de pobreza, péssimas condições de trabalho e remuneração e marcado por um profundo processo de desagregação social. Em meio a mais um episódio desta longa crise, e a consequente volta do país ao noticiário brasileiro nos últimos meses– seja para avisar os turistas sobre como o país está em liquidação, seja para amedrontar a classe média brasileira e reforçar a defesa de uma política fiscalista delinquente -, pretendo abordar o sentido da crise argentina a partir de uma perspectiva de longa duração, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema ou de fornecer algum receituário mágico e fantástico sobre o que fazer. Vou procurar apenas apontar algumas questões mais profundas que envolvem a “questão argentina” e que não aparecem no debate feito nos grandes meios de comunicação no Brasil – esse sim, permeado de pensamento mágico e fantástico. A título de referência, ao fim do texto indico algumas leituras– bem ou malfeitas – e que me ajudaram a compor este breve panorama.

 

A era de ouro foi de ouro para quem?

 

É verdade que a Argentina contou durante muito tempo com uma das maiores rendas per capita do continente. Entre 1890 e 1990, este índice foi maior que o do Brasil, Chile, México e Uruguai, sendo somente ultrapassado na última década do século XX pelos chilenos. No entanto, até o atual momento, nada na história do capitalismo indica que o mero crescimento do bolo tenha efeitos distributivos radicais. Por exemplo, a renda per capita na Argentina cresceu 101% entre 1900 e 1960, enquanto a brasileira cresceu 244%. Apesar do crescimento deste período, no último ano, a nossa renda per capita não chegava a 60% da Argentina[1]. Uma informação mais precisa sobre o que aconteceu em relação à distribuição desse produto neste período mostra que, no país vizinho, houve uma redução de 49,2% para 45,3% no montante da renda absorvida pelos 10% mais ricos. Já no Brasil, onde a renda teve um crescimento proporcional muito mais importante, manteve-se em 60% o total da renda absorvida pelos 10%% mais ricos[2].

Por outro lado, se poderia afirmar que a distribuição de renda é viabilizada e produz maiores efeitos conforme o tamanho do bolo em relação à sua população, assim explicando a tal “Era de Ouro” argentina pelo fato da renda per capita ter se mantido mais alta que o do restante do subcontinente por um longo período. O bem-estar social na Europa existiu, por exemplo, na razão exata do tamanho do bolo em relação a sua população. Poderíamos ainda apontar para as diferenças existentes entre os próprios países europeus para confirmar tal afirmação. O bem-estar alemão encontra-se em um patamar muito superior ao italiano, por exemplo. Contudo, mesmo esta perspectiva não nos garante que o crescimento econômico que cresce para si mesmo leve inevitavelmente a esse resultado. O PIB mensura o tamanho da produção social em determinado espaço de tempo. Ele condiciona, mas não determina o bem-estar social. A produção social – que também é reprodução ampliada -, não é uma operação contábil, mas uma guerra civil e global – com períodos de maior ou menor intensidade – pela apropriação do excedente.  Nos casos acima citados, independente das condições em que foi implementado, o bem-estar social foi uma resposta à guerra, à revolução, à Grande Depressão e ao fascismo. Estes sim, filhos legítimos do crescimento que cresce para si mesmo.

A verdade é que a Argentina pôde viver o crescimento de seu bolo com efeitos muitos superiores em comparação aos seus vizinhos em relação ao bem-estar social, não por causa do tamanho e da proporção do bolo, da velocidade do seu crescimento, e muito menos por qualquer idiossincrasia de sua violenta e ilustrada classe dominante – “Ah, se tivéssemos tido um Sarmiento...”, já é possível escutar a esta altura. O segredo do que costumamos identificar como a “Era de ouro” argentina, ou seja, índices altos de desenvolvimento humano e padrões elevados de consumo de sua população durante o século XX, tem de ser buscado no principal ingrediente do bolo, seu fermento, aquilo que o fez crescer: os trabalhadores. O crescimento e diversificação econômica do país - de maneira não intencional, mas condicional – engendrou a formação de uma das classes operárias mais ativas – e altivas – da América. Em constante e sangrento confronto contra o Estado e as classes dominantes desde fins do século XIX, a classe trabalhadora argentina conseguiu arrancar de suas elites - extremamente violentas e subordinadas aos interesses do capital multinacional e imperialista - um patamar altíssimo de vida se comparado ao restante do continente. O general Perón sempre chamou a atenção da burguesia argentina sobre a necessidade de incorporar em sua “contabilidade” o bem-estar desta classe, caso contrário, a Argentina seria ingovernável[3].

De 1955 até 1983 foi o que aconteceu. Apesar do conflito político argentino se expressar principalmente por meio do peronismo e do anti-peronismo, o que estava em jogo, para além das análises sobre as identidades e culturas políticas ou das disputas setoriais entre empresários, era o esforço por parte dos principais grupos econômicos de viabilizar um processo de maior integração aos circuitos internacionais de acumulação. Muitos industriais, financistas e latifundiários, associados aos interesses dos capitais estrangeiros – o bloco multinacional associado-, entendiam que a única forma de salvaguardar as suas bases materiais de dominação era por meio da abertura da economia argentina aos capitais estrangeiros e o alinhamento ao bloco ocidental liderado pelos EUA. Na classe média, este caminho aparecia como a única forma de manter os seus estândares de consumo e distinção social por meio do acesso aos bens e serviços mais modernos oferecidos pelo centro do capitalismo mundial, mesmo que a longo prazo, o resultado desta economia política fosse o  desmantelamento dessa própria classe.  

 

A luta pela destruição da classe trabalhadora argentina

 

O preço a ser pago para a consecução de tal integração, no entanto, era o desmonte das conquistas políticas e econômicas que os trabalhadores argentinos obtiveram entre 1890 e 1950, além de toda a infraestrutura que lhe dava força e relevância social. Com esse intuito, uma guerra assimétrica foi travada entre o bloco multinacional associado argentino e os trabalhadores organizados, hora auxiliados, hora atacados por uma claudicante e indecisa classe média. Uma classe média cuja existência e importância, muito longe de sua ideologia meritocrática e racista, devia-se única e exclusivamente ao crescimento e amadurecimento da indústria argentina. Uma classe média, porém, cuja identidade política foi construída – ou vendida – por um movimento diversionista das classes dominantes, que buscava impedir a todo custo a formação de um bloco histórico composto pela aliança dos setores médios com o movimento sindical. Classes dominantes que, por sua vez, por sua demofobia – e somente por isso –, recusou até onde pôde o fascismo aberto como arma, única e exclusivamente por este ter um caráter eminentemente plebeu.

O resultado desta guerra foi o seguinte: em 1949[4], o poder de compra dos salários pagos aos trabalhadores fabris argentinos era 10% e 109% maior que o dos operários estadunidenses e britânicos, respectivamente. Um ano antes do golpe militar de 1976, ele já era 17,5% menor que o estadunidense e apenas 23% maior que o britânico. No último ano do governo Menem, 1999, os salários pagos aos trabalhadores fabris argentinos correspondiam à 47,6 e à 52,2% dos salários pagos para os estadunidenses e britânicos. Ainda assim, os salários na indústria para o trabalhador registrado eram 58% maiores que os pagos em média na economia argentina no ano de 2004. A situação é ainda mais grave, pois essa redução do valor da força de trabalho ocorreu em um contexto de profunda retração da participação da indústria na economia nacional, o que significou a redução absoluta do número de trabalhadores fabris. Entre 1949 e 1976, em média, o total de operários nas fábricas correspondeu à 26% da população com emprego, sendo o índice mínimo atingido de 22,3% em 1970 e o máximo de 29,3% em 1959. A média entre 1976 e 2004 caiu para 17,7%, sendo que as diferenças entre o máximo e o mínimo não indicam flutuações cíclicas dos negócios, como no período anterior, mas a destruição definitiva destes postos de trabalho. Não há uma oscilação entre um máximo e um mínimo, mas uma ininterrupta redução da participação dos trabalhadores fabris no total de empregos. Essa redução foi de 28,6% em 1976 para 8,7% em 2004, devendo-se se destacar os anos 2000 como o momento de maior difusão dos contratos precários de trabalho em todos os setores da economia.

A tão propagada “estabilidade” ou “equilíbrio” da economia não significa nada mais que a “realização normal dos lucros”. No entanto, em busca da tal “normalidade”, as classes dominantes argentinas e seu braço armado, o exército, provocaram verdadeiras ondas de “caos institucional”, principalmente quando o “lucro normal” entrava em choque com a posição conquistada pelos trabalhadores. Ao longo do século XX, ocorreram pelo menos 9 golpes ou tentativas de golpe de Estado, sendo 7 deles entre 1955 e 1976.

Numa economia de base agroexportadora, diversificada e controlada por frações de classe associadas ao capital multinacional, como era a Argentina do século XX, a “realização normal dos lucros” passava pelo equacionamento entre as divisas geradas pelas exportações e a remuneração aos capitais estrangeiros. No meio, surgiu um setor industrial – e seus trabalhadores-, que cresceu como variável de ajuste do balanço de pagamentos. Uma questão fundamental para se compreender o conflito político argentino dos últimos 60 anos é o fato de que a indústria – e todas as questões sociais, políticas, econômicas e até mesmo culturais provocados pela sua importância na sociedade argentina – tornava-se cada vez mais um fator de “perturbação” econômico e político para os “lucros normais”.  Apontar o processo de crescimento industrial “artificial” e o peso político e as reivindicações dos sindicatos e movimentos populares como fatores determinantes para a instabilidade do país, como sói ocorrer na grande imprensa brasileira, equipara-se a culpar a vítima de uma ação violenta pelas sevícias recebidas.

Reside aí uma diferença fundamental entre o processo de modernização capitalista de orientação conservadora pós-1945 na Argentina e no Brasil[5] e que vai nos ajudar a entender o real sentido do que se passou no país vizinho na segunda metade do século XX. A acumulação de capital pretendida pelo bloco multinacional associado brasileiro precisou de algum grau de crescimento industrial, e pôde, para tanto, contar com uma imensa reserva de força de trabalho e custos baixíssimo para sua reprodução, fruto da desarticulação do vasto complexo da economia colonial e escravista e da incipiente organização popular em escala nacional. Na Argentina, por sua vez, o processo passava necessariamente por uma “reestruturação produtiva”, o que implicava na destruição de muitos empregos industriais e pelo rebaixamento violento dos custos da força de trabalho de uma classe trabalhadora com uma longa e forte tradição de organização. Como resultado das novas condições de “lucratividade normal” ansiadas pelos agentes do o crescimento econômico que cresce para si,   não houve um mecanismo de representação – de direção ou de base -, um instrumento de negociação – convenções coletivas e leis -, um lugar de sociabilidade – local de trabalho, cultura e lazer -, uma instituição ou uma corrente política – pragmática, reformista, classista ou anticapitalista – do vasto e rico movimento sindical e operário que não foi atacada com violência pelos governos eleitos ou de facto que governaram o país entre 1955 e 1983. Era, ao fim, uma guerra não só contra as “identidades” ou “culturas políticas”, mas também contra as bases materiais que forneciam as armas da classe trabalhadora argentina. 

 

A contrarrevolução neoliberal dos anos 1970 a 1980 e a Argentina

 

Se à curto e médio prazo, o crescimento industrial da periferia apareceu como mecanismo para ajuste - e até mesmo superação - dos crônicos desequilíbrios da balança de pagamentos, a verdade é que, no longo prazo, este processo aprofundou a dependência desses países em relação ao mercado externo para obtenção de insumos e tecnologias, além de abrir novas fronteiras para acumulação dos grupos multinacionais. O incremento potencial da composição orgânica do capital tornou-se completamente dependente do setor externo nestes processos de crescimento industrial. Em outras palavras, a obtenção de divisas por meio de investimentos estrangeiros ou exportações transformou-se em aspecto central para a acumulação industrial na periferia. A experiência histórica permite vislumbrar dois horizontes possíveis de ação a partir das periferias latino-americanas que vivenciaram estes processos e que expressaram diferentes respostas para essa desventura estrutural:

  1. Desenvolvimento nacional: o aumento do valor das exportações para obtenção de mais divisas, o controle das remessas de lucro dos grupos internacionais e seu direcionamento para o setor industrial e para os salários, o que implicaria uma solução possível no curto prazo, tendo em vista a tendência secular à deterioração dos termos de troca e o poder de resposta dos interesses multinacionais e de difícil execução, pois significaria a transferência de recursos do poderosíssimo setor agroexportador e dos grupos multinacionais associados para outros setores da economia. Este horizonte organizou na América Latina uma série de alianças mais ou menos amplas entre movimentos que iam do nacionalismo à esquerda reformista e que foi objeto não só do boicote empresarial e da intervenção internacional, mas alvo privilegiado do terrorismo de Estado. 
  2. Integração multinacional associada: a abertura da economia para os capitais estrangeiros, o que passaria pelo aumento de juros, diminuição dos subsídios e proteções setoriais, uma política monetária passiva, em que a circulação é determinada pela entrada de divisas do exterior e, por fim, o mais importante, a transformação do salário de uma variável importante para a promoção do crescimento com base no mercado interno em um custo que deve ser cortado, visando garantir maior “eficiência”. Esse foi o programa liberal conservador, encampado com alguns matizes mais ou menos desenvolvimentistas pelas Ditaduras Militares no Brasil e na Argentina, e sem nenhuma preocupação com a indústria, no Chile. Os programas de “desenvolvimento da indústria nacional” dos senhores Krieger Vasena (1966-1969) e Antônio Delfim Netto (1967-1974), apesar dos diferentes resultados mais imediatos, tiveram como efeito prático a inserção dos dois pés dos dois países na enorme jaca do mercado financeiro internacional.

Há ainda uma terceira possibilidade histórica, mas que não chegou perto de acontecer nestas paragens. Foi do outro lado do mundo que houve o revolucionamento total das estruturas econômicas periféricas, resultado de uma reorientação do conjunto de algumas daquelas sociedades em torno de um projeto político Revolucionário (União Soviética e China) ou Contrarrevolucionário (Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong). No primeiro caso, os países puderam contar em seu auxílio com a intervenção decidida do Estado, a mobilização social e vastos recursos naturais e populacionais. No segundo caso, estes enclaves aproveitaram-se de “vantagens geopolíticas”, mais que das “comparativas”, e puderam se transformar completamente servindo de cabeça de ponte para os EUA em seu assédio aos países socialistas. Com uma inserção débil nos movimentos de massa, a não ser em Cuba, os movimentos revolucionários latino-americanos foram derrotados pelo terrorismo de Estado autóctone, eximindo a Contrarrevolução de qualquer tipo de intervenção econômica drástica para além dos businesses as usual.  Bastou apenas fomentar a inclinação “natural” de suas classes dominantes e explorar as “vantagens comparativas” sobre a qual elas detinham o monopólio.  

Sem decisão política, deixada a atuar livremente, as classes dominantes periféricas orientam-se pela máxima rentabilidade. Se até os anos 1970 isso significou algum grau de diversificação econômica e crescimento industrial, a partir de então, com as transformações promovidas pela revolução tecnológica e a transnacionalização das cadeias produtivas, principalmente em direção à Ásia, a indústria e toda sua superestrutura política e jurídica tornou-se obsoleta e politicamente perigosa[6]. A política e a polícia econômica da última Ditadura Militar argentina (1976-1983) foi um ponto de inflexão e determinou o que viria a ser uma vitória de longo alcance do processo de integração multinacional associado.

 

Integração e regressão social

 

Desde a última ditadura (1976-1983), a economia argentina tem destruído sua base produtiva, beneficiando cada vez mais os setores financeiros e agroexportadores. Caracterizada desde então por um equilíbrio catastrófico entre políticas de integração internacional e tentativas de desenvolvimento nacional, a sociedade argentina vive nos últimos quase 50 anos um processo cada vez maior de desagregação social. No entanto, isto não se deve aos efeitos paralisantes de uma suposta “polarização política” entre esses dois projetos, mas na impossibilidade de qualquer um destes grupos conseguir promover qualquer solução para a acelerada degradação das condições de vida naquele país. A cada movimento em direção à integração, amplia-se o endividamento externo e aprofunda-se o desmonte da estrutura produtiva do país. Na verdade, o neoliberalismo, e especialmente a sua vertente argentina, é uma ideologia deletéria e, diferentemente do que os seus defensores na imprensa e seus “operadores técnicos” dizem, não tem nada a entregar além de regressão social. Em busca da consecução de sua economia política na Argentina, já foram mortas e desaparecidas 30.000 pessoas, sem contar os efeitos nefastos para os índices sociais após o colapso de 2001 – resultado de uma segunda onda de políticas neoliberais implementadas pelos governos de Carlos Menen (1989-1999) e Fernando de la Rúa (1999-2001) - e o breve período de Macri (2015-2019), responsável por legar os maiores índices de pobreza da década de 2010 depois de anos de recuperação econômica.

Como resposta aos terríveis efeitos das políticas neoliberais, as propostas de cunho desenvolvimentistas voltam a ganhar força. No entanto, a infraestrutura econômica e a superestrutura jurídica e política - e as formas de consciência social correspondentes – para a aplicação de seu programa tornam-se a cada “rodada de integração” cada vez mais frágeis, reduzindo as possibilidades de ação e fomentando a frustração política. O governo de Nestor Kirchner (2003-2007), por exemplo, apesar das vitórias contra os credores internacionais e da rápida e pujante recuperação econômica, não conseguiu “pesificar” toda a economia, sendo o dólar até hoje uma das mais difundidas formas de reserva de valor utilizada pelos argentinos e com importantes efeitos sobre a inflação. Cristina Kirchner (2007-2015), por sua vez, mesmo conduzindo o país durante um período de prosperidade há muito não visto e tendo enorme apoio popular, não conseguiu implementar, por exemplo, um sistema de impostos sobre a exportação durante a crise de 2008 e em 2012 foi alvo de intensos protestos por adotar simples mecanismos de controle sobre a compra de moeda estrangeira. Independentemente da coronacrise, a atual presidência de Aberto Fernandez não tem uma medida digna de nota.

 

Neofascismo

 

O mercado mundial se move como há muito não ocorria, provocando, ao que parece, novas descentragens e recentragens. Neste processo, como em outros eventos críticos internacionais, a maior exposição da economia argentina ao mercado mundial e a fragilidade da sua estrutura produtiva, somado neste contexto à coronacrise, fazem com que estes movimentos sejam muito mais intensos no país vizinho. Até o momento, a Argentina parecia estar livre da onda neofascista, mas o crescimento de candidaturas como as de Javier Milei e Patricia Bullrich apontam que, talvez, a hora tenha chegado. No entanto, pode-se ponderar que, muito mais importante que a existência da liderança fascista, são as condições para abertura de um processo de fascistização da sociedade argentina. A derrota política e a desarticulação das bases materiais que engendravam o poder da classe trabalhadora argentina no longo prazo, a incapacidade cada vez mais acentuada do peronismo em estabelecer qualquer tipo de compromisso ou equilíbrio estável que possa contornar o acelerado processo de desintegração social e a ausência de qualquer alternativa viável à esquerda insinuam a existência das condições perfeitas de pressão e temperatura para a consolidação do neofascismo como movimento relevante na Argentina. Não existe melhor incubadora para o fascismo do que uma sociedade que esteja ameaçada de existência sem que haja qualquer ameaça à ordem social. Abre-se o caminho para a revolta da ordem, ou seja, a reafirmação de seus aspectos mais deletérios em novos patamares e sob a roupagem de uma ação rebelde e ao mesmo tempo restauradora. A adesão popular às candidaturas de Milei e de Bullrich nas próximas eleições primárias deve ser o principal foco de atenção para dimensionar o processo de fascistização da sociedade argentina. Em relação ao comportamento das classes dominantes daquele país frente a esta situação, já sabemos, desde Sarmiento, com quem ela estará.  

 

Leituras

Sobre a economia argentina

Mario Rapoport, Historia económica, política y social de la Argentina : (1880-2003), CABA, Crítica, 2020

Eduardo Basualdo, Estudios de historia económica argentina: desde mediados del siglo XX a la actualidad, Buenos Aires, Siglo XXI, 2010.

Juan Iñigo Carrera, La formación económica de la sociedade argentina, Buenos Aires, Imago Mundio, 2007

Sobre a classe trabalhadora argentina e seu papel como esteio da “Era de Ouro”

Miguel Murmis y Juan Carlos Portantiero, Estudos sobre as origens do peronismo, São Paulo: Brasiliense, 1973. [O único livro com edição brasileira]

Louise M. Doyon, “La organización del movimiento sindical peronista 1946-1955”, Desarrollo Económico, Vol. 24, No. 94 (Jul. - Sep., 1984)

Victoria Basualdo, “Los delegados y las comisiones internas en la historia argentina, 1943-2007” in Daniel Azpiazu, Martín Schorr y Victoria Basualdo, La industria y el sindicalismo de base en la Argentina. Buenos Aires: Cara o Ceca, 2010.

Hugo del Campo, Sindicalismo e Peronismo: los comienzos de un vínculo perdurable, Buenos Aires, Editorial Siglo XXI, 2005

Daniel James, Resistencia e integración. El peronismo y la clase trabajadora argentina, 1946 - 1976, Siglo XXI, Buenos Aires, 2006

César Tcach, “Golpes, proscripciones y partidos políticos”, in Nueva historia argentina – Violencia, proscripción y autoritarismo: 1955-1976, (org.) Daniel James, Buenos Aires, Sudamericana, 2007.

 

[1] Maddison Project Database <link>, acessado em 09/05/2023.

[2] World Inequality Database <link>, acessado em 09/05/2023.

[3] Hugo del Campo, Sindicalismo e Peronismo: los comienzos de un vínculo perdurable, Buenos Aires, Editorial Siglo XXI, 2005, p. 228.

[4] Todos esses dados foram retirados de Juan Iñigo Carrera, La formación económica de la sociedade argentina, Buenos Aires, Imago Mundio, 2007.

[5] Faço aqui uma contraposição às forças progressistas que defendiam o que se convencionou chamar no Brasil de “nacional-desenvolvimentismo”. Ainda que o heterogêneo grupo de “nacional-desenvolvimentistas” estivessem vinculados também a um projeto de modernização capitalista, as possíveis semelhanças com o projeto conservador se encontram num campo de abstração teórica e categorial que não nos interessa no momento.

[6] Ford versus soja


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