Ano 4 nº 05/2023: A conjuntura - Ainda sobre Javier Milei - Fernando S. Ferreira

vinhetaano4n5

A conjuntura ...

 

AINDA SOBRE JAVIER MILEI

 

Fernardo Sarti Ferreira

Doutor em Histórica Econômica pela USP

autor do livro A Contra Revolução Produtiva da Maria Antonia Edições

 

Em uma edição passada deste boletim[i], havíamos chamado atenção, a partir de uma perspectiva de longa duração, para o que representaria a vitória de Javier Milei ou Patricia Bullrich nas eleições primárias argentinas. Confirmado o pior cenário possível no país vizinho, a eleição ganhou as primeiras páginas da grande imprensa, mobilizou analistas nos jornalões e produziu muitas reflexões na Argentina com o gosto amargo do Brasil de 2018. Abaixo seguem algumas respostas a partir das questões que nos foram enviadas por um jornalista da grande imprensa.

 

milei

Uma das principais propostas do candidato é dolarização da economia argentina.

 Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1e9z7n3llo Acesso em 22 de ago de 2023

 

Quais fatores ajudam a explicar a ascensão de Javier Milei nas eleições da Argentina?

Desde a segunda metade do século passado, como analisado em outro texto publicado neste boletim, a sociedade argentina se vê perpassada por uma disputa entre duas perspectivas distintas sobre os destinos do país. Por um lado, grupos políticos e setores da sociedade argentina mais conservadores e tradicionais, principalmente os vinculados aos setores financeiros e agroexportadores, lutam por uma maior integração do país ao mercado mundial, reforçando sua tradicional estrutura econômica primário-exportadora. Por outro lado, existe no país um vasto e plural leque de forças políticas e grupos sociais que se organizam em torno de projetos que defendem de maneira mais ou menos radical um processo de desenvolvimento nacional mais autônomo, impulsionado pelo desenvolvimento e diversificação da economia, vinculado à expansão do mercado interno e regional. Desde a última ditadura militar (1976-1983) o primeiro destes grupos vem obtendo sucessivas vitórias, apesar de em alguns momentos, como durante os governos do casal Kirchner (2003-2015), a tendência a maior integração ao mercado mundial, o desmonte do parque industrial argentino e da legislação social terem sido refreadas. Javier Milei, em grande medida, surge de uma espécie de empate, ou equilíbrio catastrófico, entre essas duas forças. Em outras palavras, o enorme crescimento da dependência externa da economia argentina promovida pelo primeiro grupo e a incapacidade do segundo de frear o processo de regressão social que este processo de internacionalização representa produziram o cenário para que uma candidatura supostamente outsider pudesse irromper no tradicional sistema político argentino.   

 

Quais as semelhanças entre Milei e Bolsonaro?

Não só há semelhanças, como o sucesso político destas duas figuras corresponde a um mesmo fenômeno estrutural e de alcance global. Milei se cacifa ao lado de Trump, Bolsonaro, do Vox (Espanha), Giorgia Meloni (Itália), da Alternativa para Alemanha e de tantos outros grupos e personalidades políticas, como o expoente do neofascismo, movimento que vem ganhando força nos últimos quinze anos.

 

O que aconteceu no Brasil com a ascensão de um candidato de extrema direita pode se repetir na Argentina?

Uma vitória eleitoral do neofascismo na Argentina, assim como ocorreu no Brasil em 2018 e outras partes do mundo – é preciso destacar que isso não significa a implementação de um regime fascista-, tornou-se uma realidade extremamente palatável após as eleições primárias, principalmente porque a segunda colocada no pleito, Patrícia Bullrich, não se encontra muito distante de Milei ou Bolsonaro. É possível identificar Bullrich com o que aqui chamamos de “bancada da bala”, ou seja, aquelas forças políticas que apoiaram Bolsonaro defendendo o armamento da população e a violência policial, e Milei com os grupos de jovens ultraliberais, que mobilizam ideais ultraconservadores inspirados no darwinismo social do século XIX com uma linguagem mais inovadora das redes sociais. Tudo isso para dizer que, independente do resultado eleitoral, Milei e Bullrich já saem vitoriosos por mobilizaram uma expressiva parte da sociedade argentina sob o neofascismo. Assim como Bolsonaro, mesmo que derrotado nas últimas eleições, acabaram criando um importante e, ao que parece, perene movimento de massas.

 

Qual o papel da crise econômica na ascensão da direita na Argentina?

Há uma combinação de crises que assolam não apenas a sociedade argentina, mas boa parte dos países onde podemos observar a emergência do neofascismo. Ou seja, não é apenas a crise econômica, e muito menos as turbulências econômicas que o país atravessou nos últimos três anos, que podem explicar a ascensão do neofascismo na Argentina. Essa perspectiva mais complexa é a chave para entendermos o porquê de o neofascismo surgir neste momento e não em crises anteriores. Essa grande crise, ou Crise com maiúsculo, apesar das especificidades nacionais com a qual ela se expressa, envolve uma série de transformações econômicas e sociais estruturais, uma reorganização violenta do mercado mundial e da ordem geopolítica, mas, sobretudo, uma crise em que os tradicionais mecanismos institucionais ou ideológicos de resolução dos conflitos sociais, políticos e econômicos não conseguem estabelecer qualquer tipo de compromisso ou equilíbrio estável.

 

O crescimento do antiperonismo na Argentina é semelhante à ascensão do antipetismo que aconteceu no Brasil?

O antiperonismo, assim como o antipetismo, são descendentes diretos do anticomunismo. Ou seja, não são nenhuma novidade no cenário político de ambos os países, apesar de serem mobilizados com maior força sob os governos progressistas. Assim como sua matriz ideológica, o antipetismo e o antiperonismo servem como uma espécie de bode expiatório, de uma explicação simplificadora e reacionária da realidade, onde todos os males e problemas de uma sociedade acabam sendo atribuídos a um grupo específico, cuja eliminação traria a redenção e o restabelecimento de uma fantasiada Era de Ouro. Apesar da mobilização do tema da corrupção, também sob um viés simplificador e moralista, o conteúdo concreto do antipetismo e do antiperonismo são os mesmos: a defesa de uma agenda econômica e social que passa pela reorientação da ação do Estado, visando o desmonte de políticas voltadas ao desenvolvimento autônomo nacional e da legislação de proteção social. No entanto, é também possível identificar uma mesma dinâmica que perpassou os governos petistas e peronistas desde os anos 2000 e que podem explicar o sucesso e capilaridade social do antiperonismo e do antipetismo: a busca incessante destes governos de sinalizar ao centro e a direita, sobretudo no campo econômico, acabaram jogando o petismo e o peronismo na vala comum dos chamados “partidos da ordem”. Daí a possibilidade do antiperonismo e do antipetismo poderem ser mobilizados por um discurso supostamente insurrecional, tão característico do neofascismo.    

 

Como uma possível vitória de Milei pode impactar as relações entre Brasil e Argentina? É bom lembrar que Bolsonaro promoveu um distanciamento dos dois países em seu governo

Milei tem afirmado que irá romper com o Mercosul e que não negocia com governos “socialistas”. É provável que seu governo busque se distanciar do Brasil, no entanto, precisamos saber o quanto isso será possível, pois uma série de questões relativas à política internacional, e principalmente ao Mercosul, devem passar pelo Congresso argentino. Se o resultado das primárias foi uma surpresa, é ainda mais difícil prever o que vai acontecer nas eleições legislativas, ainda mais após este resultado. No entanto, mesmo que Milei não consiga eleger uma bancada forte o suficiente para fazer avançar essa agenda de ruptura com o Brasil e o Mercosul, devemos esperar no mínimo uma legislatura anômala e pouco funcional. Tal situação pode tanto refrear Milei, como também criar as condições para que ele avance para um processo de reforma das instituições em direção à mudança de regime. Há uma parte substancial do sistema econômico argentino que depende das relações com o Brasil. No entanto, assim como ocorreu com a maior parte do grande capital brasileiro em 2018, pode ser que eles estejam mais dispostos a apoiar Milei, pensando que poderão controlá-lo de alguma forma, do que em construir pontes com outras forças sociais, por exemplo, incorporando parte da agenda social peronista, para evitar a chegada do neofascismo ao governo.    

 

O que é esse anarcocapitalismo que a imprensa está apontando como a posição de Milei?

O anarcocapitalismo é uma das tantas ideologias mobilizadoras e que ganham relevância nestes momentos de crise aguda. Basicamente afirma-se que as livres forças do mercado serão a solução para todos os problemas, sendo necessário para tanto a eliminação de todas as instituições que regulamentam as relações sociais e econômicas dos controles da Vigilância Sanitária aos direitos trabalhistas.  Trata-se daquilo que Antonio Gramsci chamou de lorianismo, ou seja, uma série de ideias extravagantes e diletantes e que, apesar – ou justamente por – não ter relação nenhuma com a realidade, acabam sendo elevados ao estatuto de ciência e de solução mágica para todos os problemas. Seguindo com Gramsci, na verdade, não importa tanto a doutrina anarcocapitalista – ela tem tanto valor como a medicina que recomenda tratamento da Covid-19 com cloroquina, azitromicina ou ozonoterapia -, mas nos debruçarmos e entendermos o porquê algo tão fora da realidade e absurdo é capaz de mobilizar importantes setores da sociedade. Neste sentido, o mais importante é nos debruçarmos sobre a complexidade da Crise que vivemos para podermos entender as razões mais profundas que promovem a mobilização de amplos setores sociais em torno de algo tão ridículo como o tal anarcocapitalismo.  

 

O peronismo ainda pode sobreviver na Argentina? Quais as alternativas para eles?

O peronismo representa muitas coisas dentro da sociedade argentina e, entre elas, uma incrível capacidade de resiliência. Não há outra força ou cultura política no país que possa enfrentar a efetivação da agenda de Milei, apesar do crescimento do candidato ter sido em grande medida resultado da incapacidade dos últimos governos peronistas de oferecerem alguma solução mais duradoura para o acelerado processo de desagregação social e empobrecimento iniciado a partir da Ditadura Militar de 1976-1983. De forma bastante parecida ao que aconteceu no Brasil, assim como o PT foi a única força política capaz de derrotar eleitoralmente o bolsonarismo, o peronismo é a única força política capaz de frear o neofascismo na Argentina. No entanto – e isso também se aplica ao PT -, há uma necessidade de reformulação radical, mas não no sentido de adesão à ortodoxia econômica liberal, como costuma-se afirmar. Forjados principalmente a partir do movimento sindical de base industrial, o petismo e o peronismo precisam, para além das máquinas eleitorais em que se transformaram, voltar a se ancorar de maneira orgânica no cotidiano de uma massa de trabalhadores pobres e de classe média que, em meio a essa crise, em grande medida pela destruição da indústria nacional, se colocam à disposição das soluções mágicas do neofascismo.

 

[i] A Crise argentina, de Fernando Sarti Ferreira foi publicada em maio deste ano. Clique aqui para conferir.

 


Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Piloto de Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000
E-mail: maboletim@usp.br