A conjuntura...
A HEGEMONIA EM MIGALHAS:
O FIM DA REVOLUÇÃO PASSIVA NO BRASIL[1]
Lincoln Secco
Professor de História - USP
“Io deploro quanti altri mai la lotta di classe; ma siamo giusti, chi l’ha iniziata?”
(Giovanni Giolitti, Stampa di Torino, 23/9/1900)
Fonte: https://sovietprop.com/produtos/poster-memorial-de-antonio-gramsci/
A inexistência de uma revolução burguesa clássica no Brasil exigiu que se procurasse entender nossa passagem de colônia a nação com antinomias e ambivalências: modernização conservadora, revolução incompleta, contrarrevolução preventiva, revolução passiva e outras formulações europeias foram invocadas. O fato é que o substantivo “revolução” precisou ser adjetivado e amenizado, perdendo a força do conteúdo.
Um Magma Ocidente - Oriente
A Revolução Passiva foi uma categoria que se difundiu na América Latina, particularmente na era das ditaduras dos anos 60-70. Gramsci pensou o Ocidente como o locus de uma relação equilibrada entre sociedade civil e Estado. Organismos como os partidos, meios de comunicação, sindicatos, igrejas, instituições educacionais, intelectuais etc constituiriam um envoltório ou anel institucional em torno do aparato jurídico e repressivo. Por outro lado, o Oriente seria o inverso e nele vigoraria uma relação desequilibrada onde a sociedade civil seria primitiva e gelatinosa e o Estado conteria praticamente toda a vida política.
Mas como pensar situações em que a fusão de elementos de diversas culturas, opressões e tempos diversos forjaram um magma de partes mais ou menos sólidas, sem sedimentar uma sociedade civil estável e equilibrada com o Estado? Não estaria o próprio Gramsci diante de uma situação mais semelhante à nossa ao ter que tratar do sul da Itália?
Os próprios países europeus combinavam diversas nacionalidades, mas a força do industrialismo permitiu a solidificação daquelas sociedades. Não à toa Marx invocou um termo da Geologia de Lyell para entender as camadas e os tempos históricos de diversas formas de produção conjugadas: tratava-se da formação econômica e social.
O teórico argentino Juan Carlos Portantiero, num ensaio escrito em 1975 (“Por qué Gramsci?”), propôs-se a pensar a situação de países onde a sociedade civil, “ainda que complexa, está desarticulada como sistema de representação, pois a sociedade política mantém frente a ela uma capacidade de iniciativa muito maior que no modelo clássico”. Situação em que “a política tem uma influência enorme na configuração dos conflitos, modelando de algum modo a sociedade”[2]. Não se trata de simples justaposição de partes separadas porque o Estado produz artificialmente uma liga, um amálgama que passa a ter vigência[3].
Portantiero, um estudioso do peronismo, escreveu quando a modernização que foi possível na América Latina exibiu seus limites e a ditadura limpou o terreno para a imposição do neoliberalismo. Por outro lado, Cardenas, Peron e Vargas pareciam comprovar o insight de seu texto; afinal a Nossa América não havia produzido uma vitoriosa revolução desde baixo, mas exibia uma sociedade civil moderna.
A industrialização sem revolução industrial; os direitos trabalhistas sem autonomia sindical; o liberalismo autoritário; e a democracia sem participação popular, demonstravam uma sociedade incapaz de autorregular seus conflitos estruturais, de acomodar as tensões no leito da política institucional e de evitar as soluções fascistizantes. De fato, o Estado é quem tomou a iniciativa, mas ao mesmo tempo encontrou uma sociedade e uma cultura popular vibrantes, porém desarranjadas no âmbito nacional, embora organizadas nos espaços locais e em segmentos sociais.
A dificuldade de se lidar teoricamente com tais oxímoros foi tratada por outro argentino, Jose Aricó, num ensaio marcante em que notou que na maioria dos países latino-americanos “a construção nacional tendeu a ser durante um largo período um fato puramente estatal, protagonizado por minorias sem vontade nacional”. Dizia ele que: “Na América Latina, portanto, o processo apareceria invertido” e o próprio Marx, para quem o Estado não pode ser o centro produtor da sociedade civil e sim o contrário, desinteressou-se daquele processo histórico em que Estados surgiram sem uma cultura prévia e uma vontade popular[4].
Ficava difícil para as elites da América Latina e Caribe inventarem um espaço nacional comum apenas a partir do Estado. Os territórios foram desarticulados pelo sentido da colonização e, no caso brasileiro, em quase todo o século XIX a classe trabalhadora não tinha sequer a cidadania jurídica. Antes de lutar pela cidadania política, era preciso se libertar do cativeiro. Já a cidadania social, para falarmos nos antigos termos de T. H. Marshal, seria limitada pelo lugar subalterno na divisão internacional do trabalho, pela troca desigual e pela pequena margem de manobra que um excedente econômico drenado pelo capital internacional deixava.
Mas e a América Latina? A base dos Estados nacionais foi a inter-dependencia das relações pessoais numa escala nacional (restrita inicialmente aos homens de negócios, mas depois, referente à própria classe trabalhadora). Na periferia do sistema as nações não se ergueram a partir da luta da burguesia liberal apoiada no povo (a quem se estendeu a cidadania jurídica) contra a aristocracia. A América era colonizada pela Europa, mas colonizava seus subordinados sociais:
1. Entre o colonizador e o colonizado, havia o colono de origem europeia. A base fundamental da colônia era o trabalho compulsório dos colonizados.
2. A economia sofria um ilhamento econômico, pois era extrovertida, vinculada à metrópole. Eram frágeis os laços internos, daí que a América espanhola tenha se fragmentado politicamente.
3. Estados Unidos e Brasil mantiveram sua unidade territorial sobre uma base escravista. O primeiro como uma república e o segundo como monarquia.
De toda maneira, em toda a América Latina, uma parte expressiva da população ficou alijada da sociedade política, o único espaço de vida pública reconhecida. O nacional se dissociou do popular e foi organizado desde cima, apesar de ter contado com as lutas populares.
A partir do avanço imperialista no século XX, a transnacionalização das relações de produção em redes feriu a relação entre a planta industrial e o Estado. Mas a América Latina combinou esse aspecto moderno com suas sobrevivências arcaicas que consistem na baixa integração física dos territórios, na informalidade e na exclusão da população pobre da cidadania.
O que é a Revolução Passiva?
A Revolução Passiva denota a persistente capacidade das classes dominantes de resistir às transformações do modo de produção capitalista, conservando seu poder numa fase histórica em que a burguesia deixou de ser revolucionária.
Ora, ela só foi revolucionária na fase radical da Revolução Francesa e, depois, provocou por toda parte uma série de restaurações que combinaram interesses burgueses e aristocráticos em variadas formas. A Revolução-Restauração constitui a revolução passiva. Assim, não foi privilégio da América Latina a forma gattoparda da revolução burguesa.
A conversão de debates políticos em questões técnicas e burocráticas e a absorção molecular das principais figuras das classes subalternas no aparato do Estado ou em órgãos reconhecidos da sociedade civil são movimentos da revolução passiva. Gramsci estabeleceu duas fases para a Itália. Na primeira (1860-1900) o transformismo[5] é molecular e absorve indivíduos; na segunda (após 1900) é coletivo e integra grupos inteiros de esquerda. O período intermediário de 1890 a 1900 é aquele “em que uma massa de intelectuais passa para os partidos de esquerda, ditos socialistas, mas na realidade puramente democráticos”[6].
Segundo um intérprete: “A revolução passiva não foi uma necessidade da estrutura econômica da sociedade burguesa nem estava inscrita na modernidade como o seu telos. Pelo contrário, a sua imposição bem-sucedida envolveu escolhas políticas conscientes: por um lado, a escolha das classes dominantes de desenvolver estratégias para desagregar e isolar as classes trabalhadoras e confiná-las num nível econômico - corporativo dentro da sociedade existente, em determinados regimes de acumulação; por outro, as escolhas políticas das classes subalternas que resultaram na incapacidade de elaborar os seus próprios aparatos hegemônicos capazes de resistir à lógica absorvente da revolução passiva"[7].
A definição acima tem a vantagem de combinar as escolhas dos grupos dominantes com as dos grupos subalternos, limitadas pelas necessidades de um novo “regime de acumulação” tendencialmente dominante. O resultado desse processo é um consenso passivo, ou seja, um tipo de direção política que integra as classes trabalhadoras num grau predominante de subalternidade, impedindo-as de transitar do nível corporativo ao político; da disputa econômica à luta por hegemonia; do sindicato ao partido.
Pensando através de Gramsci
A hegemonia é um tipo de direção consensual sobre os que aceitam ou consentem, e inclui uma dimensão coercitiva sobre os que se recusam, ou seja, os que extrapolam os meios de oposição considerados legítimos pelo grupo hegemônico; mas essa dimensão é episódica e, normalmente, a hegemonia se resume num tipo de dominação que é predominantemente (ainda que não inteiramente) consensual. Pode ser entendida também apenas como relação consensual entre grupos que estão fora do poder:
“O critério histórico-político em que deve basear-se a investigação é este: que uma classe é dominante de duas maneiras, isto é, é ‘dirigente’ e ‘dominante’. É dirigente das classes aliadas, é dominante das classes adversárias. Por isso uma classe já antes de subir ao poder pode ser ‘dirigente’ (e deve sê-lo): quando está no poder se torna dominante mas segue sendo também ‘dirigente’. Os moderados seguiram dirigindo o Partido da Ação inclusive depois de 70 e o ‘transformismo’ é a expressão política desta ação de direção; toda a política italiana desde 70 até hoje se caracteriza pelo ‘transformismo’, ou seja, pela elaboração de uma classe dirigente nos quadros fixados pelos moderados depois de 48, com a absorção dos elementos ativos surgidos das classes aliadas e inclusive das inimigas. A direção política se converte em um aspecto do domínio, na medida em que a absorção das elites das classes inimigas conduz à decapitação destas e à sua impotência. Pode e deve haver uma ‘hegemonia política’ inclusive antes de se chegar ao governo a não há que contar só com o poder e a força material que este dá para exercer a direção ou hegemonia política”[8].
Gramsci revela que os moderados exerceram hegemonia política (= direção+domínio) sobre seus inimigos à medida em que estes foram “absorvidos”: a direção política tornou-se um aspecto do domínio. Em seguida, ele declara possível a hegemonia política antes da tomada do poder, mas então ele a define apenas como “direção”. Note-se que aqui “hegemonia” não possui dois sentidos absolutos, mas dois momentos; ela é processual e não dicotômica. É no interior do processo histórico que a hegemonia oscila entre dois sentidos: direção consensual ou exercício legitimado da ditadura através do consenso.
Com Gramsci, o Estado não é apenas um instrumento de coerção. Em sua forma integral (sociedade política mais sociedade civil) “ele se tornou uma rede de relações sociais para a produção do consenso, para a integração das classes subalternas num projeto histórico expansivo de desenvolvimento do principal grupo social”[9].
A hegemonia é a capacidade de criar sujeitos de direito em acordo com o avanço da mercantilização das relações econômicas. Por exemplo, a mercantilização da força de trabalho deve gerar um sujeito de direito e um contrato. Tais sujeitos são liderados dentro de um quadro jurídico no qual estejam assegurados os interesses fundamentais dos dirigentes e os interesses secundários dos dirigidos. No entanto, é preciso que estes sintam como suas as pretensões do grupo dirigente.
O grupo dirigente também faz sacrifícios parciais de ordem corporativa, já que muitas vezes os interesses dos dirigidos que serão absorvidos pelo ordenamento jurídico existente se chocam com interesses corporativos de outros grupos economicamente dominantes. É o caso do “sacrifício” imposto à burguesia industrial com a legislação trabalhista e o salário mínimo.
Na formulação gramsciana teríamos no Ocidente a primazia da Sociedade Civil sobre o Estado, do consenso sobre a coerção, da organização sobre a anomia, da hegemonia sobre o domínio e da guerra de posição sobre a guerra de movimento.
A Revolução Passiva foi um termo retirado da obra de Vincenzo Cuoco. Este havia escrito que Nápoles experimentou uma revolução a partir do impacto da Revolução Francesa, mas os jacobinos locais não conseguiram representar as massas populares e a sua revolução foi apassivada. A outra fonte de Gramsci foi o conceito de revolução-restauração do historiador francês Edgard Quinet. Depois da queda do Império, a Monarquia Bourbon foi restaurada, mas teve que incorporar elementos progressivos da etapa anterior para responder às manifestações populares intermitentes[10].
A Nova Política Econômica soviética e talvez o Stalinismo e o modo de vida e organização social e produtiva dos EUA (americanismo – fordismo) podem ser entendidos dentro da rubrica da revolução passiva[11]. Os critérios de definição da revolução passiva são:
1. Uma resposta das classes dominantes a uma situação internacional que ameaça desestabilizar a ordem interna.
2. A reação a uma atividade popular que exige a integração de algumas demandas vindas de baixo num Estado reestruturado.
Pensando com Gramsci
Essa resposta ou reação define o terreno da luta política e limita o adversário já derrotado a travar uma guerra de posição. Na Europa, depois do predomínio da guerra de movimento ou revolução permanente (1917-1921), em que avanços rápidos e radicais e incursões decisivas no terreno inimigo foram efetuadas pela esquerda revolucionária, houve a derrota da expansão revolucionária no Ocidente (Alemanha, Itália, Hungria, Áustria) e a passagem à guerra de posição.
O fascismo, mediante a combinação de força e consenso, promoveu a rápida “estatização da sociedade civil”[12], fazendo as organizações superiores das classes retrocederem ao nível econômico corporativo. A independência de classe e a disputa liberal no campo político foram substituídos pelo corporativismo e o Estado totalitário.
A época das revoluções passivas foi abalada pela II Guerra Mundial, a criação do bloco socialista e as lutas anticoloniais. A guerra de movimento voltou à baila no pós guerra e mesmo no centro do sistema capitalista no período 1968-1975. Alguns exemplos, com diferentes ideologias, foram a Revolução Cultural na China; Maio de 1968 na França e no Senegal; Tlatelolco no México; grupos de luta armada na Itália, Alemanha, Japão e na América Latina; ensaios de revolução no Peru e no Chile; greves selvagens no Ocidente da Europa; Primavera de Praga; independência das ex-colônias portuguesas; derrota dos EUA no Vietnã e muitos outros eventos.
Do Maio francês (1968) e do autunno caldo italiano (1969) ao verão quente português (1975) houve um ascenso trabalhista em resposta a uma crise econômica que se iniciou no final dos anos 1960 e teve sua expressão máxima no aumento dos preços do petróleo em 1973. Aquela situação se fez acompanhar do appeasement entre as superpotências com a Détente. A rebeldia interna preocupava as elites dirigentes de ambos os sistemas.
Desde 1968 o imperialismo vivenciava uma crise que abria uma potencial situação revolucionária. Governos dos EUA, Japão e Alemanha caíram devido a escândalos na metade da década de 1970, a crise do petróleo e as baixas taxas de crescimento indicavam perspectivas sombrias; Grécia, Espanha e Portugal se livraram de suas ditaduras, sendo que os portugueses realizaram uma Revolução que assumiu caráter socialista até novembro de 1975.
Na Europa Ocidental, o Eurocomunismo ganhou força eleitoral. Comunistas entraram no governo em Portugal (1974-1976), Islândia (1971-1973) e Finlândia (1966 e 1970-1971). Em 1976 o moderado PCI obteve 34% dos votos, embora uma imprevista associação de interesses de extrema esquerda e do establishment interno e externo impedissem sua entrada no Governo. Em 1981 os comunistas e socialistas ganharam as eleições na França. Na Nicarágua e em Granada marxistas estavam no poder por via revolucionária e El Salvador apontava na mesma direção. Angola, Moçambique e outros países africanos e asiáticos assumiam orientação socialista e as ditaduras agonizavam na América Latina.
Como argumentei alhures[13], a palavra eurocomunismo foi cunhada em 1975 e Norberto Bobbio a definiu, com razão, como a social democratização dos comunistas, mas na época ninguém sabia aonde aquele movimento levaria, apesar das críticas de comunistas ortodoxos. Giovanni Sartori, para quem o Eurocomunismo simbolizava “a busca por legitimidade” dentro da ordem, ainda assim lembrava que a guerra de posição apregoada pelos comunistas italianos continuava sendo uma guerra[i]. Se era provável que dali não adviria qualquer processo socialista, ainda assim a cultura comunista na Itália desfrutava de hegemonia em vastos segmentos da sociedade civil.
A derrota daquele impulso revolucionário também se traduziu no recuo do reformismo radical da Social Democracia (por exemplo na Suécia) e do Eurocomunismo. A contrarrevolução neoliberal derrotou as forças revolucionárias e acuou as sociais democratas, circunscrevendo-as a um tipo de reformismo restaurador ou passivo.
O demógrafo francês Jean Fourastié cunhou em 1979 a expressão “Trinta Gloriosos”. No período pós 1945 o aumento da produtividade se fez acompanhar por elevação do salário direto e indireto; mas desde 1979, naquilo que era chamado Primeiro Mundo, houve um crescente gap entre a curva de aumento da produtividade (o custo do trabalhador em relação ao valor produzido) e os salários.
Para fazer frente à queda tendencial da taxa de lucro o capital reorganizou a fábrica. A telemática permitiu a fragmentação e internacionalização das cadeias de valor, parcela grande dos trabalhadores foi absorvida pelos serviços, a riqueza financeira se descolou excessivamente do montante de riqueza produtiva e a ideologia neoliberal produziu a forma mentis capaz de controlar o novo tipo de trabalho atomizado pós fordista.
Mas não se pode mais falar de uma Revolução Passiva, pois não há mais uma incorporação de direitos e sim sua destruição. A hegemonia neoliberal manteve a aparência democrática, mas cada vez mais sob formas cesaristas e plebiscitárias. O neofascismo tornou-se uma força preponderante, mas não chegou ainda a instaurar regimes e se reproduziu muito bem no interior da ordem liberal, tando na esfera econômica, quanto na Sociedade Civil e no Estado. Ele não visa subsumir a Sociedade Civil e se mantém ativo nela num processo de fascistização infinito, num simulacro de Revolução Permanente Fascista.
Sem a alternativa do socialismo revolucionário, sem um bloco econômico internacional diverso do capitalismo, a esquerda restante assume como horizonte a própria Revolução Passiva,agora extemporânea, tentando incorporar, de forma rebaixada, algumas demandas populares. Em termos gramscianos esse reformismo é melhor definido não pela díade forte-fraco, mas transformador-restaurador ou ativo-passivo. Se a Social Democracia clássica, à exceção da alemã (num país dividido e ocupado), mantinha um norte ideológico socialista, mesmo sob o pacto social vigente no pós II Guerra, seu objetivo passou a ser a restauração do passado e não a invenção do futuro.
Revolução Molecular
A produção da hegemonia é nucleada pelo grupo que desempenha papel decisivo na direção econômica e visa conservar e ampliar aquele papel. Se o Estado, sem perder sua particularidade, é também um conjunto de relações de força, sua crise é a da sua articulação com o conjunto da sociedade e não apenas com as classes dominantes[14]. Assim, os trabalhadores não são externos à crise, mas parte integrante dela, mesmo quando sua ação é fragmentária e intermitente.
Em 1930 não se tratava, portanto, de apenas uma readequação do Estado a um novo padrão de acumulação, já que o processo de conversão de parte da produção para o mercado interno integrou as classes dominadas nos mercados de trabalho e consumo.
A partir de 1930 a Antítese é permanentemente diluída e assumida pela Tese até se reduzir a um transformismo ativo, a uma revolução molecular. Nessa dialética sem síntese, o poder moderador das elites paulistas foi vital ao menos até 1964.
Carlos Nelson Coutinho (1980) recorreu ao conceito de via prussiana para assinalar no plano da estrutura a conciliação de classes e as mudanças de cima para baixo que marcaram não só 1930 como outros momentos da história brasileira. No plano superestrutural, Coutinho usou a categoria gramsciana de Revolução Passiva em complementaridade à Via Prussiana de Lenin. A ausência de resolução da questão agrária em 1930 poderia ser um índice da Via Prussiana[15].
Werneck Vianna positivou o conceito de Revolução Passiva e o tornou uma espécie de estratégia de guerra de posições dos subalternos, limitando o seu horizonte a uma ordem liberal e democrática e a um transformismo ativo[16].
Transformismo Passivo
No Brasil, o movimento operário pós 1978 se erigiu como polo radical da luta de classes, mas a Revolução Democrática da década de 1980 foi dissolvida.
Não estamos nem diante de uma Revolução – Restauração e nem mesmo de um reformismo ativo. Carlos Nelson Coutinho propôs o termo Contrarreforma, usado muito pouco por Gramsci e que não parece assumir a condição de um conceito que expressa os problemas que estamos enfrentando[17]. Em termos econômicos poder-se-ia evocar a “reversão neocolonial” proposta por Plinio de Arruda Sampaio Junior.
A burguesia não busca a produção de consensos e nem a absorção das lideranças dos subalternos ou incorporação de direitos trabalhistas. A não ser que se sinta ameaçada a fazê-lo. A esquerda se atém à pequena política, enquanto a direita tradicional despolitiza a política[18], remetendo as disputas para questões técnicas e administrativas. O neofascismo vai ao extremo e se mostra falsamente anti político, fazendo política.
Gramsci supôs que a Social Democracia poderia ser a agente da Revolução Passiva no Ocidente, representando seu polo interno ativo e um reformismo, portanto, igualmente ativo, através das políticas públicas de habitação, saúde, educação e direitos trabalhistas e previdenciários. Sua base foi a industrialização.
No Brasil, a década de 1990 assinalou a viragem de uma economia que exportava 55% de manufaturados para outra que hoje (2024) exporta 25%. A base trabalhista da esquerda se diluiu e ela se reduziu ao polo passivo da direção burguesa. Assim, propõe a restauração de um passado onde ao menos podia ser o polo ativo de uma Revolução Passiva que incorporava demandas de baixo. Seu reformismo passivo é incapaz de sequer ser autenticamente reformista. A guerra de posições visava reabrir a possibilidade da guerra manobrada. Era esse seu objetivo estratégico. Sem esse objetivo, não há guerra de posição e nem Revolução Passiva, apenas uma Esquerda sitiada.
A hegemonia se desfaz em migalhas como o vidro temperado. O risco para a sociedade civil é que ela se fragmenta, mas não se desprende, combinando sua desarticulação histórica com uma crise de novo tipo, inerente à estrutura econômica. Pois agora não se trata apenas de reiterar o ilhamento de regiões exportadoras coloniais, mas de descozer o tecido remendado do ciclo industrial. Sobram na paisagem cultural frações de um velho campo de forças em curto circuito, um antigo espaço hegemônico desagregado. A hegemonia se torna seletiva, mas não invertida, posto que não se trata apenas de voltar à ditadura aberta ou de atribuir a um grupo subalterno o exercício de sua própria sujeição. Trata-se de submeter as classes trabalhadoras a um terror disseminado na sociedade política e na sociedade civil, com ilhas de consenso para os que se classificam social e, por vezes, racialmente.
[1]Aula no curso de pós graduação no PPGHE USP, 2024.
[2]Portantiero, J. C. Los Usos de Gramsci. 3 ed. Mexico: Folios ed., 1983, p.125.
[3]Nesse sentido é diferente do conceito de sociedade abigarrada desenvolvido pelo marxista boliviano Zavaleta Mercado. Ele ressaltava a desarticulação da formação social da Bolívia, mas o que era uma condição negativa a ser superada, serviu de base para a institucionalização de um Estado plurinacional. Vide Augsburger, Aaron. “The plurinational state and Bolivia’s formación abigarrada”. Third World Quarterly, Volume 42, 2021.
[4]Aricó, J. Marx y America Latina. Lima: Ediciones Cedep, 1980, p.105.
[5]O termo provêm de um discurso de outubro de 1876 através do qual Agostino Depretis (1813-1887) elogiou a “transformação dos partidos” e a criação de um bloco parlamentar sem distinção entre Direita e Esquerda. Cf. Romano, Sergio. Storia d’Italia dal Risorgimento ai Nostri Giorni. Milano: TEA, 2004, p. 116. A nossa epígrafe de Giolitti é citada por Romano à página 163 de seu livro.
[6]Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Riunitti, 1977, p. 962. Q. 8, &36.
[7]Thomas, Peter D. The Gramscian Moment. Chicago: Haymarket Books, p. 156.
[8]Gramsci, A. op. cit, p. 41.
[9]Thomas, Peter D. op. cit, p. 143.
[10]Gramsci, cit, p. 957.
[11]Del Roio, Marcos. Gramsci e a emancipação do subalterno. São Paulo: Editora da Unesp, 2918, pp. 215 e seguintes.
[12]Del Roio, M. cit, p. 225.
[13]Secco, L. “O Debate sobre o Cálculo Econômico numa Economia Planificada”, inédito, 2024.
[14]Portantiero, J. C. Op. cit., p.148.
[15]Aliaga, Luciana e Areco, Sabrina. “Nacionalização imperfeita: o conceito de revolução passiva e a formação do Estado no Brasil”, Dados, Rio de Janeiro, V. 66, N.4, 2023.
[16]Vianna, L. W. “Caminhos e Descaminhos da Revolução Passiva à Brasileira”, Dados N. 39 (3), 1996.
[17]Coutinho, Carlos N. “A Época Neoliberal: Revolução Passiva Ou Contra-Reforma?”, Novos Rumos, n. 49, Marília, 2012.
[18]Thomas, P. The Gramscian Moment. Chicago: Haymarket Books, 2009, p.151
[i]Sartori, G. “Calculatin the Risk”, in Sartori, G. and Ranney, A. (orgs). Eurocommunism: the italian case. Washington, 1978.
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