Ano 5 nº 14/2025: Vá e veja - O Concreto Armado - Lincoln Secco

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Vá e veja…

 

O CONCRETO ARMADO:

COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO DE ANSELM JAPPE

 

Lincoln F. Secco

Professor de História - USP

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O feriado de 15 de agosto, data da Assunção de Maria, é conhecido na Itália como Ferragosto. É também o título de uma comédia melancólica de 2008 dirigida por Gianni Di Gregorio. Na véspera do Ferragosto de 2008, a Ponte Morandi, em Gênova, desabou. O acontecimento poderia nos remeter à obra de Thornton Wilder (A Ponte de São Luis Rei) em que se discute se o encontro fatal de cinco pessoas no momento da queda foi um acidente ou desígnio do destino.

No caso italiano pode-se falar de forma alegórica em “destino”. O concreto amarrado por barras de aço que ficam dentro da estrutura, sujeitas à corrosão invisível, tem uma data de validade limitada a cerca de meio século. Depois disso, exige manutenções financeiramente proibitivas.

Movido por aquele acontecimento, Anselm Jappe escreveu um livro denso[1], mas de agradável leitura que conjumina história, arquitetura, denúncia e uma amarração teórica a partir do conceito de fetichismo da mercadoria de Marx.

O substantivo concreto (material de construção) é o lado concreto (adjetivo) mais disseminado da abstração mercantil. Esse jogo de palavras é possível em inglês, espanhol e português brasileiro; mas não no português europeu, no alemão ou no francês, onde se usa o termo Beton ou Betão.

 

Histórico

 

De acordo com Jappe, desde 1824 apareceu o cimento Portland, tendo por base o clinker, isto é, uma mistura de aproximadamente 80% de calcário e 20% de argila cozida a 1.450 °C para solidificá-la; em seguida, ela é triturada para se obter o pó de cimento. Desde então, a produtividade saltou de 1 tonelada por 40h para 1ton/3min nos dias de hoje.

O cimento artificial foi vital para que o concreto (a argamassa de calcário, argila, areia e cascalho) se tornasse onipresente na paisagem urbana mundial a partir dos anos 1960. Além do cimento, foi imprescindível a armação do concreto, para a qual se acrescenta o aço. Enquanto as argamassas históricas serviam para unir pedras naturais entre si, o concreto é uma pedra artificial usada desde a Antiguidade. No caso de Roma, a partir de uma mistura vulcânica com uma durabilidade impressionante.

Assim, embora o concreto exista desde a Antiguidade, ele deixou de ser apenas uma das várias técnicas de construção para se tornar dominante devido a flexibilidade e baixo preço das estruturas de concreto armado. Preço módico só a curto prazo, sem considerar que depois sobram ruínas horrendas, prédios abandonados, com infiltrações, e que precisam ser demolidos. Mas essa parte do custo é absorvida pela sociedade e não pela indústria da construção. Depois que um viaduto da Marginal Pinheiros cedeu em novembro de 2018, a Prefeitura criou, três anos depois, um Programa de Recuperação e Manutenção de pontes, viadutos, pontilhões, passarelas e túneis com previsão de investimento de R$ 1,64 bilhão (rubrica claramente insuficiente para as quase 200 pontes e viadutos da cidade, com média de existência de mais de 40 anos).

Há ainda os custos ambientais. Jappe cita o alto consumo de energia na produção de cimento, emissões de CO2 e inalação prolongada de poeira de sílica pelas pessoas. Seu livro não poupa personalidades como Thomas Edison, inventor da cadeira elétrica!, Le Corbusier (o arquiteto inspirado na eugenia e na segregação social), Heidegger, o filósofo nazi; mas também cita o entusiasmo de Lenin e Gramsci[2] pelo fordismo e a adoção entusiasmada do concreto na construção habitacional por Nikita Kruschev na União Soviética. Lembra até mesmo a utilização do concreto pela arquitetura antroposófica, embora ela fuja dos ângulos retos que marcam a monotonia da paisagem mundial urbana. As curvas de Niemeyer também não eliminaram os demais problemas do concreto armado. Assim, o concreto e o plástico se tornaram um fundo comum da modernidade no socialismo real e no capitalismo.

 

No Brasil

 

A obra não deixa de ser fundamental para a reflexão sobre os caminhos da modernidade periférica no Brasil. Sem o concreto armado, ela não teria sido possível. Embora houvesse produção desde fins do século XIX, no Brasil a moderna produção de cimento teve seu surgimento na década de 1920 no extremo noroeste da cidade de São Paulo, no atual bairro de Perus.

A Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus S/A inaugurou sua fábrica em 1926[3], fruto da associação de capital canadense com uma família que teve dois “governadores” do Estado de São Paulo entre seus membros, Bernardino e Carlos de Campos. Em 1951, passou ao Grupo J.J. Abdalla até fechar em 1986 deixando um rastro de fraudes contábeis, devastação das rochas do entorno e da floresta para alimentar os fornos. O bairro também foi o locus da repressão ao movimento operário local (o movimento dos Queixadas) e de um cemitério com uma enorme vala clandestina com restos mortais de perseguidos políticos da Ditadura Empresarial Militar de 1964[4].

Incúria e corrupção combinam com o fato de que a decadência da fábrica se deu na razão inversa do incremento da demanda por cimento. A partir da presidência de Juscelino Kubitschek, o Brasil adotou o modelo de crescimento com poupança externa, mantendo a dependência e associando capital multinacional, empresas nacionais subsidiárias e o Estado. Mas o que nos importa aqui é que o grande produto daquele modelo econômico foi o automóvel. A substituição da malha ferroviária pela rodoviária deu-se na mesma época em que explodiu na Europa o consumo de concreto armado. De acordo com o geógrafo Leandro Santos:

“A elevação do consumo de cimento durante os anos 1970 foi de 9,3 para 24,8 milhões de toneladas deveu-se, sobretudo, às políticas habitacionais sob a tutela do Estado - por meio do Banco Nacional da Habitação (BNH) - e aos grandes projetos de engenharia, entre eles a construção de hidrelétricas, rodovias e pontes”[5].

O concreto respondeu ainda pela construção de Brasília e o crescimento das cidades que polarizaram a industrialização e tiveram sua paisagem destruída por arranha céus de concreto armado. Na década de 1980, São Paulo já era uma cidade desfigurada, mas ainda havia muito espaço nos bairros para a verticalização. No período 1988-2000, a produção de cimento continuou subindo: foi de aproximadamente 25 milhões de toneladas para 39 milhões. O Brasil exportou uma pequena parte (0,47%) para países da América do Sul. O processo perdura até hoje[6].

No sentido oposto ao do caso de Perus, foi criada em 1936 a Fábrica Santa Helena numa cidade que já tinha uma indústria instalada: Sorocaba. O empreendimento deu origem ao grupo multinacional Votorantim que se destacou na produção de alumínio. O metal deu nome a um município paulista (Alumínio) que produzia cimento no início do século XX e teve fábrica de vidro e depois de alumínio.

No Vale do Ribeira, o município de Cajati se destacou pela produção de calcário graças ao “apoio” do Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo. A atividade deixou um permanente dano ambiental e em 2021 a cidade estava entre as campeãs do desmatamento da Mata Atlântica[7].

Em 2024, a cidade de São Paulo bateu o recorde histórico de entrega de 800 condomínios, acabando com pequenos comércios locais, sobrados e casas antigas, e morfologias, com agravamento da circulação. Parte dos imóveis, no entanto, não serviu a moradias e sim à especulação.

 

Crise

 

Esse é um aspecto relevante que complementaria o livro de Jappe. A manifestação concreta das crises cíclicas do circuito do valor abstrato é mais evidente no mercado imobiliário. A crise de 2008 teve origem ali no setor, especialmente no empréstimo subprime, aquele concedido aos tomadores com maior risco de inadimplência, mas que pagavam obviamente juros mais elevados. As hipotecas (papéis que tinham as casas como garantia) foram securitizadas, transformadas em títulos derivados e negociados. 

Para Jappe, o conceito de trabalho abstrato é o conceito fundamental para a crítica dessa sociedade de concreto, vidro, plástico e ar condicionado. Todo trabalho em condições capitalistas tem um lado concreto que se expressa num valor de uso, ou seja, na utilidade da mercadoria; e tem um lado abstrato que se exprime enquanto um valor que é uma unidade tempo médio de produção de qualquer coisa, independentemente da qualidade e do tipo de trabalho. Esse valor só se torna visível quando se mostra numa forma que é o valor de troca:

“Não devemos confundir o valor – que é o tempo de trabalho – com o valor de troca, que consiste numa outra mercadoria (historicamente, sobretudo metais preciosos e depois a moeda)” (p.146).

Isso nada tem a ver com o caráter material ou imaterial da produção. O trabalho de um marceneiro que faz uma mesa tem um lado abstrato (que dá o valor da mesa). O trabalho de um blogueiro tem um lado concreto que é produzir, v.gr., fake news (p. 146). Notícias falsas, agrotóxicos, músicas de Gustavo Lima e cursos de Pablo Marçal têm um valor de uso, por mais duvidoso que seja.

No valor apagam-se as qualidades sensoriais dos produtos numa “geléia indiferenciada de trabalho abstrato” (Marx). O valor é uma relação social que precisa ser representada, simbolizada num signo de valor: o dinheiro, que aparece como potência autônoma, poder externo e estranho aos produtores de mercadorias:

“O valor de troca cindido das próprias mercadorias e existente ele mesmo junto a elas é: dinheiro. Todas as propriedades da mercadoria enquanto valor de troca se apresentam no dinheiro como um objeto distinto dela, como uma forma de existência social cindida de sua forma de existência natural”[8]

Com o desenvolvimento capitalista, o lado concreto existe cada vez mais apenas como a “encarnação temporária e intercambiável do abstrato” (p. 147). Ao abstrair as particularidades concretas das mercadorias, suas qualidades desaparecem e o que sobra é o que permite o intercâmbio entre elas: a quantidade de tempo de trabalho abstraído de toda a sua concretude.

Estamos presos no interior do movimento automático e sem sujeito do Capital: “para o valor, as formas infinitas do mundo não são mais do que o revestimento de uma substância sempre idêntica” (p. 149), ou seja, uma gelatina indiferenciada de trabalho abstrato. Para Jappe, o concreto armado é a materialização par excellence do valor:

“O concrete [em inglês] é a face visível da abstração. É um material sem limites próprios (líquido desde o início), amorfo, polimorfo e que pode ser vazado em qualquer molde” (p. 150).

Todavia, restava um problema. Os bens imóveis são os mais difíceis de serem inteiramente subsumidos na lógica do turbo capitalista. Uma das maneiras para aumentar a mais valia residia no aumento do número de rotações do mesmo capital investido. Se você investe numa plantação de árvores para colher a madeira em 20 anos, esse é o tempo de rotação e, portanto, de retorno do investimento. Até lá ainda haverá custos de manutenção e vigilância. Vejamos um exemplo de Marx.

Imagine-se que um capitalista “A” adiantou 500 libras esterlinas de capital variável para um prazo de 5 semanas, quando o seu capital reflui acrescido de 500 libras esterlinas de mais-valia; o capital do empresário “B” que rota só uma vez ao ano e não dez vezes como “A”, precisa reinvestir 500 libras sempre novas após 5 semanas e que não tenham refluído do emprego produtivo da força de trabalho. Só depois de 50 semanas (1 ano) refluirão 5.000 libras esterlinas que são o adiantamento do capital “B” (500 x 10, sendo 10 o número de rotações de “A”).    

Os prédios das antigas fábricas, hoje ruínas industriais de tijolo inglês, eram parte do capital fixo que rotava muito menos que o capital circulante obviamente. As máquinas já passavam por depreciação moral (Marx) e tinham que ser substituídas por outras mais eficientes antes de seu tempo de vida útil. Agora, os arranha céus são feitos com obsolescência programada. Com o desprezo total pelos materiais e pelo ambiente, tudo se torna “velho” mais rápido. Aumentar a velocidade de circulação das mercadorias se tornou essencial:

“Os sujeitos contemporâneos habituaram-se à obsolescência e à renovação incessante das suas roupas e dos seus automóveis; acostumaram-se também – recorrendo aos psicotrópicos e às terapias – à substituição contínua dos seus amigos e dos seus amores, dos seus filhos (no caso de famílias recompostas), do seu trabalho, dos seus lugares de residência e das suas opiniões políticas. No entanto, a ausência total de cenários já conhecidos e, portanto, reconhecíveis, pode impelir os sujeitos à loucura (…)” (p.152).

Até as cidades se tornaram substituíveis. “Uma cidade reconstruída a cada geração, como sonhava Antonio Sant’Elia, só poderia ser um pesadelo” (p.153).

Jappe comenta ainda o absurdo de concreto e vidro da Biblioteca Nacional da França. Os arquitetos não levaram em conta que os livros não deviam ser expostos à luz: “Talvez já tivessem previsto na época, na sua grande sabedoria, que o futuro livro digital se emanciparia do seu suporte arcaico em papel”, afirma ironicamente o autor (p.139).

Um mundo sem livros, de ruínas de concreto e ferrugem e, nos lixões, montes de automóveis e celulares obsoletos no lugar das montanhas naturais (agora ocas)[9]. Admirável mundo novo. A modernidade é “uma reductio ad unum” (p.99) ensina-nos Anselm Jappe.

 

[1] Jappe, Anselm. Betão: arma de construção maciça do capitalismo. Antígona, 2022.

[2]Não me parece que Gramsci seja assertivo no seu Caderno 22. Ele lança muitas frases no tempo condicional e há dúvidas sobre o americanismo e o fordismo.

[3]Em 1933 entrou em funcionamento uma fábrica de capital estadunidense em São Gonçalo/RJ.

[4]Chamava-me a atenção para a história de Perus um velho companheiro, o operário Salvador Pires. Mais recentemente visitei a região com a historiadora Rosa Gomes que trabalhou intensamente na preservação da memória das lutas operárias do bairro de Perus.

[5]Leandro Bruno Santos. “A indústria de cimento no Brasil: origens, consolidação e internacionalização”, Sociedade e Natureza, 2011, https://www.scielo.br/j/sn/a/nnypgjBHkwHg9Vt53YMJWLj/. Acesso em 7/1/2025.

[6]Balanço Mineral Brasileiro, 2001.

[7]Galileu, 30 Jun 2021.

[8]Marx, K. Elementos Fundamentales para la Critica de la Economía Politica (Grundrisse),15 ed. México: Siglo XXI, 1987, v. I p.70.

[9]Entre Itajubá e Maria da Fé é possível ver um desses espetáculos tristes das montanhas ocas que existem a mancheia em Minas Gerais.


Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Giovanna Herrera, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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