Ano 01 nº 50/ 2020: Gramsci contra o Fascismo - Lincoln Secco

boletim 50


Mundo acadêmico...

 

GRAMSCI CONTRA O FASCISMO

 

Lincoln F. Secco

Professor do Departamento de História - USP

 

O fascismo foi a mobilização oportunista e permanente, contrarrevolucionária e “racional” da irracionalidade das camadas médias durante a crise do entre guerras. Na sua época, ninguém compreendeu melhor do que Gramsci o processo que permitiu que a extravagância de alguns indivíduos atomizados se tornasse um movimento, um partido e, depois, um regime com o aplauso de segmentos de todas as classes.

Quando os Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci foram editados, o líder do Partido Comunista Italiano Palmiro Togliatti afirmou: “uma pergunta não formulada nos acompanha, se soubermos ler, caderno por caderno, página por página: como isto foi possível; como isto poderá cessar?”1. Como aquilo foi possível é uma questão que todas as gerações não podem deixar de se fazer.

Gramsci acompanhou o surgimento de experiências fascistas semelhantes em toda a Europa e, ao mesmo tempo, observou que elas eram muito diferentes entre si porque respondiam aos desafios nacionais. Sem perder de vista a particularidade concreta do fascismo italiano, a sua leitura nos permite hachurar as fronteiras imprecisas dos fascismos e identificar as suas fases. A partir dele é possível se aproximar de uma definição abrangente sem perder de vista a pluralidade empírica do fenômeno. Isso aparece em textos sobre assuntos que aparentemente não guardam relação entre si, mas abordam múltiplas manifestações potencialmente fascistizantes, como, por exemplo, as bizarrices literárias das primeiras décadas do século XX, a obra de D’annunzio e Marinetti, o colonialismo, as revistas ultra nacionalistas, os desmobilizados da guerra etc.

Enquanto militante, Gramsci estava diante de algo inteiramente novo e tinha que combater sem se dar a paciência da precisão teórica. Exatamente por isso, não buscou uma essência a priori; ele captou o fenômeno in flux. Pensava enquanto lutava. Os espaços sociais do fascismo e seus elementos iniciais mais evidentes (violência demonstrativa, cumplicidade do Estado e de políticos liberais, apoio da Burguesia, maleabilidade programática, uma base social pequeno burguesa etc) são tratados em diversas temporalidades: desde a história imediata e das ações governativas, atravessando a larga conjuntura da guerra e da crise do regime liberal até a unificação italiana (Risorgimento), cuja problemática situa-se num ritmo lento.

A oscilação oportunista do fascismo e sua instabilidade iniciais permitiram que Gramsci observasse que não havia ali uma ideologia original, muito menos qualquer teoria. Como disse o próprio Mussolini, “nossa doutrina é o fato”2. Os elementos fascistas não eram originais, nem sua arquitetura discursiva ou conceitual (que ele não tinha). Nenhuma realidade exige tantos oximoros quanto o discurso fascista; ele é uma verdadeira inovação reacionária.

gramsciA prática historiográfica costuma revelar como o novo pode surgir no interior de formas antigas e o velho revestir-se de novas. Gramsci foi além e declarou que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno surgem fenômenos mórbidos patológicos”3. É nessa zona de penumbra que as formas se mesclam e absorvem conteúdos contraditórios. Como pode um radicalismo violento vestir formas pragmáticas? Uma ideologia capaz de abarcar todas as esferas da vida ser desprovida de qualquer teoria? O fascismo expressava com a ação direta, as bizarrices intelectuais e a habilidade permanente de mobilização e desmobilização o transe de uma sociedade em crise. Mas em si e por si mesmo, ele teve necessariamente de conduzir os povos que o encarnaram à vergonha, à humilhação e à derrota, como Gramsci previu na famosa resposta que deu ao tribunal fascista que o condenou a vinte anos de prisão: “Vocês conduzirão a Itália à ruína e a nós, comunistas, caberá salvá-la”.

 

 

 

1 Togliatti, Palmiro. L`Antifascismo di Antonio Gramsci. In: Liguori, G. (org). Scritti su Gramsci. Roma: Riunitti, 2001, p. 177.

2 Paris, Robert. Histoire du Fascisme em Italie. Paris: Maspero, 1962, p. 226.

3 Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Riunitti, 1975, p. 311.

 


 

Expediente

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