Ano 2 nº 07/2021: Sendero Luminoso e Violência Revolucionária - Alice Rossi

boletim 2-07


Memória socialista...

 

SENDERO LUMINOSO E VIOLÊNCIA REVOLUCIONÁRIA

 

Alice Rossi

Graduanda em História – USP

 

Sendero

Fonte: El Telégrafo, https://www.eltelegrafo.com.ec/noticias/mundo/8/guerrilla-sendero-lumin…

 

No início dos anos 1980, quando a maioria dos países da América Latina fazia a transição de governos ditatoriais para os tão almejados Estados democráticos de direito, uma fração radical do partido comunista peruano declarou guerra ao Estado nacional. O anúncio se deu no dia das primeiras eleições diretas depois de doze anos, por meio da destruição do material eleitoral na cidade de Ayacucho, o que a princípio passou despercebido pelas autoridades. Duas semanas mais tarde, a aparição de cães mortos pendurados nos postes de luz do centro de Lima alertou o governo, a mídia e a população para os decretos e ações do grupo insurgente. Assim, inaugurou-se o processo por meio do qual o Partido Comunista Peruano - Sendero Luminoso (PCP-SL), instalado em uma das regiões mais pobres do país, conseguiu, através de diversos artifícios estratégicos, levar o sistema político nacional a uma situação próxima do colapso.

A compreensão da atuação armada do Sendero Luminoso passa pela contextualização do momento de seu fortalecimento, no distrito de Ayacucho. Localizado no centro-sul do país, Ayacucho era um clássico exemplo do padrão desenvolvimento gritantemente desigual do Peru no século XX: a prosperidade exportadora escapou da região, que foi ainda mais marginalizada por ter uma população predominantemente indígena. As reformas sociais que tinham sido promovidas pelo governo ditatorial (1968-1980) deixaram muito a desejar, principalmente a reforma agrária, que representou uma grande frustração para o campesinato da região.

Porém, em 1959, na contramão do descaso com qual o Estado peruano geria o distrito, foi reaberta a Universidade de São Cristóbal de Huamanga. A emergência de uma entidade educacional de ponta localizada na região mais pobre e com a estrutura agrária mais arcaica do país culminou em um verdadeiro terremoto social, e foi em meio a esse caldo que se desenvolveu o PCP-SL, liderado pelo professor universitário de filosofia Abimael Guzmán. O partido se ampliou e se capilarizou despercebidamente durante todo o período ditatorial, de modo que, no início dos anos 1980, estava preparado para se lançar no conflito armado.

A motivação do Sendero Luminoso para partir para a luta armada em um momento de abertura democrática era baseada, resumidamente, no princípio de que a estrutura do Estado peruano e a democracia eram incompatíveis. Para o partido, o Estado nacional era uma ditadura de latifundiários feudais e grandes burgueses, apoiada pelo imperialismo norte-americano. Tal Estado se sustentava pela violência, e a única maneira de emancipar o povo peruano era responder na mesma moeda: com violência revolucionária. Assim, na visão do PCP-SL, disputar as eleições era um caminho reformista e ilusório, pois o cenário de exploração da população jamais se alteraria dentro da lógica burguesa da democracia representativa.

Em busca de derrubar o Estado latifundiário-burguês, Abimael Guzman formulou uma doutrina que aglutinava aspectos da revolução chinesa de Mao Tse Tung com a tradição revolucionária peruana de Gonzalez Prada e Mariátegui (o que lhe renderia a denominação de “a quarta espada do comunismo internacional”). A revolução deveria caminhar do campo para a cidade, tendo como protagonistas os camponeses e indígenas.

Para realizar o movimento revolucionário partindo do meio rural para o urbano, o PCP-SL se valeu de dois elementos táticos principais. O primeiro, a quota de sangue: incitar os militantes a matar e morrer pela revolução. O segundo, a ordem de varrer o campo: instituir uma “guerra relâmpago”, na qual as zonas de operações eram abertas a partir da invasão de colheitas e assassinato das autoridades: padres, prefeitos e até camponeses prósperos. Desse modo, a ordem criada pela débil reforma agrária da ditadura era arrasada, e os vazios de poder eram preenchidos por comitês populares, que representavam o princípio do novo Estado senderista. E é precisamente em torno destes dois pontos que toda a polêmica em torno do grupo guerrilheiro gira até os dias de hoje: a extrema violência da qual os senderistas se utilizaram na realização de suas ações e as relações que o grupo estabeleceu com as comunidades camponesas ao longo dos doze anos de guerra interna.

Durante o ano de 1980, o Sendero produziu uma temporada verdadeiramente luminosa no campo peruano. Avançando rapidamente sobre as zonas rurais interioranas do país, os guerrilheiros procuravam se integrar à vida dos camponeses pobres, fazendo discursos em idioma indígena e oferecendo soluções práticas para seus problemas do dia a dia. O manual da guerrilha senderista estabelecia regras de convivência com as populações das áreas libertadas, como não estragar as plantações, não roubar nada das pessoas, não maltratar os prisioneiros e falar com cortesia. Essa política de respeito aos camponeses, embora possa parecer muito básica, era completamente inovadora dentro de uma sociedade racista e desigual como a peruana, e auxiliou na aproximação entre camponeses e combatentes em um primeiro momento.

Além disso, o Sendero Luminoso soube entender e operar com a condição da mulher peruana camponesa e indígena como nenhum outro partido de esquerda. Desde a colonização espanhola e, posteriormente, com o processo de expansão do capitalismo, as mulheres ficaram submetidas a uma dupla opressão: aos homens e ao capital, e as normas que o partido estabelecia nas zonas conquistadas dialogavam diretamente com essa realidade. Eram instituídas punições severas ao alcoolismo, adultério e violência doméstica. Também foram fundadas escolas de formação, onde guerrilheiras conscientizaram a população de que a situação de exploração feminina estava diretamente atrelada à exploração econômica, e que a libertação das mulheres se daria por meio da luta armada. Essa política senderista se refletiu na grande adesão das mulheres aos quadros do partido, já que estas compunham 40% dos militantes e 50% dos cargos da direção.

Contudo, a partir do final de 1981 o cenário se alterou drasticamente. Compreendendo o grau de organização e força do Sendero Luminoso, o Estado aumentou o nível de repressão contra os guerrilheiros, determinando a entrada dos Sinchis na guerra.  Forças especiais da guarda civil treinadas pela divisão de operações especiais da CIA, os Sinchis eram especializados em liquidar guerrilhas. Encapuzados e sem identificação, estavam autorizados a utilizar todos os métodos de genocídio e tortura mais hediondos contra os militantes do Sendero. Porém, os senderistas não eram guerrilheiros convencionais, já que não utilizavam uniforme, frequentemente não possuíam armas e acampavam dentro das aldeias. Eram um inimigo invisível, facilmente confundido com os camponeses. O resultado foi uma chacina da população civil.

A reação contra-subversiva do Estado peruano, apoiada desde o início pelos Estados Unidos, atingiu parâmetros de violência extremos à medida que o conflito se intensificou. Ao contrário do Sendero Luminoso, as forças armadas e os Sinchis possuíam toda uma estrutura de guerra para torturar, assassinar e desaparecer com pessoas: quartéis, salas subterrâneas, fornos para queimar restos mortais, entre outros. Há relatos tenebrosos sobre a conduta que os agentes do Estado tomavam contra os militantes senderistas (ou camponeses que eram tomados como militantes), que incluem os mais variados tipos de tortura física e psicológica, sequestro, mutilação e estupro.

Essa entrada mais intensa das forças estatais na guerra fez com que o Sendero Luminoso recrudescesse seu domínio e autoridade sobre as zonas libertadas. Presos no fogo cruzado entre senderistas e Sinchis, os camponeses começaram a se incomodar cada vez mais com as restrições de mobilidade e comércio, o modelo de autonomia autárquica e o recrutamento obrigatório de jovens impostos pelo partido.  Diversos levantes camponeses começaram a ocorrer, e o alto comando senderista não reagia bem a essa situação, instruindo os militantes a usarem de violência e fuzilamentos para abafar as revoltas. Qualquer crítica contra as imposições senderistas, ainda que totalmente construtiva, era automaticamente tomada como conspiração contra o partido e duramente condenada.

Essa postura transformou o respeito mútuo que existia entre camponeses e senderistas em crescente hostilidade, e o acontecimento mais emblemático dessa transição é o caso de Lucanamarca.

Lucanamarca era uma das áreas de conquista senderista, nos arredores de Ayacucho. Em 1983, um grupo de descontentes com o domínio do partido resolveu recuperar o povoado para os camponeses. Durante a celebração de um carnaval, os habitantes revoltosos capturaram e mataram alguns militantes senderistas encarregados da região, restabelecendo Lucanamarca como uma área de influência do Estado peruano. Porém, alguns meses depois, o Sendero Luminoso praticou um “contrarrestabelecimento” desse departamento - o que era uma das táticas principais da guerrilha e o fundamento por trás de tantos conflitos sangrentos no campo. O partido ordenou uma ação de punição aos lucanamarquinos: na operação de retomada, 69 pessoas - incluindo 20 crianças - foram assassinadas a machadadas. Esse caso foi comentado pelo próprio Guzmán na única entrevista que o líder concedeu durante a guerra popular: “diante do uso de mercenários e da ação militar reacionária, respondemos com uma ação: Lucanamarca. Nem eles nem nós esquecemos.”

A política senderista de aniquilação total dos inimigos do povo expressa no comentário de Guzmán acabou por polarizar totalmente o campo no final da década de 1980, e, em certas análises, é considerada a grande responsável pela derrocada do grupo guerrilheiro. Foi por conta desta política que a maior parte da população rural passou a repudiar o Sendero Luminoso, e se organizou em comitês de autodefesa camponesa com objetivo de se livrar do domínio senderista. Estes comitês eram amplamente apoiados pelo Estado, e foram uma peça-chave para a derrubada do PCP-SL, pois com a penetração das forças armadas e a perda de apoio no campo, o partido foi obrigado a se deslocar para o litoral do país, onde foi completamente liquidado.

Abimael Guzmán caiu nas mãos do Estado em 1992 e foi direcionado para uma prisão de segurança máxima, onde continua até os dias de hoje. Depois disso, os quadros importantes do Sendero foram caindo aos poucos, até que a guerra foi considerada como encerrada no final daquele mesmo ano. Mas o Sendero Luminoso nunca teve um fim oficial, e deixou uma herança extremamente complexa e polêmica que continua rendendo debates acirrados dentro da esquerda latino-americana trinta anos depois.

Apesar do uso da violência pelo Sendero Luminoso ter intensidade e forma no mínimo questionáveis, é importante lembrar que o grupo foi veementemente condenado pelas forças hegemônicas nacionais e internacionais como uma das mais perigosas organizações terroristas. E por se tratar de uma guerra suja com tantas ações e mortes não documentadas, esse poder hegemônico tem uma capacidade maior do que o normal de manipular as imagens e informações propagadas sobre o PCP-SL, de modo que é quase natural que se faça uma análise puramente condenatória do partido, que não contribui em nada para entender a verdadeira complexidade de sua atuação.

A própria Comissão da Verdade peruana segue esta linha. Enquanto os guerrilheiros senderistas foram condenados aos montes e os líderes do partido punidos como inimigos do Estado, nenhum integrante das forças armadas sofreu sanções. Os crimes sistemáticos de violação aos direitos humanos que foram cometidos pelos agentes de Estado foram considerados “excessos” pela Comissão, enquanto o Sendero Luminoso ficou gravado na história como a organização terrorista mais perigosa da América Latina. Sem que um único senderista estivesse presente nas reuniões, a Comissão da Verdade peruana considerou que o PCP-SL foi responsável por mais da metade do saldo de 70.000 mortes documentadas.

Legítima ou não, a herança do movimento revolucionário peruano é inquestionável em um ponto: todos que almejam pensar uma transformação radical dentro da América Latina precisam passar pela história desse grupo que conseguiu chacoalhar as bases do Estado peruano por mais de dez anos. A questão da identidade indígena, o problema da distribuição de terras, a situação camponesa, a questão da mulher indígena e camponesa e outros temas fundamentais que atravessam o solo latino-americano de norte a sul, ganharam uma forma inédita e poderosa no Peru por meio do Sendero Luminoso. Assim, embora possa se considerar que o uso da violência revolucionária pelo partido foi descabido, não é pertinente que este seja colocado no lixo da história.

Além disso, a história da guerrilha peruana, com toda a sua estratégia de batalha e violência revolucionária, é uma das mais impressionantes dentre as insurreições latino-americanas dos últimos 100 anos: sem financiamento e quase sem armas, o PCP-SL conseguiu controlar 30% do Peru com uma imensa base de apoio camponesa. Por conta de sua condenação, é também um dos levantes de que menos se fala e se discute popularmente. E é importantíssimo que, em todos os meios possíveis, a história do Sendero Luminoso e da guerra suja peruana seja trazida à tona, com todas as suas polêmicas, violências, excessos e conquistas.

A guerra interna, não só do Peru como de toda a América Latina, é uma história do tempo presente. Os espaços que o Sendero disputava continuam em jogo e as reivindicações feitas pelos guerrilheiros continuam em pauta. E é extremamente necessário que a memória desse momento marcante da história peruana circule livremente pelos mais diversos espaços e seja debatida com maior frequência, para que possamos compreender se e como reivindicar a luta do Sendero Luminoso.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CRUVINEL, Monica Vasconcellos. Mulher e testemunho: das (im)possibilidades de lembrar, esquecer e dizer

RÉNIQUE, José Luis; LOPES, Magda. A revolução peruana. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

RONCAGLIOLO, Santiago; D’ÁVILA MELO, Joana Angélica. A quarta espada: a história de Abimael Guzmán e do Sendero Luminoso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

BERTONHA, J. F. “Sendero Luminoso: ascensão e queda de um grupo guerrilheiro”. Revista Espaço Acadêmico, v. 1, n. 03, 21 out. 2017.

People of the shining path. James Bellini, Marc de Beaufort, Yezid Campos. Chanel four television, 1992.

 


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000

Email: mariaantoniaedicoes@riseup.net