Ano 2 nº 08/2021: 25 Anos de Eldorado dos Carajás: a terra vale um sonho? - Jullyana Luporini

boletim 2-08


Memória socialista...

 

25 ANOS DE ELDORADO DOS CARAJÁS: A TERRA VALE UM SONHO?

 

Jullyana Lopes Luporini Barbosa de Souza

Mestre em História Econômica - USP

 

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Monumento Eldorado de Carajás, Praça dos Três Podres, Brasília - DF, s.d., Arquivo MST

 

17 de abril é o dia mundial da luta camponesa. Tal data foi estabelecida após o massacre de Eldorado dos Carajás, quando 21 camponeses Sem Terra foram barbaramente assassinados na BR-155, mais conhecida como curva do S, na região sudeste do Pará. A memória dos mártires do Eldorado segue viva, em meio às castanheiras. Todo ano, os Sem-Terra rememoram: Se calarmos, as pedras gritarão!

 

Há uma nação de homens excluídos da nação, há uma nação de homens excluídos da vida: Da Nova República ao Massacre de Eldorado dos Carajás

 

A Nova República trouxe à tona debates envolvendo a necessidade da Reforma Agrária no país. A fermentação social dos anos setenta e oitenta fez com que camponeses e posseiros emergissem na arena da luta de classes, frente a um processo de mecanização e proletarização rural que aumentava o subemprego e a concentração de renda na região agrícola.1

Diante da ofensiva do capital no campo, a ocupação dos lotes improdutivos começou a ser utilizada como tática pelos chamados “sem terra”, nomeação que a mídia da época usava para se referir a essa massa de lavradores. Com a fermentação social que envolvia os camponeses, a CPT (Comissão Pastoral da Terra), setores da Igreja Luterana, sindicatos e parte da sociedade civil surgiu, em 1984, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Em 1985, o MST já estava consolidado em dez estados do país, possuía uma executiva nacional e era conhecido nacionalmente. Após a realização do seu 1º Congresso Nacional, a executiva do Movimento junto com lideranças sindicais e parlamentares reuniu-se2 com o Ministro da Reforma Agrária do governo Sarney, Nelson Ribeiro, e o novo presidente do INCRA, José Gomes da Silva, para apresentar propostas de mudanças na estrutura fundiária brasileira.3 Alguns compromissos foram estabelecidos durante o encontro e um deles foi a elaboração do PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária) e a criação do MIRAD (Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário).

Ainda que reformista, a simples menção ao PNRA e a criação de um Ministério voltado para a questão fundiária foi o bastante para alarmar os latifundiários, empresários e parlamentares comprometidos com o latifúndio rural. O PNRA e o MIRAD foram boicotados, inclusive pela alta cúpula do governo. Era de amplo conhecimento as relações do presidente com os grandes proprietários de terra, sendo José Sarney denominado pelos militantes do MST como uns dos maiores “latifundiários e grileiros de terra do Maranhão”4.

Com a organização e crescimento das ocupações dos camponeses Sem Terra, há um recrudescimento da repressão através da organização da União Democrática dos Ruralistas (UDR). Essa mistura de lobby latifundiário com grupo paramilitar tinha como principal objetivo frear a organização dos camponeses, usando como tática as articulações parlamentares (principalmente em torno da Constituinte) e a ameaça e aniquilação das lideranças nos estados.

Os casos mais emblemáticos da brutal atuação da UDR foi o assassinato do padre Josimo Tavares, que atuava pela CPT na região do Bico do Papagaio (TO), e do líder sindical Chico Mendes em Xapuri (AC).

Com o fracasso do PNRA e a incapacidade do primeiro governo da Nova República mudar a concentração fundiária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra continuou apostando que “a ocupação é a única solução”5 e realizou diversas desapropriações em todo o país.

Mesmo com a UDR, a década de oitenta foi um momento de avanço organizativo para o MST: os ventos da “Nova República” impediam que os despejos fossem realizados de forma violenta, o MST ganhou o apoio de artistas, intelectuais e de parte da sociedade civil. Como João Pedro Stédile relatou: “Na época do Sarney, quando o governo não agilizava o assentamento, ninguém nos tirava da área ocupada. Virava, na prática, um assentamento. ”6

Contudo, os bons ares da Nova República foram insuficientes para mudar a correlação de forças envolta da questão da Reforma Agrária em benefício dos latifundiários. Apesar da Constituinte estabelecer a função social da terra e que o Governo Federal poderia desapropriar fazendas por interesse social, ela delegou para uma lei complementar definir os procedimentos para as desapropriações, o que só veio a ocorrer em 1993.7

Se podemos relativizar a derrota da Constituinte em 1988, não é possível realizar o mesmo com a eleição de Fernando Collor de Mello em 1989. O Movimento, assim como sindicatos, organizações e a ala progressista da sociedade civil, apoiou a candidatura do sindicalista Luís Inácio Lula da Silva.

Com a vitória do “Caçador de Marajás”, que era frontalmente contrário a organização dos Sem Terras, o Movimento precisou se voltar para dentro8, organizando a produção nos assentamentos e dando assistência aos acampados que viviam em estado de extrema penúria. Foi um momento de recuo tático para a organização se concentrar nos estudos e nas experiências de produção, cooperativismo, educação e formação de seus militantes.

O respiro vem com o impeachment do presidente e sua substituição por seu vice, Itamar Franco, este assume uma postura de diálogo com os militantes Sem Terra e recebe, pela primeira vez, os dirigentes da organização.

Nos anos 90, o processo de territorialização do MST nos estados se consolidou, o Movimento avançou na estruturação dos setores e coletivos e aumentou sua presença para dezoito estados no país.9

Foi em 1990 que o Movimento fez sua primeira ocupação no Pontal de Parapanema, região que recebeu a atenção dos brasileiros pelo enfrentamento aos grileiros, pelas prisões de militantes, tornando-se palco da luta contra o latifúndio improdutivo.

É em decorrência da prisão das lideranças do Pontal que o Movimento ganhou uma importante vitória do ponto de vista jurídico: através de um acórdão do Superior Tribunal da Justiça, o relator do caso da prisão dos militantes interpretou que as ocupações de terra massivas e realizadas com o objetivo de pressionar a Reforma Agrária não poderiam ser julgadas pelo Código Penal, mas à luz da Constituição, que determina que o governo deve desapropriar as terras improdutivas.10

Diante de tamanha visibilidade, o Movimento novamente se viu obrigado a mudar sua tática de atuação com a eleição de Fernando Henrique Cardoso. A primeira questão que preocupava o MST era a conhecida opinião do presidente de que não havia mais problema agrário no país. Em certa medida, FHC dizia claramente que não era necessária uma reforma agrária nem ao menos do tipo capitalista no Brasil.

A segunda questão (articulada com a primeira) era a total subordinação da economia ao capital internacional através de uma política de privatizações e reformas administrativas para reduzir o custo do Estado.

Na política agrícola, FHC aplicava o receituário neoliberal liberando a importação de produtos agrícolas, abrindo o capital para investimento das grandes empresas transacionais na agricultura e, dessa forma, quebrando de latifundiários a pequenos proprietários com o aumento das taxas de financiamento agrícola. Aumentou o limite aceito de glifosato nas lavouras e criou condições para o patenteamento genético o que facilitou a chegada das sementes transgênicas no país.11

O receituário neoliberal acabou reduzindo o preço da terra, facilitando a desapropriação dos latifúndios pelo INCRA. Tal situação, aliada à pressão das ocupações, fez com que no primeiro mandato de Fernando Henrique fossem assentadas 287.994 famílias.

Tal conjuntura aparentemente favorável não foi suficiente para demonstrar como a política de submissão ao capital externo do governo onerava diretamente as classes populares.

Somada à uma crise internacional, o governo viu-se diante de uma grave situação financeira em 1995 o que o fez aumentar a taxa de juros e o programa de privatizações das estatais. Tal diretriz de nada adiantou e a crise logo chegou aos trabalhadores através do arrocho salarial e da diminuição do poder de compra.12

É em meio a essa crise econômica que a violência intransigente do latifúndio demonstrou que, ao contrário do que o presidente dizia, a questão agrária não estava resolvida. No mês de agosto de 1995, ocorreu o massacre de Corumbiara em Rondônia durante uma ocupação em que 14 Sem Terra foram assassinados, incluindo uma criança.

A sanha dos latifundiários não parou: menos de um ano depois ocorreu o massacre de 21 camponeses na curva do S no estado do Pará. Dois mil militantes do Movimento estavam em marcha a caminho de Belém para pressionar o INCRA a desapropriar a fazenda Macaxeira em Curionópolis, uma reivindicação antiga dos posseiros da região.

Em 16 de abril, quando chegaram no trecho conhecido como “a curva do S” na cidade de Eldorado dos Carajás, bloquearam a estrada exigindo que o governo negociasse e oferecesse alimentação aos marchantes. O governador do estado, Almir Gabriel, enviou o comandante da Policia Militar de Paraupebas para negociar a desobstrução da estrada.

Houve negociação. Ficou acordado que, se liberassem a rodovia, o governo do estado enviaria alimentos e ônibus para os marchantes irem apresentar suas reivindicações ao INCRA em Marabá. No dia seguinte, 17 de abril, os Sem Terra foram informados que não haveria mais negociação e ocuparam novamente a rodovia.

Durante a tarde chegaram os batalhões militares, vindos de Paraupebas e Marabá, atirando nos marchantes e jogando bombas de efeito moral. Saldo: 21 camponeses mortos e outros 69 mutilados.

A brutalidade foi tamanha com requintes de sadismo: Oziel Alves, uma das vítimas mais novas, que mal completara 18 anos, foi torturado após a prisão no local. Morreu com coronhadas da polícia militar, foi encontrado com o crânio esmagado e o rosto desfigurado.

A ousadia e coragem de Oziel é rememorada até hoje através do acampamento pedagógico Oziel Alves, organizado pela juventude do MST na curva do S como forma de homenagear o legado desse mártir e renovar as tarefas da juventude Sem Terra.

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Mãe de Oziel Alves, por Sebastião Salgado

 

O massacre de Eldorado dos Carajás ficou conhecido internacionalmente. O prestigiado fotógrafo Sebastião Salgado, que no momento acompanhava uma ocupação no Rio Grande do Sul, sabendo da notícia, correu para a região de Parapuebas e cobriu o cortejo dos mortos, as fotografias percorreram o mundo denunciando o tratamento dispensado àqueles que lutavam por um pedaço de terra para sobreviver. Por isso, foi estabelecido o dia 17 de abril como o dia internacional da luta camponesa.

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Manifestação contra o massacre de Eldorado de Carajás, 23 de abril de 1996, Distrito Federal, Arquivo MST

 

O segundo massacre no governo FHC calou fundo em uma gestão comprometida com a imagem internacional. Após o fatídico dia, Fernando Henrique criou o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, reuniu-se com doze membros da Coordenação Nacional do MST que exigiram a punição do governador Almir Cabral e do Ministro da Justiça pelos assassinatos e a imediata desapropriação da Fazenda Macaxeira.

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Manifestação contra o massacre de Eldorado de Carajás, 23 de abril de 1996, Distrito Federal, Arquivo MST

 

Também foram expostas diretrizes para a realização da Reforma Agrária no país. Das exigências, apenas a desapropriação da fazenda foi cumprida. Dois anos depois, FHC instituía o Banco da Terra, uma política claramente de desmobilização da Reforma Agrária. Dos 150 policiais envolvidos no massacre só dois foram condenados e conseguiram prisão domiciliar logo depois.

Parte do latifúndio da Fazenda Macaxeira foi desapropriada e o assentamento rebatizado como 17 de abril. Contudo, as ameaças dos latifundiários continuaram. No dia 14 de março de 1998, quinhentas famílias tentaram ocupar a fazenda Goiás II em Paraupebas, foram expulsos e tentaram organizar um acampamento em outro local, sofreram uma emboscada dos pistoleiros e duas lideranças foram mortas: Onalício Araújo Barros, conhecido como Fusquinha, e Valentim Serra. Mais uma vez, os assassinos não foram punidos.13

Durante a campanha de 2018, Jair Bolsonaro foi até a Curva do S para exaltar os policiais que participaram da ação. “A terra vale um sonho? A terra vale infinitas reservas de crueldade, do lado de dentro da cerca. ”14

Há cem anos

Canudos

Contestado

Caldeirão (...)

Candelária

Carandiru

A pedagogia dos aços

Golpeia no corpo

Essa atroz geografia (...)

Colombiara

Eldorado dos Carajás não cabem

Na frágil vasilha das palavras

Se calarmos as pedras gritarão!

(A Pedagogia dos Aços – Pedro Tierra)


 

1 MARTINS, Adalberto Floriano Greco. A História do Brasil na ótica de regimes fundiários: A questão agrária da colônia à contemporaneidade. Porto Alegre, 2021. pp. 136

2 SEM TERRA vai ao Ministro. Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, Rio Grande do Sul, março a maio, 1985. pp. 8

3 STÉDILE, João Pedro. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. /João Pedro Stédile, Bernardo Mançano Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, coedição Fundação Perseu Abramo, 2012. pp.141

4 CANDIDATOS não falam em reforma agrária. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Rio Grande do Sul, out 1984. pp. 12

5 Lema e bandeira de luta do 1º Congresso dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

6 STÉDILE, op. cit., p 69.

7 MARTINS, op cit., p 185.

8 STÉDILE, op. cit., 71

9 FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST No Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. pp. 199

10 STÉDILE, op cit.; pp. 118

11 MARTINS, op cit.; pp. 202

12 FILGUEIRAS, Luiz. "História do Plano Real", apud MARTINS, Adalberto Floriano Greco op cit; pp. 205

13 Fernandes op cit. 210

14 Trecho do poema de Pedro Tierra: A pedagogia dos aços.

 

Referências Bibliográficas:
 

FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST No Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. pp. 199

MARTINS. Adalberto Floriano Greco. A História do Brasil na ótica de regimes fundiários: A questão agrária da colônia à contemporaneidade. Porto Alegre, 2021.

STÉDILE, João Pedro. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. /João Pedro Stédile, Bernardo Mançano Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, coedição Fundação Perseu Abramo, 2012.

 


Expediente

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