Ano 3 nº 10/2022: A conjuntura - Taylorismo e Educação - Um professor do século XXI

boletim3-10


A conjuntura ...

 

TAYLORISMO E EDUCAÇÃO

 

Um professor do século XXI

 

novo taylor

Montagem por Antonio B. Canellas

 

Primeiro como tragédia, depois como farsa, diz uma das muitas frases célebres de um Carlos Marques, que, para muitos, já foi superado, mas para quem, como ele, se debruça sobre seu próprio mundo, a materialidade histórica continua explicando os mecanismos que regem a organização social na qual ainda estamos dentro, da qual somos produzidos e portanto, produzimos também, através dos mecanismos dialéticos de produção e reprodução. 

Um desses mecanismos de reprodução notadamente é a instituição escolar. Como todo mecanismo de reprodução, seu funcionamento esteve sempre atrelado à estrutura da organização social a qual pertencia. Não é, deste modo, nada surpreendente que, quando olhamos para o campo educacional atual, percebemos o quanto as escolas particulares destinadas às classes A e B estão cada vez mais parecidas com os escritórios da moda, com suas paredes de vidro, espaços de coworking, lounges, e  como as grandes corporações recentemente abriram os olhos para essa ‘fatia do mercado’  e estão ferozmente ocupando esses espaços de formação, não somente pelo potencial que apresentam de gerar lucros absurdos,  mas pela possibilidade de, além de controlar a produção social, ter controle também sobre o processo de reprodução. 

Começam então a aparecer as palavras da vez: inovação, flexibilidade, metodologias ativas, personalização do ensino, e a oposição escola tradicional versus escola do futuro nunca foi tão explorada. A ideia de que a escola está preparando as próximas gerações para viverem em seus mundos, embora altamente falaciosa, é encantadora. Afinal, para que ensinar crianças a lidar com papel e caneta se o futuro é digital? É necessário ensinar para profissões que ainda nem existem, algumas dizem, no limite, para um mundo que não existe. A questão que fica é, se ele não existe, quem vai construir esse mundo? Sob quais bases? E a resposta seria bem simples - quem já está construindo, ou seja, as mesmas mega empresas que atuam na sociedade através do mercado financeiro, que se sustentam com o discurso neoliberal, e que estão agora dedicadas à reprodução social, além de serem a estrutura do que nos organiza como sociedade. E qual a novidade nisso?

 

A primeira como tragédia

 

São muitas as aulas de história que tenho na lembrança, em grande parte por causa de profissionais incríveis com quem tive, e tenho ainda,  o prazer de conviver. Uma delas é a que trata  a transição do mundo feudal para o mundo capitalista, especialmente sobre as corporações de ofício. Esses espaços são a síntese da transformação que estava a acontecer - por um lado, representam a organização comunitária de fazeres transmitidos em sua totalidade,  mas por outro, o início de uma organização setorizada e controladora de um mercado. Além disso, sempre me impressionava como ali entendíamos a origem de muitos dos sobrenomes que circulam “até” os dias de hoje, por entender a ligação entre a pessoa que executa e o que ela faz. Assim, Ferreira é a pessoa que trabalha com ferraria, ou Smith, na língua inglesa, Schumacher, em Alemão, ou Shoe Maker, em inglês, aquele que faz sapatos. Outro sobrenome que ficou conhecido pelo que fez foi Taylor. 

Frederick Taylor, ao organizar a produção de modo que se obtivesse o máximo com o mínimo de esforço, inaugurou uma modalidade de produção industrial em que a eficiência é o centro. O Taylorismo, como foi chamado, transforma o trabalhador em realizador de movimentos, uma vez que o divide por setores, de modo que todos que estão no mesmo lugar são responsáveis por uma só parte do processo produtivo. Enquanto nas corporações de ofício a setorização era organizada pelo produto, aqui ela é organizada pelas fases de produção do produto, deslocando o trabalhador de um processo, e tornando-o executor de uma só atividade. 

Uma sociedade na qual a produção é organizada dessa forma logo se desdobra em reproduzir também dessa forma. A escola “fábrica”, então, é aquela das grandes salas de aula, como 40 crianças, executando atividades a mando de professores que entram e saem apresentando fragmentos daquilo que se chama “Conhecimento”, o conjunto de saberes que valorizamos como sociedade. Olhar para os estudantes como produto, ou para os estudantes como os trabalhadores, nesse contexto, tanto faz. A lógica que impera é a mesma. 

 

A segunda como farsa

 

No hall de sobrenomes que configuram as atividades laborais, Taylor, do latim Taliare - cortar, é aquele que corta, especificamente roupas, ou seja, o que conhecemos em nossa língua como “Alfaiate”. No entanto, o modelo taylorista não poderia ser mais diferente do que é uma alfaiataria. Mas agora, não como sobrenome, e sim como prática, o taylorismo volta a ser o nome da vez. Há uma expressão em língua inglesa que diz “taylor - made”, e a tradução seria algo como “feito sob medida”, já que o alfaiate corta a roupa de acordo com o corpo de cada cliente. Essa é a ideia da moda, fazer o ensino sob medida. 

Na fábrica, não há espaço para a alfaiataria, trata-se de produção em massa. As oficinas ficam para a gente diferenciada, para aqueles que podem pagar caro para ter algo exclusivo, que demanda tempo, o tipo de tempo que a fábrica não tem. Essa ideia de exclusivo, de algo personalizado, sob medida, é a medida do capitalismo tardio. Embora ainda existam,  as grandes fábricas se afastam da nossa percepção sensorial e subjetiva, e o que passamos a ver são os escritórios, com paredes transparentes, mesas de sinuca, onde cada um é valorizado por ser quem é, onde todos constituem uma família, o que também contribui para o apagamento dos limites entre público privado, ideologia dominante em nosso tempo.Há a promessa de respeito pelas diversidades, que inclusive passam a ser pauta política, e o design ganha importância e centralidade, já que os desenhos precisam ser customizados. Nem todos precisam estar no escritório ao mesmo tempo, afinal, uns são mais matinais, outros mais noturnos. A palavra da vez, “flexibilização”, está aqui de várias formas  - dos lugares, das horas, das relações de trabalho. 

A tecnologia digital acompanha a ‘personalização’,  com os chamados algoritmos, que através dos dados, literalmente “dados” por nós às corporações, nos oferece o que cada um de nós precisa. Os serviços de streaming, por exemplo, são individualizados, de modo que uma página não é igual a nenhuma outra no mundo, as comunicações tratam-nos pelo primeiro nome, trazem sinais de afeto, falando sobre as nossas necessidades e, claro, oferecendo serviços exclusivos para lidar com elas. O comum causa ojeriza, tanto aquele que se opõe ao extraordinário, quanto aquele que se opõe ao individual. 

Quando esse mundo olha para a escola e vê carteiras enfileiradas, crianças empoleiradas, todas fazendo as mesmas coisas ao mesmo tempo, vestidas do mesmo jeito,  não vê ali seu reflexo.  Tradicional e atrasada, a escola passa a ser alvo do “pathos pelo novo”, e a educação deve ser “do futuro”. Quem determina o que significa ser do futuro, nesse caso, são as mesmas condições que determinaram o passado, e continuam determinando o presente. Com o discurso da mudança, atinge-se a reprodução social através da ideia de reorganização da escola. 

De fato, são muitas as questões que a instituição escolar deve sempre se fazer, buscando a melhor forma de se organizar. Mas não podemos esquecer que essa melhor forma é um valor, que nem sempre é evidente, menos ainda compartilhado. 

 

Reforma Trabalhista, Reforma do Ensino Médio

 

Assim como o primeiro taylorismo se valeu da ciência da época para o capital, o segundo também o faz, com a promessa de formar sujeitos críticos, apropriados de si mesmo, com seus itinerários, aprendizagens por projetos e projetos de vida. 

Uma dessas promessas de futuro vem em educar para a solução de problemas. O mundo deve ser visto como objeto de investigação - uma ideia nada nova, aliás - mas o olhar que se detém sobre esse mundo está em busca de problemas para serem resolvidos. A resolução requer o desenho de pesquisas, busca de dados, discussões sobre eficiência e, ao final, a produção de algo que seja socialmente relevante. Essa é uma das  fórmulas que promete o acesso ao futuro, o novo, que ao mesmo tempo, é desenvolvido com autoria, ou seja, por cada estudante, ou grupo de estudantes, de acordo com seus  próprios interesses. Por vezes, aparece como o único modelo capaz de atrair atenção dos jovens da geração digital, que precisam de mais estímulo e tarefas em períodos mais curtos para se interessarem por algo. 

Olhar para o mundo em busca de problemas não é, em si, algo ruim. No limite, é o que chamamos de Ciência. Encontrar um problema é o primeiro passo de uma pesquisa. No entanto, esse olhar está sendo educado para uma noção específica de “problema”, e mais específica ainda de “solução”. A situação de fome de uma comunidade, por exemplo, pode ser lida como problema a ser resolvido. Estudantes identificam o problema, sentam com seus pares, elaboram um fluxograma de doações, projetos de marketing para atrair investimentos, cálculos para determinar como empregar os recursos, e organizam a distribuição de cestas básicas. Projeto com produto final, socialmente relevante, que deu a oportunidade para que alunos e alunas tomassem as rédeas de sua própria aprendizagem, que provoca reflexão sobre a sociedade, formando cidadãos críticos. Sem dúvida, absolutamente, a doação de alimentos é relevante, ainda mais quando o governo nos põe em uma crise que deixa mais da metade da população em situação de insegurança alimentar. Entretanto, enxergar a fome como problema a ser resolvido é a expressão de um olhar superficial, forjado no pragmatismo de uma lógica imediatista. A fome não é o problema a ser resolvido, ainda mais no terceiro maior produtor de alimentos do mundo, mas é sintoma de problemas maiores, como a concentração de terras, a má distribuição de renda, a divisão internacional do trabalho, entre outras questões que podem ser levantadas. Embora estejam encravados em nosso tecido social, os problemas tornam-se invisíveis para os olhos formados pela lógica utilitarista, que passa a ver como problema o que é sintoma, como solução a nada estrutural filantropia. Vale lembrar, também, que para quem enxerga pessoas em situação de rua como problema, a arquitetura hostil se torna solução. Da Ciência, com “C” maiúsculo, passamos para a execução de tarefas, e o currículo escolar deve ser organizado, então, por competências, o que estudantes devem aprender a fazer. A escola deve sim ensinar a fazer, mas não deve deixar de questionar os fazeres, e para isso, é preciso estimular o pensamento científico, que depende do saber fazer, mas demanda precisão conceitual, precisa de conteúdo. 

Outra tendência do mercado da educação é a compreensão de como funciona o nosso processo de pensamento, ou seja, do que acontece em nossos cérebros quando estamos aprendendo. Resumidamente, a resposta vem sendo encontrada em um projeto da Universidade de Harvard, o Project Zero, que propõe maneiras de lidar criticamente com a complexidade dos potenciais que nós, humanos, temos. Uma dessas maneiras é um projeto chamado Visible Thinking, ou Pensamento Visível, uma abordagem conceitual que nomeia e organiza os nossos processos de pensamento, facilitando o desenho de propostas educativas. Através das chamadas rotinas de pensamento, torna-se visível como precisamos abordar os objetos de conhecimento, porque nos diz como opera nossa capacidade cognitiva de conhecer. Rotinas descritas como, por exemplo, “ver, pensar, perguntar” - primeiro a descrição do que se vê, depois a reflexão do que se vê, e então o levantamento de indagações sobre o que se vê - não só nomeiam os processos de pensamento, mas ao fazerem isso, inauguram culturas de pensamento específicas que vão se tornando, de fato, modos de pensar. Partindo do pressuposto que “linguagem é poder”, o ato de nomear algo também inscreve esse algo na realidade, e um objeto inscrito na realidade é sempre inscrito por alguém, em algum contexto, servindo a algum propósito. Assim, quem está nomeando como pensamos a educação? Como? E, mais importante, com que propósito? 

A reforma da educação, que vem sendo implementada de várias maneiras - com a BNCC, a Reforma do Ensino Médio, as licitações de material didático, privatizações em pílulas, como os vouchers da educação infantil - promete a renovação, a reflexão sobre aquela velha escola que não funciona mais, através de novos meios, de novas abordagens - menos profissionais detentores de conhecimento e mais facilitadores, menos conteúdos engessados e mais possibilidades de aprender a fazer, menos determinações e mais poder de escolha para adolescentes que passam a ser, então, gerentes de si mesmos. É a formação do sujeito neoliberal, com o espírito empreendedor necessário para o desenvolvimento “do futuro”, com as competências necessárias para o mercado de trabalho. 

Com a Reforma Trabalhista, já temos uma boa ideia de como é esse futuro. Sendo “flexibilização” uma das palavras da vez, como já citado, os direitos trabalhistas são retirados, em nome de mais possibilidades. A CLT dá lugar ao MEI, afinal, para que trabalhar para outro quando pode-se trabalhar para si mesmo? Empreender é sinal de ousadia, coragem, não conformidade, resiliência, desejo de fazer seu próprio destino - valores dessa nova sociedade que se desenha sem muitas novidades estruturais. A escola, então, passa a fazer o que é necessário, formar a mão de obra que vai se acostumar a não ter em seu horizonte uma jornada de trabalho fixa, com direito a descanso e remuneração digna, que vai se auto gerenciar, da maneira mais resiliente possível. 

Mais verdadeira é essa afirmação para as classes mais baixas. As escolas de elite fazem tendência, que é ampliada para toda a rede, mas, obviamente, de maneira desigual. Enquanto, para os mais abastados, são oferecidos itinerários formativos de toda a sorte - desenvolvidos, muitas das vezes, através de trabalho não remunerado- ampliam-se as possibilidades do saber fazer com espaços maker, estudos de campo e viagens, para os mais pobres, com o sucateamento crescente das políticas públicas, até essa ilusão é limitada. Sabemos que a escola ‘fábrica’ ainda impera entre as escolas públicas, mas essas serão obrigadas a implementar a lógica dominante, só que sem os mesmos recursos. É o aprofundamento das desigualdades sociais, caráter estrutural do nosso sistema. 

 

A Escola do século XXI 

 

O novo não precisa ser, de fato, novo, mas sim se apresentar como tal. As chamadas escolas do futuro só são assim vistas porque assim se apresentam, e passam a ser conhecidas como aquelas que não são tradicionais. Aliás, “tradição” vira quase um palavrão, palavra a não ser enunciada. O chamado “inovador” não está criando algo novo, nem mesmo testando os limites do que conhecemos como sociedade, impulsionando e cultivando questionamentos, mas fazendo exatamente o que fez toda instituição reprodutora até agora - formar sujeitos com as características necessárias para reproduzir o modelo vigente, com a capacidade  de parecer fazer justamente o contrário.

Quem trabalha com educação já deve, em algum momento, ter ouvido a indagação que abre caminho para a reflexão do novo - “E se um viajante do século XIX chegasse aos nossos tempos, o que pensaria quando olhasse para a escola e visse a mesma coisa?”. Esse convite ao pensamento indica a necessidade de repensar um modelo de organização escolar, mas não diz nada além disso. Repensar, então, toma a direção que a isso queira-se dar, e o que se apresenta como o novo, necessário, nada mais é do que a padronização de um sujeito específico, que se vê como único, se entende como especial, mas tem muito mais em comum com o operário do século XIX do que com o CEO do século XXI. 

 


Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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