Ano 3 nº 12: Mundo acadêmico - O Brasil na Segunda Guerra Mundial - Luiz Pericás

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Mundo acadêmico ...

O BRASIL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL[1]

 

Luiz Bernardo Pericás 

Professor do Departamento de História – USP

FEB

Cartaz DIP. Fonte: http://memorialdademocracia.com.br/card/a-cobra-esta-fumando

 

Em Gaggio Montano, na região da Emilia-Romagna, encontra-se o monumento Liberazione: monovolumi a ritmi aperti, uma grande escultura da paulista Mary Vieira em homenagem aos soldados brasileiros que lutaram na Itália na Segunda Guerra Mundial. Construída em forma de dois arcos de mármore branco de Carrara se cruzando sobre uma base em granito preto baiano, a obra, de sete metros de altura e 35 metros de diâmetro, começou a ser feita em 1999 (ano do lançamento de sua pedra fundamental) e foi inaugurada em junho de 2001. É uma lembrança constante dos feitos daqueles homens que atravessaram o oceano para arriscar a própria vida na luta contra o nazifascismo, na última etapa do maior conflito da história.[2] 

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Monumento à FEB em Gaggio Montano

É verdade que nossa participação no teatro de operações do Mediterrâneo, de forma geral, foi bastante modesta se comparada àquela das potências envolvidas nos acontecimentos. Mas, como acredita o historiador Frank D. McCann, ainda que seja certo que a FEB não tenha alterado o curso da campanha italiana ou o da guerra na Europa, de maneira geral, teve importância principalmente para a história das relações entre Estados Unidos e Brasil e para a própria trajetória política e militar de nosso país,[3] que enviaria 25.334 febianos para o Velho Continente (ainda que destes, em torno de 16 mil fossem combatentes e o restante, integrantes de unidades de recompletamento e substituição de efetivos, assim como de estruturas administrativas e logísticas).   

O “primeiro escalão” chegou a Nápoles em julho de 1944 e em pouco tempo entraria em ação. A atuação nos campos de batalha, de acordo com Joel Silveira, durou sete meses e dezenove dias em duas frentes, a do Rio Serchio e a do Reno, ao norte de Pistoia (neste segundo caso, enfrentando o terreno difícil e escarpado da região, um frio intenso e duros embates contra as tropas alemãs), ou seja, a partir do momento em que um batalhão do 6º Regimento de Infantaria (liderado pelo capitão Ernani Ayrosa da Silva, sob ordens do general de brigada Euclydes Zenóbio da Costa) começou seu deslocamento entre Pietrasanta e Lucca, no dia 16 de setembro de 1944 (que culminou com a conquista de Camaiore) até 2 de maio de 1945, quando o 3º Batalhão do 11º Regimento de Infantaria cessaria de vez suas atividades bélicas em Vercelli, perto de Novara[4] (o general Carlos de Meira Matos e o estudioso Luis Felipe da Silva Neves, por sua vez, consideram que foram 239 dias de “contato íntimo” com o inimigo, tendo como data inicial 6 de setembro de 1944). Neste período, enfrentaram dez divisões alemãs e três italianas, sendo responsáveis por fazer mais de 20 mil prisioneiros. 

Os pracinhas foram incorporados ao IV Corpo do US Army (que também recebia uma divisão sul-africana, outra inglesa e duas norte-americanas, uma das quais, blindada, assim como a 10ª Divisão de montanha), comandado pelo general Willys Dale Crittenberger, este por sua vez subordinado ao V Exército dos Estados Unidos, chefiado por Mark Wayne Clark. A quantidade de brasileiros que perderam a vida na ocasião também varia de acordo com cada autor: 443 para Silveira, 451 segundo Meira Matos e 465 de acordo com Silva Neves. 

Em números absolutos, portanto, a atividade da FEB foi bastante limitada. É só recordar que a I Divisão de Infantaria febiana representava, na prática, somente 1/23 dos soldados no teatro de operações mediterrâneo, o equivalente a 4% do total das forças terrestres naquela região.[5] Se considerarmos o quadro geral dos combatentes em toda a Europa, a presença brasileira foi mínima, tanto em número de baixas como de tropas. Mas a importância da participação do país na guerra pode ser vista de outro ângulo. O historiador Caio Prado Júnior, por exemplo, iria exaltar a importância dos pracinhas. Em novembro de 1944, o diretor de Sombra, Octavio Thyrso, enviou ao autor de URSS, um novo mundo, um questionário sobre suas impressões em relação ao Brasil de então. Para CPJ, nosso principal “ativo” seria justamente a participação das tropas da FEB na Itália em favor da grande causa daqueles dias (“o esmagamento do fascismo e da opressão”), algo que constituiria, em sua opinião, uma “honra” e “glória” para os brasileiros.[6] Punha suas esperanças em 1945, ano em que acreditava ocorrer o fim do conflito europeu e o colapso de todos os fascismos e ditaduras: “o destino do mundo e de todos os países voltará a ser conduzido pela vontade popular, e não por oligarquias ou grupos arvorados em Führers, Duces ou Chefes... o mundo de amanhã não será de ditadores, e a humanidade entrará numa nova fase de tranquilidade e progresso. O Brasil terá sua parte nesta nova fase, se os brasileiros souberem levar a cabo a missão que ora encetaram nos campos de batalha e mantiverem viva a chama da liberdade e da democracia”.[7] O conflito, portanto, havia sido importante para o combate ao autoritarismo e totalitarismo no exterior... e também indicava o que deveria ser feito por aqui... A luta contra o fascismo (de modo geral) e contra o Estado Novo (especificamente) ganhava impulso, com toda a carga simbólica inerente, a partir da atividade febiana.  

Ainda assim, o envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial continua pouco conhecido para boa parte da nova geração. Mesmo que vários livros e artigos tenham sido escritos e publicados sobre a epopeia dos pracinhas da FEB, muitos continuam a ignorar os detalhes da atuação de nossas tropas no cenário europeu. 

Vale lembrar que alguns expedicionários, na época, jovens anônimos, acabariam se tornando importantes intelectuais nas décadas seguintes. Boris Schnaidermann, que saiu do Rio de Janeiro no começo de julho de 1944, iria para Barga, com o objetivo, segundo ele, de dominar, junto com seus companheiros de armas, as montanhas da região, para em seguida entrar no vale do Pó;[8] Jacob Gorender, por sua vez, partiu de navio para Nápoles em setembro de 1944, onde participou dos ataques a Monte Castello e Montese (ele chegou, inclusive, a frequentar a sede do PCI em Pistoia, na Toscana);[9] e até mesmo Celso Furtado, então com 24 anos de idade, que em 8 de fevereiro de 1945 embarcou no General Meigs ao lado de seis mil homens rumo ao front italiano (lá escreveria suas “Notas de um diário” e diversas narrativas curtas sobre aqueles episódios).[10] 

Outros personagens, não tão conhecidos do grande público, deixariam suas memórias e impressões daquele período, como Xavier de Oliveira e seu A FEB por um soldado;[11] Manoel Thomaz Castello Branco, O Brasil na II Grande Guerra;[12] Joaquim Xavier da Silveira, Cruzes brancas: diário de um pracinha;[13] Agostinho José Rodrigues com Segundo pelotão, oitava companhia;[14] Adhemar Rivermar de Almeida, Montese: marco glorioso de uma trajetória;[15] Aguinaldo José Senna Campos, Com a FEB na Itália;[16] e Olívio Gondim de Uzêda com Crônicas de guerra.[17] Isso para não falar nos relatos jornalísticos, de periodistas como Rubem Braga (correspondente do Diário Carioca, que depois editaria suas Crônicas de guerra na Itália),[18] Raul Brandão (Correio da Manhã) e Egydio Squeff (O Globo), além de Joel Silveira (Diários Associados) e Thassilo Mitke (Agência Nacional), estes dois últimos, autores de A luta dos pracinhas.[19] 

É claro que não faltaram os críticos, como o general Floriano de Lima Brayner[20] ou Demócrito Cavalcanti de Arruda.[21] E talvez o mais contestado deles, William Waack, responsável por um trabalho bastante polêmico, As duas faces da glória: a FEB vista pelos seus aliados e inimigos.[22] 

Já o meio acadêmico, tanto o brasileiro como o estrangeiro, discutiu o tema em livros, artigos, capítulos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Do norte-americano Frank D. McCann (professor emérito da Universidade de New Hampshire) a Luis Felipe da Silva Neves, docente da UFF, foram vários aqueles que se debruçaram sobre nossa participação no conflito. Mesmo um intelectual como Nelson Werneck Sodré ou mais recentemente, Paulo Ribeiro da Cunha (especialista em esquerda militar) também podem ser citados como estudiosos que se debruçaram sobre o assunto (Cunha dedicou um capítulo inteiro sobre a FEB em seu Militares e militância).[23]     

O livro O Brasil na Segunda Guerra Mundial: uma página de relações internacionais (Editora 22, 2015), da historiadora Teresa Isenburg, professora titular da Università degli studi de Milão, é mais uma importante contribuição nesta área. Ainda que Isenburg afirme se limitar a analisar a situação política interna brasileira em seus estreitos vínculos com as relações internacionais, ela vai além. A partir da construção do cenário político-econômico local e da interação de algumas personalidades daquele momento (como Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha, Eurico Gaspar Dutra e Pedro Aurélio Góis Monteiro), a autora parte para um estudo que inclui vetores complexos da política externa juntamente com diferentes aspectos da história militar. Ou seja, um panorama amplo e detalhado de uma época. A contextualização do painel político, neste sentido, é fundamental: 

 

“Os três lustros que vão de 1930 a 1945 foram de mudanças importantes e irreversíveis para o Brasil. O movimento militar conspirativo, cuja data-símbolo é o 3 de outubro 1930, deslocou o predomínio político dos estados de São Paulo e de Minas Gerais para outras áreas: o Sul, principalmente o Rio Grande do Sul, que forneceu quadros políticos bastante fortes e o Nordeste pelos complexos equilíbrios das alianças políticas. O conflito principal que se desenvolveu naqueles 15 anos foi entre duas linhas antagônicas: a menor ou maior centralização do poder central diante da autonomia dos Estados e o esforço de submeter as elites regionais aos interesses gerais. Como consequência, houve a redistribuição dos recursos, golpeando o setor do café paulista que havia gozado de fartos subsídios pelo menos por 40 anos. Para atingir o objetivo da centralização, o sistema político foi transformado num regime de exceção e, depois, numa pesada ditadura, institucionalizada em 1937 com o Estado Novo, durante o qual não somente o parlamento foi dissolvido, como todos os partidos foram proibidos. (...)  

De forma esquemática pode-se delinear as bases do poder de Vargas em alguns pontos políticos e grupos sociais. A propaganda ideológica anticomunista, ligada a uma repressão capilar aplicada através da tortura, com torturadores tecnicamente preparados; o Tribunal de Segurança Nacional, instituído em 11 de setembro de 1936, instrumento da aplicação da Lei de Segurança Nacional de 4 de abril de 1935; a decisão de promover a industrialização, com empresas nacionais, em primeiro lugar, e as siderúrgicas, mesmo buscando capitais internacionais; a construção de um sistema social avançado para os trabalhadores da indústria, destinado a buscar consenso para a sua figura. Disso nasce a dificuldade de mudar o que se encontrava no vértice da pirâmide de poder e a necessidade do populismo, quer dizer, a absoluta eliminação da mediação política”.[24] 

 

O papel dos guerrilheiros locais e combatentes de filiação comunista (e sua relação e contatos com os febianos) tem destaque. Nesse sentido, Isenburg aponta os holofotes e lança luzes nos aspectos menos discutidos na historiografia tradicional, ao mesmo tempo em que se preocupa com as conexões entre os partigiani e os pracinhas, em ambos os casos (ainda que com experiências e preparo político-ideológico distintos), representantes das classes populares em luta contra os fascistas (aspectos da questão racial também estão incluídos em suas páginas). Ainda assim, “a colocação de cidadãos comuns ao lado de soldados de profissão, a comparação com o comportamento e o tratamento militar-hierárquico nos agrupamentos de outras nacionalidades, particularmente os estadunidenses, mas também os italianos enquadrados entre os aliados, o reconhecimento militar e político da parte dos sujeitos internacionais fortes, como os altos comandos aliados, daqueles confusos grupos irregulares com declaradas ideias de justiça social, compostos pelos guerrilheiros italianos, prisioneiros russos ou iugoslavos, as notícias das vitórias do Exército Vermelho, talvez o eco do que acontecia na longínqua China, tudo isso não devia deixar tranquilo o vértice do exército brasileiro”.[25] Não se pode deixar de mencionar também a preocupação da autora em mostrar os aspectos da vida cotidiana daqueles homens: os alojamentos, transportes, condições sanitárias e de higiene, os custos da guerra, os equipamentos, uniformes, a alimentação, as doenças respiratórias e até as consequências psicológicas do conflito...   

Utilizando depoimentos, documentos e vasta bibliografia, Isenburg constrói um texto de várias vozes, em que a narrativa e análise se completam, apresentando, assim, um painel bastante rico daquele momento histórico. Um livro muito interessante, que certamente será de grande utilidade para os estudiosos do assunto. 

 

[1] Versão do prefácio publicado originalmente em Teresa Isenburg. O Brasil na Segunda Guerra Mundial: uma página de relações internacionais. São Paulo: Editora 22, 2015.  

[2] Ver Carmen Lúcia Riogoni, “Mary Vieira e os 70 anos da conquista de Monte Castello”, in Gazeta do Povo, Curitiba, 21 de fevereiro de 2015, http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/mary-vieira-e-os-70-anos-da-conquista-de-monte-castello-ek3stgdjeowy22bxhjhqgvhou; e Carmen Lúcia Riogoni, La Forza di Spedizione Brasiliana (FEB), memória e história: marcos na monumentalística italiana, dissertação em História pela UFPR, http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/25061/D%20%20RIGONI,%20CARMEN%20LUCIA.pdf?sequence=1.   

[3] Ver Frank D. McCann, “A Força Expedicionária Brasileira na campanha italiana, 1944-1945”. In: Joel Silveira e Thassilo Mitke. A luta dos pracinhas. Rio de Janeiro: Record, 1993, pág. 267.    

[4] Ver Joel Silveira, in Ibid, p. 20-21.   

[5] Ver Carlos de Meira Matos, “A FEB: sua dimensão e sua glória”, in Joel Silveira e Thassilo Mitke, A luta dos pracinhas, p. 250. 

[6] Ver carta de Caio Prado Júnior a Octavio Thyrso, São Paulo, 8 de novembro de 1944, in acervo de Caio Prado Júnior no IEB/USP, código de referência CPJ-CP026. 

[7] Ibid. 

[8] Ver Boris Schnaidermann, “Minha guerra: lembranças de um soldado”. In: Osvaldo Coggiola (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo: Xamã, 1995, p. 283-292.   

[9] Ver Mário Maestri, “Jacob Gorender”. In: Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco (Orgs.). Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 254. 

[10] Ver Rosa Freire d’Aguiar, “Os anos de formação”. In: Rosa Freire d’Aguiar (Org.). Celso Furtado, anos de formação 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014, págs. 17 a 20, e “Documentos de Celso Furtado: a guerra, 1945-1946”, in Ibid, p. 245-273.   

[11] Ver J. X. da Silveira. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 

[12] Ver Manoel Thomaz Castello Branco. O Brasil na II Grande Guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960. 

[13] Ver Joaquim Xavier da Silveira. Cruzes brancas: diário de um pracinha. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1963. 

[14] Ver Agostinho José Rodrigues. Segundo pelotão, oitava companhia. São Paulo: Edameris, 1969.  

[15] Ver Adhemar Rivermar de Almeida. Montese: marco glorioso de uma trajetória. Rio de Janeiro: Bibliex, 1985. 

[16] Ver Aguinaldo José Senna Campos. Com a FEB na Itália. Rio de Janeiro: Bibliex, 1970. 

[17] Ver Olívio Gondim de Uzêda. Crônicas de guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1948. 

[18] Ver Rubem Braga. Crônicas de guerra na Itália. Rio de Janeiro: Record, 1985. 

[19] Ver Joel Silveira e Thassilo Mitke. A luta dos pracinhas. Rio de Janeiro: Record, 1993. 

[20] Ver Floriano de Lima Brayner. A verdade sobre a FEB: memórias de um chefe de Estado-Maior na campanha da Itália (1943-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 

[21] Ver Demócrito de Cavalcanti Arruda et al. Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB. Rio de Janeiro: Cobraci Publicações, 1949.   

[22] Ver William Waack. As duas faces da glória: a FEB vista pelos seus aliados e inimigos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 

[23] Ver Paulo Ribeiro da Cunha. Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 195-212.   

[24] Ver Teresa Isenburg. O Brasil na Segunda Guerra Mundial: uma página de relações internacionais. São Paulo: Editora 22, 2015, p. 12, 13 e 17.   

[25] Ibid, p. 59.