Ano 3 nº 03/2022 (Edição especial): Mundo acadêmico - As Mulheres na SDS ou Em Causa Própria - Ulrike Meinhof

boletim3-03


Mundo acadêmico ...

 

No Congresso da SDS em Frankfurt [am Main] no outono [europeu] de 1968 as camaradas arremessaram tomates aos camaradas

 

AS MULHERES NA SDS

OU

EM CAUSA PRÓPRIA[1]

 

Ulrike Meinhof

(tradução de Felipe Castilho de Lacerda)

 

Ulrike

Ulrike Meinhof, 1964

 

Que tomates e ovos sejam muito adequados para alcançar a esfera pública quando, de outra forma, a questão seria legada ao silêncio mortal, é algo satisfatoriamente conhecido desde a visita do Xá. Como realçador de argumentos, provaram-se já muitas vezes úteis. Mas os estudantes, que então mancharam o Xá, não agiam em causa própria, mas como representantes dos camponeses persas, que não podiam se defender naquele momento, e os tomates podiam servir apenas como símbolos de projéteis melhores. Se considerávamos isso bom, tratava-se de uma questão do conhecimento conquistado com esforço, de escolha própria, de identificação por escolha própria. O mundo da CIA e do Xá não será modificado com tomates; aquilo sobre o que essas pessoas podiam refletir, eles já refletiram.

Os tomates que voaram sobre a Conferência de Delegados da SDS [União Alemã dos Estudantes Socialistas] de Frankfurt [am Main] não possuíam qualquer caráter simbólico. Os homens, cujos ternos (que mulheres vão lavar mais tarde) foram sujos, precisavam ser obrigados a refletir sobre coisas sobre as quais não haviam ainda refletido. Não se tratou de um espetáculo promovido para uma imprensa que tudo silencia, mas sim daquilo que eles realmente levaram na cabeça. E a mulher que jogou os tomates, e aquelas que forneceram a legitimação para tanto, elas não discursavam com base em experiências emprestadas, esforçadamente compartilhadas, elas falavam e agiam, falando por incontáveis mulheres, por si mesmas. E elas estavam pouco ligando se o que elas tinham a dizer correspondia ao grande nível teórico que se costuma encontrar na SDS, e se acertariam tudo em cheio, ou ainda se a Spiegel concordaria com elas; mas elas teriam sufocado, se não houvessem estourado. Sufocam, contudo, diariamente milhões de mulheres com o que têm que engolir, e contra o que comem pílulas – Contergan, se tiverem azar[2] – ou batem em seus filhos, arremessam colheres nos maridos, gemem e fecham antecipadamente as janelas, quando são razoavelmente bem criadas, de forma que ninguém ouça aquilo que todos sabem: que, como vai, não pode continuar.

O conflito ocorrido em Frankfurt, que se tornou novamente público após não sei quantos séculos – se é que já foi dito algum dia – não é de forma alguma inventado, sobre se comportar assim ou assado, não é nada reservado; quem tem família o conhece de cor, apenas aqui foi, pela primeira vez, colocado às claras que essa questão privada não é nada privada.

O redator da Stern, que habilmente desnatou a questão – há anos estaria latente na SDS o conflito sobre a opressão das membras –, só não notou que a discussão não era absolutamente sobre a opressão das mulheres na SDS, mas, na realidade, sobre a opressão de sua própria mulher, em sua própria família, por ele mesmo. O redator da konkret, que vivenciou a questão dos tomates como um incidente entre outros na Conferência de Delegados, e alcunhou essas mulheres, que refugam expressamente o chamado autoritário ao legislador, de “sufragistas [Frauenrechtlerinnen]”; também ele, apesar de igualmente incluído [na ação crítica das militantes], não se sentiu tocado, talvez por não ter sido atingido. E o conselho de Reimut Reich para as mulheres, de tão simplesmente abdicar das relações sexuais, confirmou a acusação de Helke Sander de que os homens ainda negam totalmente o conflito, ele também quis circunscrever a questão àquela esfera privada da qual ela acabara de eclodir por meio de palestras com tomates.

Essas mulheres de Berlim em Frankfurt não querem mais colaborar com o jogo, pois sobre elas recai todo o fardo da criação das crianças, mas elas não possuem qualquer influência de onde, para onde, para que as crianças são educadas. Elas não querem mais se enfurecer, porque, por conta da criação das crianças, elas precisem parar de estudar ou nunca tenham tido acesso à formação, ou que não possam exercer sua profissão, deixando tudo isso suas marcas, pelas quais, via de regra, elas serão novamente responsabilizadas. Elas deixaram claro que a inconciliabilidade entre a criação das crianças e o trabalho externo ao lar não é sua renúncia pessoal, mas questão da sociedade, que fundou essa inconciliabilidade. Elas esclareceram de todas as formas. Como os homens não quiseram entender, levaram tomates na cabeça. Elas não ficaram se lamentando e não se apresentaram como vítimas que demandavam compaixão e compreensão, e uma máquina de lavar louças, e direitos iguais, e blábláblá. – Elas começaram a analisar a esfera privada, principal lugar onde vivem, cujos fardos são seus fardos; elas perceberam que os homens são objetivamente, nessa esfera privada, os encarregados da sociedade capitalista para a opressão da mulher, mesmo que eles não o queiram ser subjetivamente. Como os homens não conseguiram compreender isso, levaram tomates na cabeça.

A palavra não deve ser dada à briga conjugal permanente, mas à publicidade da briga, lá onde a comunicação e o entendimento podem ser estabelecidos entre aqueles que alcançam objetos arremessados ​​na emoção, para que as discussões tenham chance de acontecer e não apenas a superioridade do homem por conta de sua posição socialmente superior.

Se Frankfurt foi um sucesso para as mulheres, isso ocorreu justamente porque algumas coisas já foram chamadas por seus nomes, porque sucedeu praticamente sem ressentimento e lamentações, porque a porção de mulheres que fizeram aquilo em Frankfurt já possuem alguma organização por trás, e também alguns meses (não anos, como diz Bissinger) de trabalho de mulheres, experiências com possibilidades e dificuldades.

Agora, não pode ser do interesse das mulheres que a SDS faça sua a questão das mulheres. Se ela apoiar as mulheres, bom, mas sem qualquer paternalismo. A reação dos homens na Conferência de Delegados, bem como aquela de seus ainda tão benevolentes relatores, mostrou que ainda se terá de disparar caminhões de tomates até que ali algo alvoreça. A consequência de Frankfurt só pode ser que mais mulheres reflitam sobre seus problemas, organizem-se, aprendam a trabalhar e formular suas questões e, para tanto, não demandam de seus maridos nada mais que não lhes incomodarem nessa questão, e que lavem sozinhos suas camisas manchadas de tomate, talvez porque ela tem agora reunião do Conselho de Ação para Libertação das Mulheres. E ele deveria deixar para lá suas observações idiotas sobre o nome esquisito da associação, pois aquilo para o que a associação se destina surgirá do trabalho que ela será capaz de realizar. Que se colocará para ela montanhas de trabalho necessário e árduo, não resta mais nenhuma dúvida desde Frankfurt.

 

[1] Traduzido do alemão ao português brasileiro a partir de: Ulrike Meinhof, “Die Frauen im SDS oder In eigener Sache”, em konkret, n. 12, 1968 apud Ulrike Meinhof, Dokumente einer Rebellion: 10 Jahre konkret-Kolumnen, mit einem Beitrag „Wahres über Ulrike“ von Renate Riemeck und einer Vorbemerkung von Klaus Rainer Röhl, konkret Buchverlag, Hamburg, 1972, p. 68 (Reihe „konkret faksimile“).

[2] Contergan foi um medicamento lançado nos anos 1950 com o princípio ativo da talidomida. Recomendado para tratar transtornos de ansiedade e de sono, foi também muito utilizado por gestantes contra dores e mal-estar provenientes da gravidez. No início dos anos 1960, o medicamento passou a ser conhecido pelo escândalo a ele relacionado, ao se descobrir que a substância era causadora de defeitos por má formação nos fetos.

 


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