Ano 3 nº 04/2022: Dossiê Marxismo e Independência - Gabriel Rocha; Lincoln Secco; Clara Schuartz; Alice Rossi; Gilda Prado

boletim3-04


 

DOSSIÊ MARXISMO E INDEPENDÊNCIA

 

1823

Antônio Parreiras, O Primeiro Passo para a Independência da Bahia, 1931.

Em 2021, o GMARX teve um cronograma de leituras sobre a independência do Brasil. Pensar esse processo foi uma preparação para a efeméride deste ano - o bicentenário -, munindo-nos das armas da crítica para combater o fascismo e sua tendência a evocar um passado supostamente grandioso das classes dominantes que precisaria ser resgatado.

A partir desses debates, elaboramos um dossiê com alguns dos principais autores e autoras lidos e que tem em comum a chave do marxismo, do materialismo histórico. E acrescentamos um texto que dialoga com as efemérides dos 150 anos, tema que apareceu em inúmeras de nossas reuniões.

Em um ano de muitas comemorações, a um marxista, pode parecer estranho escolher justamente essa como ponto de elaboração crítica e não a Semana de 1922, ou o centenário do PCB, também muito importantes. No entanto, como escreveu Alice Rossi em um dos textos publicados aqui, "conhecê-lo e evocar a sua memória, de forma crítica e não comemorativa, nos revela as raízes do grande caminho que o povo brasileiro ainda precisa seguir rumo à emancipação." É nesse sentido que trazemos uma série de textos sobre interpretações desse momento da nossa história, autores e autoras nem sempre lidos nas fileiras universitárias e que são essenciais à compreensão desse espaço chamado Brasil.

Boa leitura!

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OS SUBALTERNOS E A ESCRAVIDÃO NO PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA: INTERPRETAÇÕES DE CLÓVIS MOURA - Gabriel dos Santos Rocha | doutorando em História Econômica - USP

 

“Assim, devemos o país ‘gigante pela própria natureza’, não à natureza propriamente, mas ao legado da escravidão”

Jacob Gorender

 

Introdução

 

O bicentenário da Independência do Brasil é uma das efemérides de 2022. Em 1822 a América Portuguesa emancipava-se criando os marcos para a formação do Brasil como Estado-Nação. Para além de um fato, a Independência foi um processo histórico constituído de fatores externos e internos. No âmbito externo destacam-se o processo de crise do Antigo Regime europeu e o aguçamento das contradições entre colônia e metrópole no sistema colonial.[1.1] No âmbito interno destacam-se as contradições entre os diferentes setores da sociedade escravista colonial que não se resumem ao antagonismo entre portugueses e brasílicos[1.2], mas também, escravizados e escravocratas, proprietários e despossuídos.

Ainda que a Independência tenha resultado na afirmação dos grandes proprietários escravistas como classe dirigente no Brasil, as tensões populares entre os setores dominantes e subalternos[1.3] tiveram peso social no processo de emancipação do Brasil; e seguiram no período sucessivo a 1822 na medida em que permaneceram, e se aguçaram, muitas das contradições advindas do antigo sistema colonial, a exemplo da manutenção da escravidão.

A emancipação da América Portuguesa e a formação do Brasil como Estado-Nação foi – e tem sido – amplamente discutidas na historiografia[1.4]. Neste breve artigo não pretendemos abordar os diferentes pontos de vista e caracterizações do processo de independência. Nosso objetivo é elencar a abordagem de Clóvis Moura sobre o tema. A Independência é tangenciada pelo autor no escopo das lutas sociais dos subalternos, dentre os quais situavam-se negros escravizados e livres. Portanto, o tema surge na obra de Moura na perspectiva da luta de classes e da emergência dos subalternos na história do Brasil a partir da rebeldia negra.

Mesmo que sua leitura sobre a Independência enfatize as dimensões conservadoras do processo – a exemplo da conservação da escravidão e outros aspectos das estruturas coloniais – Moura volta seu olhar para a dinâmica da sociedade colonial e imperial no escopo das contradições entre as distintas frações sociais, nos mostrando a participação histórica dos setores à margem das classes dominantes. Assim, a abordagem do autor privilegia os fatores internos relacionados ao processo de Independência. Isso se deve ao objetivo do autor em compreender o peso das insurreições negras e populares, o papel dos subalternos, na história do Brasil.

Para tanto, cabe analisarmos a produção social do conjunto de frações que formam os subalternos. Quanto a isso, a economia escravista é a chave interpretativa fundamental.

 

Economia escravista e produção social dos subalternos

 

A escravização de africanos e seus descendentes foi preponderante em quase quatro séculos de história do Brasil. A formação social da América Portuguesa e posteriormente do Império brasileiro teve como base fundamental: 1) a economia escravista; 2) a grande propriedade fundiária; 3) a produção monocultora de bens primários voltada para suprir demandas do mercado europeu.[1.5]

A produção da vida material e social assentava-se na escravidão. Esta, por sua vez, produzia o escravizado, os senhores, e os setores economicamente intermediários daquela sociedade. Estes, caracterizados como “inorgânicos”, “desenraizados” ou “desclassificados” encontram-se entre os trabalhadores livres despossuídos, intermitentes, localizados em atividades subsidiárias ao sistema colonial, a exemplo da pequena produção e comércio voltado para o abastecimento interno.[1.6]

O Brasil foi a região que mais recebeu africanos escravizados no tráfico transatlântico entre os séculos XVI e XIX. Estima-se que entre 1501 e 1866, foram embarcados da África para as Américas e Europa, 12.521.337 pessoas, das quais 10.702.656 chegaram ao local de destino da escravidão. Nestas cifras, Portugal e Brasil entram com 5.848.266 de africanos embarcados, dos quais 5.099.816 concluíram o trajeto rumo ao escravismo. Só o Brasil recebeu 4.821.131 africanos escravizados, ou seja, mais de 1/3 do total do tráfico transatlântico de seres humanos.[1.7]

Luiz Felipe de Alencastro considera que “a cifra de africanos introduzidos no Brasil entre 1500 e 1850 (4,8 milhões) é conhecida com maior precisão do que o número de colonos (até 1822) e de imigrantes portugueses vindos no mesmo período”.[1.8] No entanto, o historiador indica uma estimativa de 750 mil portugueses que teriam vindo para o Brasil entre 1500 e 1850. Assim, “em cada 100 pessoas desembarcadas no Brasil durante esse período, 86 eram africanos escravizados e 14 eram colonos e imigrantes portugueses”.[1.9]

O Brasil foi a maior economia escravista do século XVI ao XIX, e constituiu-se com uma população majoritariamente de pretos e pardos, ainda que a partir da segunda metade do século XIX as classes dominantes e dirigentes tenham investido em políticas de branqueamento da população com a imigração subvencionada pelo Estado e a implementação de variadas medidas de cerceamento de espaços e possibilidades de mobilidade social dos negros. Uma tentativa de substituição étnica da força de trabalho, sobretudo na indústria.[1.10]

Apesar das tentativas de branqueamento, o Brasil segue na primeira quadra do século XXI com uma população composta por 42,7% de brancos, 46,8% de pardos e 9,4% de pretos.[1.11] Os dois últimos somados constituem atualmente 56,2% da população. Historicamente, ambos se situam predominantemente entre os grupos subalternos: no presente, compõem massivamente a classe trabalhadora, com maior recorrência nos setores mais precarizados e socialmente desfavorecidos[1.12]; no passado – Brasil Colônia e Império – eram os escravizados ou trabalhadores livres empobrecidos situados nas camadas intermediárias.

Compreender a história do Brasil em suas dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais, implica, dentre outras coisas, em compreender como os diferentes grupos sociais – para além dos dominantes – atuam nos processos de formação da sociedade, do Estado e suas instituições. Cabe, portanto, analisarmos o papel dos subalternos na formação histórica do Brasil.

 

Os subalternos no Brasil escravista

 

Ainda que muitos processos de ruptura ou conservação da ordem resultem, ora no advento, ora na manutenção da hegemonia de uma classe dominante, a história não existe sem os subalternos. Esses fazem a história, mesmo quando estão em condições desiguais de poder (via de regra) e impossibilitados de implementar seus projetos, ou de decidir sobre os projetos vigentes. Quanto a isso, a história do Brasil nos oferece muitos exemplos, como nos mostra Clóvis Moura.

O autor analisou sistematicamente as insurreições negras do período escravista (1550-1888). Deste modo, interpretou o Brasil colonial e imperial a partir do antagonismo entre as duas classes fundamentais do sistema econômico vigente: senhores e escravizados. A contradição entre esses dois pólos dinamizava a sociedade escravista.

Os quilombos, as guerrilhas e rebeliões de escravizados revelam a participação ativa de africanos e seus descendentes no processo histórico brasileiro. O escravizado era elemento básico e fundamental do sistema escravista que, ao se rebelar e lutar por emancipação, tornava-se a negação daquele sistema.[1.13]

As instituições da América Portuguesa e do Brasil Império se organizaram em torno da instituição escravidão, e foram moldadas pela tensão entre os dois polos opostos nas relações de produção vigentes: escravocratas organizavam-se para assegurar a propriedade e as relações de produção escravistas, enquanto escravizados lutavam por emancipação. Os fatores de desgaste – e, a longo prazo, de dissolução – do escravismo encontravam-se nas mesmas forças que moviam as engrenagens daquele sistema.

Contudo, além do antagonismo entre as duas classes fundamentais do escravismo, havia os outros grupos que compunham o amplo setor que chamamos de subalternos: aqueles à margem da relação senhor e escravizado que, como já mencionamos, eram compostos significativamente por pretos e pardos alforriados ou nascidos livres. Cabe ressaltar que tais não apenas tinham contradições internas, como também eram envolvidos pelas contradições gerais da sociedade escravista, evidenciadas em sucessivos conflitos sociais que marcaram o Brasil colonial e imperial.

Portanto, houveram sucessivas insurreições populares, não necessariamente antiescravistas, que reuniram escravizados e livres em confronto com a ordem, expondo também as contradições daquela formação social baseada na escravidão.

O tensionamento entre classes em determinados contextos dá origem às crises sociais. Os impasses colocados pelas crises por vezes resultam em rupturas com algum nível de conservação da ordem vigente. Na história do Brasil as permanências e rupturas são evidentes nos processos que levaram à Independência (1822), às revoltas do período regencial (1835-1845), à Abolição da escravidão (1888), à Proclamação da República (1889), e aos sucessivos processos que marcaram nossa história no século XX.

         

Crises sociais e emancipação

 

Os processos ocorridos antes e depois do 1822 – ainda que não tenham uma relação direta, de causa e efeito – nos possibilitam uma visão mais ampla da emancipação da América Portuguesa. No que diz respeito à participação popular e negra, Moura destaca os sucessivos movimentos antes e depois da Independência: Inconfidência Mineira (1789-1792), Conjuração Baiana (1798-1799), Revolução Pernambucana (1817), Independência da Bahia (1822-1823), Confederação do Equador (1824), Guerra dos Cabanos (1835), Revolta da Sabinada (1837-1838), Revolução Farroupilha (1835-1845). Não trataremos de todos esses movimentos. Por ora, nos interessam aqueles que antecederam a Independência.

Vale ressaltar que trata-se de movimentos com projeções regionais, ou seja, quando pautavam a emancipação, via de regra, objetivava-se a independência da Capitania (ou Província a partir de 1821). Houve também os movimentos que, após 1822, colocaram em questão o governo central do Império, situado no Rio de Janeiro. Esses movimentos, cada qual à sua maneira, por expressarem contradições sociais, econômicas e políticas, nos ajudam a entender o advento e o desgaste da ordem vigente, assim como a passagem de um regime para outro.

Moura registrou a participação negra nas revoltas populares que reuniram diferentes grupos subalternos em diferentes momentos de sua obra, revela algumas inflexões com o passar do tempo, a exemplo de suas considerações sobre a Inconfidência Mineira: se em Rebeliões da Senzala (1959) há um presumido caráter abolicionista do movimento, no Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2004)[1.14] o autor identifica restrições dos inconfidentes em relação a abolição da escravidão. Portanto, Moura passa a considerar o escravismo entre os líderes inconfidentes mineiros, apesar de, por algum motivo, supor que Tiradentes seria uma exceção.

Ainda assim, o autor enfatiza os negros como força social na Inconfidência Mineira, mesmo que a abolição do sistema escravista não estivesse no projeto das lideranças. Via de regra, em muitas das revoltas populares do período colonial e imperial as promessas de alforria foram utilizadas por diferentes grupos como tática de mobilização da população negra. Assim ocorreu em Minas Gerais no final do século XVIII.

A notável presença de quilombos na região mineira também pesou sobre os acontecimentos daquele período. O autor destaca o depoimento de Brito Malheiros no qual denuncia a circulação de pasquins atribuídos aos quilombolas em Sabará, dizendo que “tudo o que fosse homem do Reino havia de morrer e que só ficaria um velho clérigo.”[1.15]

Dentre os movimentos com caráter emancipacionista (mesmo que regional) a Conjuração Baiana foi o mais radical na composição social e nos objetivos colocados. Foi um movimento de caráter anticolonial, republicano, abolicionista, com nítidas influências da Revolução Francesa e, no entanto, de base plebeia: participaram escravizados e trabalhadores livres das camadas empobrecidas. A maior parte dos líderes eram alfaiates negros, o que rendeu ao movimento a alcunha de “Revolta dos Alfaiates”.

“Seus líderes esperavam depor pelas armas o governo existente, representativo do estatuto colonial, instaurando em seu lugar a República, nos moldes da França. Para isto, iniciaram o trabalho de aliciamento e organização, procurando atrair para as suas fileiras especialmente artesãos, escravos e ex-escravos.”[1.16]

Os Inconfidentes Baianos objetivavam: 1) a independência da Capitania; 2) um governo republicano; 3) liberdade de comércio e abertura dos portos “mormente à França”; 4) soldo de 200 réis por dia para cada soldado; 5) libertação dos escravizados.

Por conta de sua radicalidade, a Revolta dos Alfaiates foi atacada por historiadores conservadores como Varnhagen, que em História Geral do Brasil caracterizou o movimento como um “arremedo de cenas de horror” que ocorrera na França e sobretudo em São Domingos (Revolução Haitiana). Varnhagen também desqualifica o movimento dos alfaiates baianos por ter sido encabeçado e composto majoritariamente por quem ele considerava como “homens de pouca valia”: pretos, pardos, escravizados e libertos.[1.17]

A Revolução Pernambucana de 1817, apesar de dirigida por setores escravistas, contou com negros livres e escravizados como força social. Como em outros eventos do período, escravizados foram mobilizados por promessas de alforria, mas a abolição do sistema escravista não estava colocada em pauta. O movimento estabeleceu um governo provisório de caráter republicano, emancipacionista e liberal-escravista.[1.18]

A circulação de ideias liberais no final do século XVIII e início do XIX fomentou as tensões sociais no Brasil daquele período, como vimos nos processos ocorridos em Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

A Revolução Liberal do Porto, ocorrida em Portugal em 1820, se insere nesse processo de advento e circulação de ideias liberais no contexto de crise social nos domínios portugueses, e crise no próprio sistema colonial. O movimento constitucionalista da cidade do Porto em 1820 impactou nas províncias americanas e criou condições que possibilitaram, entre os anos 1821 e 1822, a gestação e viabilização da Independência:

“Não apenas porque a implementação da agenda política dos constitucionalistas portugueses fez aprofundar contradições e fissuras internas do Reino Unido de modo a enfraquecer a unidade política sobre a qual este se assentava (por exemplo, com a volta do rei a Lisboa, e a permanência no Rio de Janeiro de seu filho Pedro, como príncipe-regente), mas também porque impregnou grupos de interesse sediados nas províncias americanas com um ideário liberal herdado dos portugueses peninsulares, e que logo se voltaria contra eles”.[1.19]

A Revolução do Porto teve ecos e desdobramentos do lado de cá do Atlântico. Naquele mesmo ano, escravizados mineiros das regiões de Guaraciaba, Sabará, Santa Rita e proximidades, dirigidos por um negro chamado Argoins, proclamaram a Constituição Lusa da Revolução Liberal de 1820.[1.20]

A Revolução Liberal portuguesa impactou mais fortemente a Bahia em 1821 com a conspiração constitucionalista que eclodiu em Salvador. As tensões sociais e políticas na região seguiram ao longo de 1822 e se encerraram em 2 de julho de 1823 com a incorporação da província à unidade do Império do Brasil. Assim como nos outros processos já mencionados, no curso dos acontecimentos na Bahia durante a Independência, escravizados e livres foram componente social e militar de grande monta e, como nos demais, os cativos lutaram movidos pela possibilidade de se libertarem.[1.21]

Quando escravizados lutavam com o objetivo de alforria, não fazia diferença estar ao lado de brasílicos, portugueses, ou qualquer outro grupo. Escolhiam o lado que convinha para tornar-se livre. Assim, nesses conflitos, “os portugueses também não se descuidaram em aliciar escravos para as suas hostes com promessas de alforria.”[1.22]

“O elemento escravo durante as lutas armadas teve quatro formas básicas de comportamento: 1) aproveitou-se da confusão reinante e fugiu para as matas, debandando dos seus senhores; 2) aderiu ao movimento libertador para conseguir a sua alforria; 3) lutou por simples obediência aos seus senhores; e 4) participou ao lado das forças portuguesas.”[1.23]

 

Estado-Nação escravista (1822-1888)

 

De todos os processos sociais e políticos aqui mencionados, o que ficou conhecido como Independência da Bahia (1822-1823), por sinal, é o que mais se vincula ao processo de Independência do Brasil.

No entanto, a despeito do caráter regionalista dos demais movimentos ocorridos no final do século XVIII até 1822, todos expõem e, em alguma medida, agudizam, as contradições sociais, políticas, econômicas e culturais daquele período. Podem não estar diretamente relacionados à Independência, mas certamente vinculam-se ao processo de desgaste e à desagregação do antigo sistema colonial (somado aos fatores externos de crise do Antigo Regime europeu).

A emancipação política do Brasil em relação a Portugal ocorreu sem que houvesse qualquer ruptura com o modo de produção dominante na época, o escravismo. Ao contrário: a escravidão foi mantida e intensificada desde a Abertura dos Portos (1808) que liberou o Brasil do monopólio português e o lançou no mercado concorrencial internacional. Parte da historiografia caracterizará essa fase do escravismo como a “segunda escravidão”[1.24].

A manutenção da escravidão com a Independência levará Moura a periodizar a História do Brasil com as definições de Escravismo Pleno (1550-1850), fase ascendente, de estruturação e plenitude da escravidão; e Escravismo Tardio (1850-1888), fase descendente, de desagregação paulatina do sistema.[1.25] A proibição do tráfico de escravizados com a Lei Eusébio de Queirós em 1850 é o marco que divide estas duas fases.[1.26]

Assim, as contradições do escravismo perduraram até 1888. Em 1822, o Brasil tornou-se independente como um Estado-Nação escravista. Àquela altura o Rio de Janeiro, capital do Império até 1889, possuía uma rede de tráfico de escravizados com preeminência econômica sobre todo o país, o que também assegurava maior poder político ao governo central.[1.27]

Ao longo do século XIX, escravizados seguiram como força motriz e elemento de negação do sistema escravista. Promoveram levantes e revoltas e participaram das sucessivas insurreições populares contra o governo central do Império, movidos pelo ímpeto de libertarem-se do cativeiro.[1.28]

O governo central, por sua vez, teve a seu favor o interesse em comum na escravidão que unia as classes dominantes de cada região a despeito de qualquer dissensão, assim permitindo o triunfo do Império sobre as tendências separatistas. A preeminência econômica da escravidão em diferentes graus, porém, em todas as regiões do Brasil, garantiu a extensa unidade territorial do país, tornando-o um gigante se comparado às nações que emergiram da América Espanhola, onde a escravidão só teve um peso comparável ao Brasil em algumas regiões (sobretudo nas Antilhas).

“A instituição escravista adquiriu, em nosso país, o máximo peso registrado no continente americano e se generalizou de norte a sul. O interesse na defesa da escravidão era comum a todas as províncias, ainda que com uma significação desigual. [...] A escravidão foi, por conseguinte, o fator decisivo para a manutenção da unidade nacional, na conjuntura da conquista e da consolidação da Independência, em que atuaram fortes tendências centrífugas, as quais, se levadas às últimas consequências, teriam conduzido à secessão e fracionado politicamente o território brasileiro.”[1.29] (GORENDER, 2000, pp. 13-15)

A Independência em 1822 pode ter sido a superação das contradições entre brasílicos e portugueses, mas manteve as contradições entre escravocratas e escravizados, proprietários e despossuídos; e deu origem a um Estado-Nação escravista que perdurou até 1888. A desagregação do sistema escravista fomentou a dissolução do próprio Império, que deixou de existir no ano seguinte, substituindo o governo monárquico por uma república oligárquica, extremamente racista e anti-povo. Mas essa já é outra parte da história.

 

Bibliografia

 

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[1.1] NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979.

[1.2] Termo utilizado por Alencastro para se referir a pessoas e coisas da América Portuguesa (1500-1822). Ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[1.3] Entenda-se “subalternos” como um conjunto amplo de grupos não homogêneos, e não necessariamente coesos, situados à margem das classes dirigentes. Ver: SECCO, Lincoln. “Gramsci: a gênese dos estudos subalternos”, Revista de Políticas Públicas, v. 22, 2018; BUTTIGIEG, Joseph A. “Subalternos”. In: LIGUORI, Guido & VOZA, Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciano. São Paulo: Boitempo, 2017.

[1.4] Ver: PIMENTA, João Paulo. “A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico”, História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 2, n. 3, p. 53–82, 2009. 

[1.5] PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1957.

[1.6] Idem.

[1.7] Ver: Slave Voyages. Disponível em https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates. Acesso em: 21 de janeiro de 2022.

[1.8] ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “África, números do tráfico atlântico”. In: SCHWARCZ, Lilia M. & GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[1.9] Idem.

[1.10] BARBOSA, Wilson do Nascimento. O negro na economia brasileira. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2006. DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada. São Paulo: Senac, 2004. MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão? São Paulo: Dandara, 2021.

[1.11] IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualda…. Acesso em: 6 mar. 2022.

[1.12] Idem.

[1.13] MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5ª ed. São Paulo: Anita Garibald, 2014.

[1.14] Publicação póstuma.

[1.15] MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004, pp. 206.

[1.16] MOURA, Clóvis. Op. cit., 2021, pp. 222.

[1.17] VARNHAGEN apud MOURA, Clóvis. Op. cit., 2014, pp. 124.

[1.18] MOURA, Clóvis. Op. cit, 2014, pp. 134-135.

[1.19] PIMENTA, João Paulo. “A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico”, História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 2, n. 3, 2009, pp. 58-59.

[1.20] MOURA, Clóvis. Op. cit., 2014, pp. 138-139.

[1.21] MOURA, Clóvis. Op. cit., 2014, pp. 140-141.

[1.22] MOURA, Clóvis. Op. cit., 2014, pp. 142.

[1.23] MOURA, Clóvis. Op. cit., 2014, pp. 141.

[1.24] Ver: TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: EDUSP, 2011; MARQUESE, Rafael B. & SALLES, Ricardo (orgs.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

[1.25] MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. 2ª ed. São Paulo: Anita Garibald, 2014.

[1.26] ROCHA, Gabriel dos Santos. “Escravidão e Capitalismo na obra de Clóvis Moura”, Revista História & Luta de Classes. Ano, 16, nº 31, mar., 2021, pp. 13-26.

[1.27] ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “África, números do tráfico atlântico”. In: SCHWARCZ, Lilia M. & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[1.28] MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala..., op. cit.

[1.29] GORENDER, Jacob. Brasil em Preto & Branco. São Paulo: Senac, 2000, pp. 13-15.

A INDEPENDÊNCIA E A IDEIA DE REVOLUÇÃO EM CAIO PRADO JUNIOR - Lincoln Secco | Professor do Departamento de História - USP

 

* Remeto à leitura do posfácio que escrevi ao livro A Revolução Brasileira, de Caio Prado Junior, para a Editora Companhia das Letras.

 

A concepção de Revolução em Caio Prado Júnior guardou uma coerência em toda a sua vida. Em 1932, pouco depois do seu ingresso no Partido Comunista, ele escreveu “que nas condições do Brasil não há lugar para uma revolução burguesa, porque o nosso regimen já é aqui burguês”2.2 e desde então ele apenas reformulou e enriqueceu aquela afirmação com estudos históricos. 

Caio Prado Júnior já tinha escrito em 1933 uma interpretação materialista (na segunda edição ele trocou o termo para “interpretação dialética”) da história brasileira quando ingressou na primeira turma de alunos da seção de História e Geografia da Universidade de São Paulo. Entre seus professores estavam Jean Maugè, Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines e Fernand Braudel que anos depois escreveu uma resenha crítica de sua obra historiográfica.

Se há uma mudança estrutural entre a obra de 1933 e a de 1942 (Formação do Brasil Contemporâneo) é a atenção para o espaço geográfico. Mas não enquanto um palco inerte no qual se desenrolará uma história, mas enquanto produção humana de economias, caminhos, extrativismos, plantios, esgotamento de solos e o próprio desenho de linhas de povoamentos distintas.

No livro de 1942 podem-se notar, portanto, as marcas da Universidade de São Paulo e das lições dos geógrafos franceses: uma preocupação com os espaços enquanto construções humanas ou espaços movimentos; a identificação de diferentes ritmos segundo a diversidade regional; os ciclos da economia colonial, porém subsumidos a uma estrutura de longa duração: o vínculo colonial.

Em ambas as obras o problema de fundo não é apenas a crise de um sistema, que ele identificará também na própria época em que ele escreve, mas principalmente o da revolução que, na ausência de uma definição que possa ser antecipada aos fatos, poderia ser entendida como a da independência do vínculo colonial e, depois, do imperialismo.

Para ele toda a nossa estruturação econômica, as formas de ocupação e produção, a devastação da natureza, as relações sociais, os ciclos do pau brasil, do ouro, do café ou da borracha, a grande propriedade fundiária e o trabalho forçado foram determinados pela necessidade de produzir gêneros tropicais demandados pela economia europeia. Esse foi o sentido da colonização.

Duas críticas mais importantes foram dirigidas a ele. A primeira a de que não partiu de um estudo do modo de produção e sim da circulação; a segunda, a de que impôs uma finalidade teleológica à reconstituição histórica.

Sua ênfase na circulação coincide e mesmo antecipa aquela que marcou depois a obra de Fernand Braudel, embora seja possível que na gênese estivesse a leitura comum da geografia de Vidal de La Blache2.3. De qualquer maneira, no próprio âmbito marxista não faria sentido para ele partir da produção numa área colonial, posto que o cerne dinâmico do sistema é o capitalismo europeu. Sendo assim, o exclusivo colonial só pode ser entendido na esfera da circulação e da dominância do capitalismo comercial.

Num texto escrito em Paris em 16 de abril de 1938, escreveu a respeito do fim do pacto colonial:

“O sistema do comércio no pacto colonial é óbvio. O objetivo do pacto não é senão reservar para a metrópole o comércio de suas colônias. São assim os comerciantes da metrópole os beneficiados em prejuízo dos concorrentes estrangeiros. E por isso o pacto se mantém enquanto o comércio domina, isto é, enquanto o capitalismo comercial controla a economia do país. Para o industrial, sem interesse no comércio, e cujo único objetivo é colocar seus produtos, a situação criada pelo pacto não se apresenta sob um ângulo favorável. O monopólio comercial, de que não participou porque não é comerciante, não lhe traz benefício algum; pelo contrário, restringindo as relações comerciais, efeito necessário de qualquer monopólio, dificulta seu acesso aos mercados, único objetivo que tem em vista”2.4.

Sobre a teleologia, cabe ponderar que o sentido da colonização é definido nas primeiras páginas do livro, mas é evidentemente um resultado da pesquisa. Ele não foi dado de antemão, mas resultou do tipo de colonização de exploração que foi se estabelecendo no Brasil.

Embora sejam escassas as citações de Marx no conjunto de sua obra, pode-se dizer que ele antecipou preocupações que marxistas europeus desenvolveram depois. Sua insistência na totalidade articulada pela formação do mercado mundial é um exemplo. Para ele “todos os momentos e aspectos não são senão partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo último do historiador” e “é por ela que se define, tanto no tempo como no espaço a individualidade da parcela de humanidade que interessa ao pesquisador”2.5. Isso se explica porque ele viu o sistema a partir de sua periferia, tomando a relação centro e periferia, que pouco interessou aos europeus, como seu objeto.

Maria Odila Dias ressaltou que pelo “grau de elaboração do processo dialético” Prado Júnior atingiu “um nível de concretude e de sofisticação que somente 20 anos depois começou a encontrar similares nas obras de Pierre Villar, Albert Soboul, Eric Hobsbawm e outros”. De fato, Caio Prado Junior apreendeu seu objeto superpondo sucessivas determinações. Ou seja, seu ponto de partida aparece como indeterminado, mas uma vez pesquisado, reaparece inteiramente determinado e, por isso, temos a sensação de que foi elaborado antes da pesquisa.

Por visar a apreensão do todo é que Caio Prado Júnior encontrou o problema crucial do país: o desencontro entre sociedade, economia e nação. Ele não poderia ter chegado a isso sem captar o elo de dependência de longa duração, afinal é o vínculo colonial que explica “o processo de formação da nacionalidade como marginal ao processo produtivo”2.6: uma produção extrovertida e um mercado interno subordinados aos ritmos da economia dos países centrais.

O sistema colonial é uma urdidura de teias em que se entrosam o trabalho compulsório, a grande lavoura e a dominação política pela metrópole. Dois fatores sofreram mudanças de forma, mas não de conteúdo: o trabalho assalariado substituiu o escravizado, mas manteve-se a super exploração da força de trabalho; o país se tornou politicamente independente, porém submetido ao imperialismo; e a grande propriedade fundiária manteve-se como padrão de ocupação do campo.

O tema da revolução se inscreve na transformação de colônia em nação e, no todo, na própria época das revoluções burguesas. Nossa particularidade é que o lema da Revolução Francesa foi deformado no Brasil porque não tocou nos maiores interessados, os escravos, que  “não precisaram de roupagens ideológicas.”2.7

Não fazia sentido buscar a separação da metrópole formalizada entre 1822 e 1825 na ideia de independência. As várias ideias, desde as mais moderadas que preconizavam a monarquia dual até os extremos revolucionários que se resumiam à “supressão das barreiras de cor e de classe”, “não eram mais que reflexos, no pensamento dos indivíduos, de situações objetivas, exteriores a qualquer cérebro; que estão nos fatos, nas relações e oposições dos indivíduos entre si”. Cada classe (fazendeiros,  comerciantes portugueses, escravos, os pé descalços etc) forjarão alguma ideia para seu uso próprio e “que justifique sua posição e suas pretensões.”2.8

A negação do sistema colonial brota dele mesmo e também a síntese dos conflitos que se expressarão num novo sistema. Essa é a revolução da independência. Seus acontecimentos decisivos, tanto na obra de 1933 quanto em 1942, iniciam-se com a transferência da corte portuguesa ao Brasil em 1808. Ela é a desagregação do antigo sistema colonial expressa na superfície dos fatos exteriores.

Mas se há uma forma comum dos conflitos sociais no sentido de que são expressão de uma crise, o conteúdo é variado e não há um “dualismo rígido” de dois campos opostos. Cada grupo social se une ou se separa de outros de acordo com necessidades momentâneas. A diversidade empírica que o historiador colhe tem a “aparência ilógica e incongruente dos fatos”. Os fatos só depois se tornam “claros em seu conjunto, e definidos”. Inútil procurar sua lógica antes, “torcendo os acontecimentos ao gosto particular do observador”. O processo se completa inteiramente com a solução de todas as contradições; para se repetir e se renovar noutras”.

O movimento da história é apreendido com os instrumentos de compreensão e expressão que possuímos e que não dão conta de “reproduzir senão numa parcela ínfima, cortes desajeitados numa realidade que não se define estática, mas dinamicamente”2.9.

         

A Independência

 

Em Evolução Política do Brasil (1933), Caio Prado Junior observou o processo de independência à luz dos acontecimentos de 1930. Essa obviedade não pode passar despercebida. Não se pode compreender o seu 1822 sem 1930. 

O episódio de outubro de 1930 foi frustrante para ele, um acontecimento que apenas assinalou uma mudança de superfície. No entanto, integrava um processo que se iniciou antes e ainda estava aberto a uma conclusão revolucionária, na qual ele se engajou como dirigente da Aliança Nacional Libertadora em 1935. Já em 1942 o ciclo revolucionário se completara numa trajetória reacionária.

As insuficiências que ele vê na “agitação democrática e popular” em 1822 derivam de sua adesão ao Partido Comunista em 1931. A cabanagem é considerada por ele é “o mais notável movimento popular do Brasil. O primeiro em que as camadas inferiores da população conseguem ocupar o poder de toda uma província com certa estabilidade”, mas é marcado pela “desorientação”. Os balaios não souberam ligar seu movimento ao dos escravos; os elementos moderados tudo faziam para deter a revolução, faltou unidade, houve traições de lideranças e um intenso movimento popular que acompanhou a independência, mas a revolução foi “incapaz de realizar seu ciclo completo, incapaz de propagar a centelha revolucionária atravez de todas as camadas revolucionárias da sociedade”2.10. No caso da praieira Caio Prado constatou a existência de um programa político que faltou às outras revoltas2.11.

O tratamento que ele dá à independência é inovador na definição do objeto e na periodização. O tema está numa parte por ele denominada “revolução”, mas não há nenhum capítulo sobre a independência propriamente dita. Sua periodização se inicia em 1808 porque ela não se estriba “unicamente nos caráteres externos e formais dos fatos” e sim na sua “significação íntima”. A revolução deriva do desenvolvimento econômico, incompatível com o regime. A superestrutura já não corresponde ao estado das forças produtivas. Isso não significa que os processos que ele narra não deságuem em acontecimentos: a noite das garrafadas, por exemplo, é um fato a partir do qual as “coisas se precipitam”.2.12

O ano de 1808 marca a era do liberalismo, título de uma parte de seu livro História Econômica do Brasil. Mas na própria obra de 1933 ele definira de que liberalismo se tratava:

“Assim a ideologia da Assembleia de 1823 – que era a da classe dominante, por ela representada em grande maioria – reflete perfeitamente seus interesses. Isto explica porque, apesar de todo o seu tão apregoado liberalismo, não se embaraça com a questão dos escravos, adtando-lhes a situação às exigências da filosofia rosseauoista, de que fazia timbre em não se afastar, com a eufêmica disposição do art. 265 do projeto: `A constituição reconhece os contrátos (!) entre os senhores e escravos; o governo vigiará sobre sua manutenção`. É este o mais perfeito retrato do liberalismo burguês.2.13

Note-se que é pela adaptação dos ideais iluministas a uma situação que os negava que encontramos o seu “mais perfeito retrato”.

No ano seguinte à publicação daquele livro, Caio Prado Junior vinculou-se à Aliança Nacional Libertadora. Sua análise da revolução entra numa zona de expectativas em que a mudança da estrutura econômica e o fim da condição de feitoria são o seu conteúdo. A revolução é fundamentalmente anti imperialista. A revolução não é uma mudança de homens no  poder,  mas um conjunto de reformas profundas (entre elas a ruptura com o imperialismo e conquista da democracia). A vitória da ANL, diz ele, será a da nação.2.14

Com a derrota da ANL Caio Prado Junior refletirá acerca da revolução de 1930 como um processo. Em texto manuscrito escrito em Paris intitulado “1937” ele diz:

“Em cada estado, uma pequena oligarquia assume o poder. Há em regra um outro grupo na oposição que o disputa. Mas situação e oposição não se distinguem senão pela característica de estarem ou não na direção da coisa pública. O conteúdo de ambas é o mesmo: composição social, programa – ou falta de programa – finalidades. Uma tal situação correspondia ao estado embrionário da nossa formação política no alvorecer da República. Os quarenta anos que se seguem modificam, e sobretudo complicam a simplicidade anterior. O aumento da população; o amadurecimento de novas classes sociais que o Império ignorara ou de que conheceu apenas o alvorecer – classes médias, o proletariado; a diversificação maior de interesses, sobretudo econômicos; um novo equilíbrio social e econômico que aos poucos se organiza e estabelece em oposição ao anterior, profundamente abalado pela abolição e pela reorganização do trabalho na base da liberdade jurídica do trabalhador, e em grandes setores do país, na do trabalhador imigrado; todos estes e outros mais fatores tornam o sistema político do país obsoleto. Ele representa apenas uma transição entre o passado e o futuro. Com o passar do tempo ele aparece cada vez mais anacrônico e insustentável. Também aí, os nossos dirigentes foram incapazes de compreender a situação; e nenhum passo se deu, senão no sentido de reformas profundas, o que evidentemente não seria possível realizar de chofre, pelo menos no sentido de permitir a evolução política do país por meio de um sistema menos rígido e não imobilizado em formas cristalizadas e incapazes de modificação. Tais são, em suma, os problemas fundamentais do país nas vésperas da revolução de 30. A sua incompreensão gera no país um mal estar generalizado que vai ganhando aos poucos todas as classes sociais.”2.15

A revolução de 1935, única que completaria o ciclo iniciado na década de 1920, é derrotada:

“A opinião geral do país, refletindo as condições econômicas e sociais brasileiras, não estava madura para nenhum movimento extremo, fosse da direita, fosse da esquerda. Quanto a esse último faltava aos grupos e classes sociais capazes de levá-lo adiante maturidade e eficiência – sobretudo eficiência – para impô-lo ao país; já não digo trazer-lhe a vitória, mas apenas mantê-lo em vida. O pavor do comunista, que todos viam por detrás da bandeira da Aliança, mobilizou contra ela todas as forças conservadoras e moderadas do país; e não foi possível, pelas razões apontadas, organizar a resistência: a Aliança desapareceu sem um ai. O levante de novembro de 1935, simples conspirata de quartel, foi o seu último espasmo; e mesmo esse levante reflete muito mais o heroísmo e desassombro de um punhado de oficiais que o resultado de um largo movimento coletivo.”2.16

A Revolução não se resume à insurreição.

 

Rumo à Revolução Brasileira

 

Caio Prado tinha um leque de relações muito amplo, mesmo na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. Em 1955 fundou a Revista Brasiliense, de teor nacionalista e que existiu até o golpe militar de 1964. A revista reuniu comunistas mais próximos ao editor, mas também muitos intelectuais não comunistas, entre eles, 12 professores universitários.2.17

Vários dos fundadores da revista ou que nela escreveram foram alunos ou docentes uspianos: Alice Canabrava, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, João Cruz Costa, Omar Catunda, Sergio Buarque de Holanda, Maria Isaura Pereira de Queiroz, José de Souza Martins, José Chasin e Michael Löwy.

Em 1943 Caio Prado tinha se tornado empresário do ramo editorial e co-fundador da Editora Brasiliense, juntamente com José Bento Monteiro Lobato, Arthur Neves (editor vinculado ao PCB) e a escritora Maria José Dupré. Em 1962 assumiu a liderança da editora Brasiliense com a saída de Artur Neves, que foi chefiar a Editora da Universidade de Brasília. Ele dividiu seu tempo entre viagens, artigos sobre a questão agrária e os negócios.

Ele nunca abandonou o PCB porque ao contrário do que uma mitologia uspiana poderia sugerir, ele não foi o único marxista criativo e importante de sua geração e nem mesmo do PCB e nele tinha um ambiente rico de debate de ideias; em segundo lugar, possuía mais pontos de aproximação que repulsa com o partido. Compartilhava a fé laica no modelo soviético e também num modelo de revolução não insurrecional preconizado pelo partido a partir de 1958.

As reformas que interessavam ao partido deveriam ser exatamente as que constituiriam um programa revolucionário. Até meados dos anos 1950 ele propugnava alianças de classes semelhantes ao PCB e que incluíam a “burguesia industrial e comercial livre de compromissos para com o imperialismo e o capital financeiro internacional.”2.18 Ele não defendeu uma Revolução Burguesa e sim um “capitalismo brasileiro” sob a direção das forças de esquerda.

Posteriormente ele desenvolveu a ideia de que a burguesia “não tem interesses próprios e específicos, como classe, que a levem a se opor ao imperialismo. (...) Em suma não se poderá contar com a burguesia brasileira como força propulsora da revolução agrária e nacional.”2.19

Já tive oportunidade de tratar das críticas a uma suposta ausência de preocupação de Caio Prado Junior com a dinâmica interna da economia colonial.2.20 Não é preciso lembrar que qualquer atividade voltada ao mercado exterior teria que desenvolver sua própria periferia interna. Por exemplo, o açúcar e o algodão geraram a pecuária, como argumentou Gunder Frank. Esta atividade forneceu a carne, animais de tração, gordura para lubrificar as engrenagens do engenho etc.2.21

Para Caio Prado o sistema econômico latino americano permaneceu colonial. Vocacionado à exportação de produtos primários, até gerava demanda de manufaturados que, casualmente, não podiam ser abastecidos com as importações. A indústria foi, assim, uma solução eventual para a impossibilidade de pagar com as exportações os débitos no exterior. Nos anos 1950, Caio Prado Junior escreveu que entre nós não havia mais que uma “débil indústria leve baseada na indústria estrangeira”.2.22 Sua instalação não gerava desenvolvimento; antes, provocava demanda nova que o país não podia satisfazer e precisava importar, agravando o problema da dívida. Isso dizia respeito tanto à procura intersetorial da própria indústria quanto ao consumo derivado do aumento da renda da população.

A revolução industrial em qualquer lugar não se resumiu ao aumento da produção fabril. Houve incremento da produtividade em múltiplos setores da economia. Para o historiador argentino Milcíades Peña o que a define é as empresas produtoras de meios de produção se desenvolverem mais que as outras. A industrialização é a produção para a produção. Já a “pseudo industrialização” consiste no crescimento fabril sem subverter o atraso.2.23 Não há definição de uma revolução na indústria que não leve em conta a emergência de novas classes e um estado disposto a subordinar toda a política externa a objetivos econômicos.

Há uma aproximação entre a leitura de Peña e a de Caio Prado, embora não se conhecessem e fossem de orientações políticas diferentes. Peña conheceu indiretamente a obra de Caio Prado via Sergio Bagú e pode ser que  tenha lido diretamente também. Para Peña a coexistência da técnica avançada em  poucos setores com  a ineficácia geral da economia deriva do que Trotsky denominou desenvolvimento desigual e combinado. Peña e Caio Prado concordam  que não existe nenhuma contradição fundamental entre latifundiários e burguesia industrial.

         

O Sujeito Histórico da Revolução

 

Caio Prado manteve uma fé inabalada no modelo soviético de socialismo e isso foi a base do seu vínculo permanente com o partido. Por outro lado, como intelectual, ele tentou ingressar na Universidade de São Paulo por várias vezes, sendo recusado por motivos políticos.

Foi como editor que ele fez uma síntese do intelectual, do comunista e de uma profissão remunerada. Ele superou, assim, o permanente deslocamento das instituições que moldaram a intelectualidade brasileira como grupo social (a universidade e o partido comunista), sem que deixasse de ser um marxista militante.

Sua condição de comunista interditou seu ingresso na academia brasileira; mas sua leitura heterodoxa da história brasileira, que se tornou influente na Universidade de São Paulo por alguns decênios, fechou-lhe o acesso à direção do Partido Comunista. Como editor ele sustentou sua independência política. Através da Revista Brasiliense, manteve um restrito círculo de intelectuais e de afinidades ideológicas para continuar intervindo no debate público.

Em sua trajetória intelectual Caio Prado Júnior formulou seu problema essencial em termos de uma independência frustrada e que estaria por fazer. Tanto a nação quanto as classes que deveriam realizá-la formaram-se, em parte, à margem do vínculo econômico fundamental do sistema. A forma das nossas tentativas de independência foi uma revolução processual; seu conteúdo foi a proposta de uma economia nacional; mas seu sujeito não se reduziu às classes orgânicas do núcleo do processo econômico.

 

2.2 Carta de Caio Prado Junior ao CR do PCB, 30 de novembro de 1932.

2.3 “Disse-me certa vez um professor estrangeiro que invejava os historiadores brasileiros que podiam assistir pessoalmente às cenas vivas do  seu passado”. Prado Junior, C. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Livraria Martins, 1942, pp. 8. Muito provavelmente o professor citado é Braudel, embora Caio Prado tenha sido aluno também de Émile Coonaert.

2.4 Prado Jr., C. Decadência do pacto colonial. Paris, manuscrito localizado no IEB-USP, 16 de abril de 1938.

2.5 Prado Junior, C. Formação do Brasil Contemporâneo, pp. 13.

2.6 Dias, Maria Odila. “Os impasses do inorgânico”, in D’Incao, M. História e ideal. São Paulo: Editora da Unesp, 1989, pp. 379 e 385.

2.7 Prado Junior, C. Formação, cit, pp. 377.

2.8 Id. Ibid. pp. 364-5

2.9 Id. Ibid., pp. 368-9. Ele retomou essas observações no prefácio de seu livro História Econômica do Brasil (1945), retirado das edições posteriores.

2.10 Prado Junior, C. Evolução política do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933, pp. 137, 143, 155.

2.11 Martinez, P. H. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Jr. (1928-1935). São Paulo: Edusp, 2008, pp. 141.

2.12 Prado Junior, C. Evolução política do Brasil, pp. 84, 91 e 113.

2.13 Id. Ibid., pp. 101.

2.14 A Platéa, 3/8/1935.

2.15 Prado Junior, C. “1937”, manuscrito, IEB USP, Paris, dez 1937. https://gmarx.fflch.usp.br/sites/gmarx.fflch.usp.br/files/inline-files/…

2.16 Idem.

2.17 Sobre a revista o estudo de Montalvão, Sérgio. Histórias cruzadas: uma prosopografia dos fundadores da Revista Brasiliense (São Paulo, 1955), Revista História História n. 36. São Paulo, Unesp, 2017.

2.18 C. Prado Jr. Diretrizes para uma política econômica brasileira. São Paulo: Urupês, 1954, pp. 236.

2.19 Foi o que ele escreveu na crítica às Teses do V Congresso do PCB, uma série de cinco artigos na Tribuna de Debates aberta pelo Partido Comunista em 1960 para redefinir sua linha política. Cf. Prado Junior, C. As Teses e a Revolução Brasileira, Novos Rumos, Tribuna de Debates, 22 a 28 de julho de 1960.

2.20 Secco, L. Caio Prado Junior: O Sentido da Revolução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

2.21 Apud Chilcote, Ronald. Transição capitalista e a classe dominante no nordeste. São Paulo: Edusp, 1990, pp. 240.

2.22 Prado Jr., Caio. Diretrizes para uma política econômica brasileira. São Paulo: Urupês, 1954, pp. 133.

2.23 Peña, Milciades. Fichas: edición facsimilar. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2014, T. 1, pp. 62

EMÍLIA VIOTTI DA COSTA E O DEBATE SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL - Clara Monteiro Schuartz | Graduanda em História - UNICAMP

 

Emília Viotti da Costa é uma das autoras mais conhecidas da geração de historiadores atuantes na Universidade de São Paulo ao longo dos anos 1960, e uma das mais influentes historiadoras no debate sobre marxismo e escravidão na historiografia brasileira. Formada por importantes figuras do pensamento social brasileiro, tais quais Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, entre outros, Viotti dedicou sua produção especialmente ao tema da escravidão, publicando desde os anos 1950 até os anos 2010, década de seu falecimento em 2017. A produção de Emília Viotti é marcada por sua inserção dentro da tradição marxista, orientação essa reivindicada pela autora em toda a sua vasta produção, marcada pela transição entre o universo brasileiro e o norte-americano, região na qual viveu durante seu exílio após aposentadoria compulsória sofrida em 1969, fruto de seu comprometimento com a orientação marxista e a luta contra o modelo liberal do MEC-Usaid imposto pela reforma universitária da Ditadura Militar.

Apesar da indiscutível importância dada pela historiografia brasileira à esta autora, Emília Viotti ainda se encontra à margem das pesquisas sobre historiadores no Brasil, pouco estudada, neste sentido, em sua centralidade para o desenvolvimento do marxismo e da historiografia brasileira. Dentre suas publicações mais conhecidas estão sua primeira obra de fôlego, Da Senzala à Colônia3.1, que marca sua importância como estudiosa da escravidão e do processo de abolição no Brasil, Da Monarquia à República3.2, uma compilação de ensaios publicados ao longo dos anos 1960 e 1970, e Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: A revolta dos escravos de Demerara em 18233.3, publicado originalmente em 1994, livro fundamental no debate acerca das revoltas escravas na América Latina e uma aproximação da autora com os debates sobre micro-história que ganham palco nos anos 1980 e 1990.

Este texto se dedica a trazer um breve mapeamento e reflexão sobre a produção de Emília Viotti da Costa acerca de um tema específico, e muito caro à historiografia brasileira: a Independência. Apesar de ter dedicado grande parte da sua carreira ao estudo da escravidão e os processos abolicionistas no Brasil, Viotti também deixou uma vasta produção em torno da independência como um processo fundamental na compreensão dos movimentos de emancipação política no país.

Um dos grandes exemplos da dedicação dada pela autora ao tema ao longo de sua carreira é a obra Da Monarquia à República, que será discutida em mais detalhes ao longo do presente texto. Abordando sempre em uma perspectiva dialética o processo que culmina em 1822, Viotti tem como principal marca em sua abordagem sobre a Independência a transição entre a análise dos processos internacionais e nacionais, e as reflexões acerca do liberalismo no Brasil ao longo do século XIX e XX. 

Da Monarquia à República é publicado originalmente em 1968 e tem por objetivo reunir ensaios envoltos em uma unidade temática: a reflexão acerca de importantes processos de transição política no Brasil. Nas palavras da própria Viotti: 

“Nasceram eles [os ensaios] de uma preocupação que lhes dá unidade: a de entender a fraqueza das instituições democráticas e da ideologia liberal, assim como a marginalização política, econômica e cultural de amplos setores da população brasileira, problemas básicos do Brasil contemporâneo.”3.4

Este livro reúne grande parte dos ensaios escritos pela autora acerca de Independência, tais como Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil; José Bonifácio: mito e história; Liberalismo: teoria e prática; Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos; Colônias de parceria na lavoura de café: primeiras experiências; Urbanização no Brasil no século XIX; O escravo na grande lavoura; Da escravidão ao trabalho livre; O mito da democracia racial no Brasil; Sobre as origens da República e A proclamação da República. Dentre estes diversos ensaios, produzidos em contextos bastante distintos da trajetória de Viotti, os mais caros ao debate da independência são os três primeiros aqui mencionados, cada um tocando em pontos centrais para a autora no processo de 1822, respectivamente: O caráter (não)emancipatório do processo de Independência no Brasil; a valorização extrema de personagens históricos na perspectiva oficial e o liberalismo como teoria política e suas interpretações e aplicações no país. Uma importante referência para Viotti no debate acerca do tema está na figura intelectual de Caio Prado Jr., especialmente a partir do texto Evolução Política do Brasil, exemplo de diretriz de análise sobre a Independência influente na perspectiva da autora.

Da Monarquia à República nos traz uma boa perspectiva sobre o tipo de tratamento dado por Viotti em relação ao tema da Independência. Sempre se distanciando da tradição da chamada História Oficial, tais quais Varnhagen, Tobias Monteiro e Oliveira Lima, entre outros, Viotti busca entender ao longo dos diversos ensaios contidos nos livros as possibilidades de interpretação da Independência dentro da perspectiva marxista. Ao se dedicar, por exemplo, a um novo tipo de análise e reinterpretação da figura de José Bonifácio, Viotti busca tirar estas figuras colocadas pela historiografia oficial como heróis do processo de emancipação brasileiro e interpretá-los diante dos movimentos que ocorriam, tanto internamente quanto internacionalmente, do início até a metade do XIX. Além disso, o lugar conferido a estes personagens pela historiografia também é objeto de análise da autora, que busca historicizar a construção dessas figuras a partir dos interesses envolvidos na narrativa sobre a independência ao longo do século XIX e XX.

Escrito originalmente em 1967, José Bonifácio: mito e história, é um dos capítulos que melhor demonstram as novas perspectivas trazidas por Viotti acerca da Independência. O ensaio tem por objetivo construir uma história da história de Bonifácio, buscando compreender não necessariamente seu papel específico no projeto de Independência, mas sim o lugar de herói nacional conferido a ele por seus contemporâneos e principais estudiosos. Nesse sentido, Viotti estrutura seu texto a partir de alguns eixos principais: “José Bonifácio visto por si mesmo”; “José Bonifácio visto pelos contemporâneos”; “A tradição romântico-nacionalista e a historiografia erudita”; “A humanização de José Bonifácio” e “Uma revolução nos métodos tradicionais”. O caminho de Viotti parte, portanto, de uma análise sobre a memória de Bonifácio, produzida por ele mesmo ao longo de sua vida, por seus contemporâneos (andradianos e anti-andradianos), pela historiografia nacionalista, aqui sinônimo do que também é conhecido por “História Oficial”, e a perspectiva de historiadores que rompem com a tradição romântica da produção histórica brasileira, em especial Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, mencionados no texto. Na passagem abaixo, Viotti explicita a importância da perspectiva de Prado Jr. para a revolução na historiografia brasileira sobre a independência em sua abordagem sobre Bonifácio:

“O mérito de Caio Prado Jr. é ter saído do nível subjetivo dos testemunhos procurando identificar no jogo das contradições objetivas o sentido do processo. José Bonifácio aparece como um representante, no governo, de sua classe e partido, a desempenhar importante papel no movimento da Independência, que é visto como um conflito intenso e prolongado de classes e grupos sociais. A análise das contradições e dos grupos passa para o primeiro plano. A ação pessoal dos líderes da Independência fica subordinada à análise do processo.”3.5

Independente dos detalhes acerca da vida e trajetória de Bonifácio abordados por Viotti neste ensaio, o elemento mais importante para análise deste texto à luz do esforço de mapeamento acerca do tema da Independência, reside na proposta do ensaio: A construção de uma história da história de José Bonifácio. A análise extremamente subjetiva, que coloca Bonifácio no lugar de herói nacional, enaltecido em seus feitos e biografia por parte de certos expoentes da historiografia, tira da própria perspectiva histórica a sua figura e o processo de independência. Ao realizar a história da história de Bonifácio, Viotti o retira da categoria de lenda histórica da independência, perspectiva historiográfica essa extremamente criticada pela autora em suas diversas produções sobre 1822. Trata-se, portanto, de um esforço de trazer a figura de José Bonifácio para dentro do campo daquilo que pode nos ajudar a entender, em suas contradições, alguns aspectos do processo de independência brasileiro e do lugar a este conferido pela historiografia brasileira.

“Envolvidos pela preocupação nacionalista, forjada na luta pela emancipação política, os historiadores exaltaram a figura do Patriarca da Independência. Encarnava ele os anseios de ‘liberdade e nacionalidade’ do ‘povo brasileiro’, termos que circulam com freqüência desde então. Mais do que o próprio D.Pedro, visto sempre como um português, José Bonifácio, este sim brasileiro, representaria a luta em prol da Independência. Esquecia-se toda a sua formação européia, para ver nele apenas o brasileiro, que só este interessava aos que estavam empenhados em escrever uma história nacionalista. Homem ‘ilustre’, conhecido mais pelos seus atos políticos do que pelo seu programa social e econômico, ou pela sua política internacional, José Bonifácio aparecia como herói aos olhos dos historiadores preocupados com as efemérides nacionais e os estudos biográficos que fornecessem modelos de virtudes e relatassem feitos gloriosos e patrióticos, de uma galeria de homens ilustres.”3.6

Transformadas em lendas históricas, estes homens ilustres a quem Viotti faz referência no trecho acima não se tornam figuras passíveis de uma análise mais minuciosa, e em nada são questionados ou utilizados para entender a própria invenção de um discurso patriótico acerca de 1822. Esta história nacionalista, representada por figuras centrais da tradição do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) como Varnhagen, acabam, para a autora, por esvaziar de sentido e contradições o movimento da Independência, forjado em uma teoria liberal sustentada por essas figuras.

Mas qual o caráter do liberalismo sustentado na independência do Brasil? Esta pergunta é central nas mais diversas análises de Viotti sobre o tema. Como um país com uma arraigada tradição escravocrata e uma economia baseada nas amarras e relações de dependência colonial manifesta e interpreta este tipo de ideologia?

“O liberalismo brasileiro, no entanto, só pode ser entendido com referência à realidade brasileira. Os liberais brasileiros importaram princípios e fórmulas políticas, mas as ajustaram às suas próprias necessidades. Considerando que as mesmas palavras podem ter significados diferentes em contextos distintos, devemos ir além de uma análise formal do discurso liberal e relacionar a retórica com a prática liberal, de modo que possamos definir a especificidade do liberalismo brasileiro.”3.7

“A condição colonial da economia brasileira, sua posição periférica no mercado internacional, o sistema de clientela e patronagem, a utilização da mão-de-obra escrava e o atraso da revolução industrial – que no Brasil só ocorreu no século XX –, todas essas circunstâncias combinadas conferiram ao liberalismo brasileiro sua especificidade, definiram seu objeto e suas contradições e estabeleceram os limites de sua crítica. Em outras palavras, a teoria e a prática liberais no Brasil, do século XIX, podem explicar-se a partir das peculiaridades da burguesia local e da ausência das duas classes que na Europa constituíram o seu ponto de referência obrigatório: a aristocracia e o proletariado.”3.8

Nesse sentido fica claro que, para Viotti, o liberalismo brasileiro difere de forma substancial daquele liberalismo teórico pregado no próprio país. É fundamental, portanto, analisar no Brasil e no mundo como esta ideologia se apresenta na teoria e como se faz na prática em cada um dos contextos específicos. No caso brasileiro, e, especialmente, no processo da independência, o liberalismo entra como arcabouço teórico que justifica, especialmente, a quebra de monopólios coloniais, mas não a quebra dos laços de patronagem, escravidão, e relação de subserviência econômica para com o mercado exterior.

Para a autora, é fundamental situarmos a difusão das chamadas ideologias liberais no país nos anos que antecedem 1822, marcados por uma mudança econômica e social expressiva ligada à chegada de D. João VI e a família real portuguesa, além das íntimas relações com a Inglaterra que se intensificam também neste processo. Para Viotti, é neste sentido que o liberalismo brasileiro gestado nesse período no Brasil, e que tem como marco central a chegada da família real portuguesa em 1808, se faz essencialmente na crítica aos monopólios comerciais impostos pelos portugueses, e não mobiliza sentimentos nacionalistas ou uma vontade de mudança social. Ao propor a manutenção de uma relação de dependência com outra potência europeia, a Inglaterra, os expoentes do liberalismo no país mobilizam a defesa dos argumentos separatistas em prol de uma política econômica e social que muito se assemelha à lógica colonial, deslocando no entanto o eixo comercial colônia-metrópole para uma lógica exportadora para com outros países europeus.

“A emancipação política realizada pelas categorias dominantes interessadas em assegurar a preservação da ordem estabelecida, e cujo único objetivo era combater o Sistema Colonial no que ele representava de restrição à liberdade de comércio e de autonomia administrativa, não ultrapassaria os limites definidos por aqueles grupos. A ordem econômica tradicional seria preservada, a escravidão mantida. A nação independente continuaria na dependência de uma estrutura colonial de produção, passando do domínio português à tutela britânica.”3.9

O que podemos observar de forma geral é que a interpretação de Emília Viotti da Costa sobre a independência tem como base a análise sobre o liberalismo brasileiro à luz do contexto de formação histórica colonial. Além disso, uma das principais preocupações da autora está na historicização do debate sobre a Independência, que, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, ainda estava muito pautado na valorização deste processo histórico dentro de uma perspectiva nacionalista da historiografia brasileira. Nesse sentido, a autora se coloca em debate com outros autores importantes do marxismo brasileiro que abordam o assunto, em especial Caio Prado Jr. Viotti insere, em seu entendimento acerca do tema, a centralidade da escravidão e das relações de patronagem na prática do liberalismo que fundamenta o processo de Independência. Viotti traz, sob diferentes perspectivas, uma crítica ao tratamento da historiografia oficial sobre o tema que, para ela, corrobora com a criação de uma lenda histórica a respeito de 1822, forjada na ideia de um liberalismo nacionalista inspirado na tradição europeia mas que se faz, na prática, como uma reelaboração dos valores escravistas e patronais da lógica colonial sem gerar transformações para além da quebra dos monopólios comerciais.

Referências bibliográficas

COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. Editora Companhia das Letras, São Paulo. 1998.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. Unesp, São Paulo. 1998.

COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. Difusão Europeia do Livro. Coleção Corpo e Alma do Brasil. São Paulo, 1966.

 

3.1 COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. Difusão Europeia do Livro. Coleção Corpo e Alma do Brasil. São Paulo, 1966.

3.2 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. Unesp, São Paulo. 1998.

3.3 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. Editora Companhia das Letras, São Paulo. 1998.,

3.4 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. Unesp, São Paulo. 1998. p.17

3.5 Ibidem p.126

3.6 Ibidem pp.115-114

3.7 Ibidem p.132

3.8 Ibidem p.134

3.9 Ibidem p.60

EMANCIPAÇÃO INACABADA: UM BREVE OLHAR SOBRE A TESE DE NELSON WERNECK SODRÉ - Alice Rossi | Graduanda em História - USP

 

Em Setembro deste ano, comemoraremos o bicentenário da Independência do Brasil, e, no contexto das eleições presidenciais, é certo que uma grande disputa política se travará em torno da memória desse evento. Por ser um processo extremamente complexo – e inacabado – é possível que a narrativa da Independência se molde de diversas formas, atendendo a interesses variados, e os pronunciamentos dos agentes do bolsonarismo exemplificam muito bem essa instrumentalização do bicentenário.

Do que foi colocado até agora é possível identificar duas tendências principais. A primeira, encabeçada pelo Governo Federal, se apresenta como a clássica comemoração do heroísmo brasileiro, que localiza a Independência em alguns marcos específicos, como a chegada da Corte portuguesa no Brasil, o dia do fico, o grito do Ipiranga, etc., e não envolve nenhum tipo de questionamento sobre o caráter da emancipação – até porque evita ao máximo a utilização das categorias de classe ou raça, o que por si só já faria com que tal narrativa caísse por terra. A segunda tendência é aquela que operacionaliza o bicentenário para a defesa do neoliberalismo, realizando um revisionismo do processo emancipatório brasileiro que equivale a ideia de liberdade ao conceito de livre mercado, como se este fosse o discorrer natural dos eventos de dois séculos atrás. O movimento “Brasil 200 anos”, lançado pelo empresário Flávio Rocha em 2018, é um exemplo perfeito dessa instrumentalização, já que apresenta um discurso refundador de que é preciso que o povo brasileiro se liberte mais uma vez dos entraves ao desenvolvimento nacional, da “intermediação nefasta da burocracia estatal”.

Nesse contexto, é importante que se apresentem outras alternativas de interpretação do processo de Independência brasileiro, para que a distorção acrítica, bolsonarista e neoliberal não domine as comemorações de 2022 – pelo menos não sem oposição. E é neste sentido que este artigo pretende empreender o resgate de uma das grandes interpretações marxistas que foram produzidas sobre a Independência: a de Nelson Werneck Sodré, a partir de sua obra As Razões da Independência.

Sodré foi um dos autores marxistas mais lidos do Brasil no período anterior ao golpe de 1964, e sofreu tamanha perseguição e boicote por parte da Ditadura Militar que até pouco tempo grande parte da Academia brasileira ainda aderia ao discurso difamatório de que o militante e historiador era um marxista dogmático e ultrapassado, que apenas reproduzia as formulações de Moscou. Porém, em face das condições atuais, sua vida e obra vem sendo resgatadas, e Sodré vem se mostrando cada vez mais importante para o debate historiográfico e político contemporâneo. Como ressaltou José Paulo Netto:

“(...) nos últimos anos, está em curso – em dissertações, teses e comunicações científicas – uma reavaliação séria e crítica da sua obra, reavaliação cujos resultados, ainda que longe de conclusivos, já comprovam claramente que seus eventuais equívocos não comprometem a relevância e a amplitude do seu empenho para explicar e compreender o Brasil. Este movimento de reavaliação dá continuidade, de fato, a uns poucos esforços que, em meio à mediocridade generalizada que caracterizou as ciências sociais e históricas da universidade funcional e adequada à ditadura (e que sobreviveu a ela), procuraram uma aproximação isenta e objetiva da obra desse brasileiro exemplar.”4.1

As Razões da Independência é uma obra que exemplifica muito bem essa amplitude do empenho de Sodré para compreender o Brasil. Fruto de exaustiva pesquisa e convivência no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), a obra se divide em quatro partes, sendo que as três primeiras tratam do processo de Independência das colônias Ibéricas na América em relação ao cenário internacional da época, destacando o importante papel da Inglaterra nesse processo, e a quarta e última parte foca na consolidação da Independência do Brasil, analisando os conflitos internos do período Regencial.

Já na introdução da obra, o autor deixa muito clara a sua tese:

 “O processo da independência, que viria a transformar as antigas colônias ibéricas da América em nações autônomas, decorreu da revolução burguesa e foi um dos seus aspectos mais importantes. Como vanguardeira daquela revolução, a Inglaterra teve papel destacado no referido processo.”4.2

Ou seja, as independências da América Portuguesa e Espanhola são vistas, por Sodré, como mais uma das peças do desenvolvimento capitalista, e como a Inglaterra comandava esse desenvolvimento, tanto os processos de emancipação como as nações recém-criadas ficaram, em menor ou maior grau, subordinadas aos seus interesses.

O primeiro capítulo, intitulado “O Tratado de Methuen: domínio inglês em Portugal", busca as raízes dessa subordinação do Brasil colônia à Inglaterra na sujeição da metrópole, Portugal, aos ingleses, através da análise do Tratado de Methuen. O Tratado de 1703, que estabeleceu a entrada dos panos ingleses em Portugal e a entrada do vinho português na Inglaterra, é comumente colocado pela historiografia como a causa da destruição da incipiente indústria manufatureira portuguesa e, portanto, da dependência de Portugal para com os produtos ingleses. Desse modo, o Tratado de Methuen seria a causa do atraso e subordinação econômica portuguesa à Inglaterra, cuja última consequência seria a transferência do ouro brasileiro para os ingleses.

Sodré se contrapõe parcialmente a esta análise de modo muito convincente, se utilizando da avaliação do quadro global do desenvolvimento capitalista do período. O autor entende o tratado de Methuen não como a causa da subordinação de Portugal à Inglaterra, mas como uma peça do desenvolvimento mercantil da época, que apontava para uma transferência de riquezas para aquela nação que tinha superioridade econômica no amplo quadro da consolidação do capitalismo no ocidente: a Inglaterra. O tratado de 1703 apenas sancionava e traduzia esse processo legalmente, mas de nenhuma forma criava essa situação. Como explica Sodré:

“O fundamental residia no contraste entre uma economia em pleno e ascensional desenvolvimento capitalista e outra que havia permanecido nas primeiras etapas deste desenvolvimento. A subordinação da segunda à primeira era, portanto, inevitável. No quadro dessa subordinação, situava-se, como peça o Tratado de Methuen. Não acarretava o retardo econômico do país subordinado, inclusive o de sua indústria. Sancionava aquele retardo e aquela subordinação. Era parte do amplo quadro em que elas vinham se processando.”4.3

Com a subordinação de Portugal à Inglaterra já explicada, o autor parte para a análise da construção das relações de sujeição entre a colônia lusa na América e os britânicos. Quando a França ocupou Portugal em 1807, preocupada apenas em salvar-se, a Corte lusa fugiu para o Brasil com auxílio da Inglaterra. Vendo uma ótima oportunidade de manter e aprofundar a exploração da metrópole portuguesa e de suas colônias como forma de pagamento para proteção dada à Corte, a Inglaterra se empenhou ativamente na aprovação de tratados que a beneficiassem. O embaixador inglês em Portugal, Strangford, em face dessa situação, repassou o seguinte comunicado: “Sua Majestade Britânica cumprirá sua obrigação de não reconhecer o título de qualquer usurpador do trono portugues, mas não se encontra com disposição, no momento, de se comprometer sobre a sua restituição legal ao seu legítimo soberano”. Sobre isso, comenta Sodré:

"A Corte Joanina (...) era constituída prisioneira dos ingleses, com a colônia por menagem. Como só poderia retornar com o apoio da esquadra britânica, e como só se poderia manter em Portugal face ao povo e face aos inimigos externos, com a aliança inglesa, o aprisionamento não tinha limites.”4.4

Além do aprisionamento da Corte Portuguesa, que se via compelida a aceitar todos os tratados propostos pelos ingleses, o Brasil ficava como parte sem advogado nestas negociações, e era a principal vítima dessa distribuição unilateral de favores. Linhares negociava tendo em vista os interesses portugueses, Strangford os britânicos, e não havia um só brasileiro no gabinete onde se figuravam estes acordos - assim, enormes concessões extremamente desvantajosas para o Brasil foram firmadas durante esse período, com o tratado de 1810. A abertura dos portos, famoso episódio que precedeu a Independência, também só pode ser compreendida à luz dessa expansão mercantil britânica sobre as Américas.

É interessante notar também a mudança na política externa inglesa durante este período. Bem consolidada como potência capitalista industrial, a Inglaterra não mais se interessava pelo domínio direto de territórios, mas sim na conquista de suas riquezas e principalmente de seus mercados. Avançando sobre o Brasil com relativa facilidade, através de acordos, o país se tornou a base comercial inglesa nas Américas, a partir da qual se buscava a conquista do mercado platino. Como ressaltou Sodré:

“Conquistada essa posição no Brasil, partiria a Inglaterra para o lance seguinte: fazendo base aqui, lançar-se a conquista do mercado platino, nas melhores condições, e, conforme as circunstâncias, utilizando Portugal e o Brasil para alcançar os seus desígnios. A ideia do porto em Santa Catarina obedecia a esse intuito: a diplomacia britânica, como o jogador de xadrez, cuidava sempre dos lances futuros.”4.5

Chegando ao momento da Independência do Brasil, Sodré faz questão de ressaltar que esta não ficou definida a partir de 7 de setembro - muito pelo contrário, a autonomia da ex-colônia lusa esteve em perigo até 1831, quando Dom Pedro deixou o trono e o país, e a Independência se constituiu em um processo de construção longuíssimo, no qual diversos projetos de nação estiveram em disputa até o final do período regencial.

Quanto às disputas externas, de reconhecimento das nações europeias da autonomia do Brasil, o autor destaca mais uma vez o papel da Inglaterra, que, mediando o conflito entre a ex-colônia e a ex-metrópole, soube assegurar os seus interesses na recém-criada nação. Fazendo com que Portugal assinasse o tratado mediante a algumas concessões por parte do Brasil, como o pagamento de dois milhões de libras esterlinas e a associação de Dom João VI ao título imperial, a Inglaterra cobrou, assim como tinha cobrado os tratados de 1810 de Portugal em troca de proteção, os serviços prestados à Corte Brasileira no reconhecimento de sua Independência. Tal Independência já nasceu, deste modo, dependente da grande potência do capitalismo industrial.

A última parte da obra é dedicada aos conflitos internos que surgiram em torno dos diferentes projetos que tomaram corpo com o início do processo de Independência, e que chegaram ao seu ápice durante o período regencial. Segundo Sodré, essas disputas não são investigadas a fundo pela historiografia oficial pois: “(...) o estudo em profundidade da Regência representaria o desvendamento de muitos dos motivos que continuaram presentes na vida brasileira e chegaram ao nosso tempo - obrigariam uma tomada de posição.”4.6 O estudo da regência realizado em As Razões da Independência têm, então, esse principal objetivo: enfatizar todos aqueles processos que ainda estão inconclusos no caminho para a emancipação nacional.

A classe dominante, os senhores de terras e escravos, tinham em comum com as demais classes da ex-colônia o desejo de pôr fim à dependência para com a antiga metrópole – e, aqui, vale ressaltar que as elites latifundiárias só aderiram ao projeto de Independência quando não viram outra saída viável para dar continuidade ao seu domínio. Absolutamente todos os demais interesses destes senhores os separavam do restante da população.

“Detinham, entretanto, superioridade sobre as demais classes e camadas sociais e podiam falar em nome da nação que se inaugurou, decidir por ela, e confundir os seus privilégios como reivindicações da totalidade do povo, quando eram apenas as suas. Isso era reconhecido no exterior. Teria de ser imposto ao próprio país.4.7

Foi essa tentativa de imposição dos privilégios da classe dominante do Brasil como se fossem interesses da totalidade que gerou tantos conflitos – vários deles armados – durante a Regência. Por variados motivos, diversos grupos de todos os cantos do país se amotinaram em oposição ao regresso conservador que era empreendido pelas elites agrárias e escravistas após o primeiro momento da Independência, muitos deles pedindo pela adoção de uma monarquia parlamentar ou até mesmo de um regime republicano. Sua radicalidade assustava os senhores, que retrocediam ainda mais politicamente e avançavam com violência sobre as revoltas, o que enfraquecia cada vez mais a esquerda liberal parlamentar, que não encontrava outro caminho senão o da rebelião.

Como ressalta Sodré, comentando o processo de regresso conservador “A República constitui-se, assim, em espantalho terrível, em ameaça, em sinônimo de desordem e anarquia: o terror do ‘abismo’ e da ‘anarquia’ constituía o terror dos homens públicos então.”4.8 Reformas restritivas de direitos, liquidação da força militar profissional e fortalecimento da milícia destinada a proteger a classe dominante (Guarda Nacional), centralização progressiva, afogamento das revoltas a todo o custo, a adoção do poder Moderador e por fim, a Maioridade, foram vários dos mecanismos utilizados pela elite latifundiária e escravista para liquidar de vez a ameaça republicana anárquica.

Sodré, nesse momento, abre um parêntese interessante para comentar essa tão aclamada radicalidade dos motins regenciais que foi colocada como justificativa para o avanço conservador da época, o que ainda hoje é reproduzido pela historiografia oficial. O historiador afirma que a radicalidade desses movimentos estava apenas nos meios empregados, já que, em sua grande maioria, se constituíram em levantes armados, mas que de nenhuma forma essa radicalidade se traduzia em suas pautas políticas. É muito raro, por exemplo, encontrar nas formulações dos amotinados pronunciamentos pela abolição do trabalho escravo ou pela abolição do latifúndio, e, quando estes aparecem, são de responsabilidade de elementos isolados. Também é muito menos frequente a elaboração republicana do que coloca a historiografia. O que une os radicais, então, não é propriamente um desejo de destruir as estruturas de dominação das elites agrárias, mas sim “o desejo de aprofundar a Independência, de juntar a Independência à liberdade. Por isso pagaram e pagaram muito caro. Foi esse o crime que deviam expiar.”4.9

Conclui o autor:

“O radicalismo, assim, foi muito relativo. Sua importância, embora caracterizada em alguns casos, foi propositadamente aumentada, para fins de alarma, pela direita, no sentido de mobilizar a opinião no sentido de liquidação de uma tendência que vinha ameaçar diretamente alguns dos privilégios mais antigos e mais caros da classe dominante.”4.10

Assim, extrapolando as análises de Sodré, podemos concluir que o primeiro grande ato da burguesia latifundiária e escravista no período do Brasil independente, o Golpe da Maioridade, nada mais foi do que uma contrarrevolução preventiva que impedisse que ideias de república e participação popular viessem a ganhar força dentro das instâncias de poder. E esta saiu vitoriosa.

Nas últimas páginas de sua obra, Sodré dá espaço para explicar alguns dos principais movimentos revoltosos da Regência, chamando especial atenção para a Balaiada, “movimento popular dos mais sérios que o Brasil conheceu.''4.11 Sem dirigentes da camada média, seus membros eram todos recrutados das camadas mais baixas da sociedade, e não teve pregação ideológica que antecipasse seus objetivos. Mesmo que tenha sido esmagada pela Regência, que acelerou o processo político de regresso conservador assustada com suas proporções, a Balaiada se configura, ainda que sem projeto político claro, como uma das manifestações de disputa de poder importantes que foram empreendidas pelas classes anônimas do país.

A partir da análise de Sodré, podemos concluir que o processo de independência não é um evento para ser necessariamente reivindicado, pelo menos não em sua totalidade, uma vez que foi dominado e conduzido pelas classes latifundiárias e escravistas em associação com o capital industrial britânico. Porém, conhecê-lo e evocar a sua memória, de forma crítica e não comemorativa, nos revela as raízes do grande caminho que o povo brasileiro ainda precisa seguir rumo à emancipação. Enquanto o país estiver subordinado aos interesses do capital estrangeiro, e principalmente às dinâmicas de regresso e conservadorismo características da elite nacional, nunca poderemos nos declarar totalmente independentes. Como conclui Sodré:

Teríamos ainda muito de experiência a acumular para que, no fim do século, ultimássemos a escolha de regime mais adequado e, posteriormente, encacetássemos os esforços no sentido de concretizar a independência capaz de permitir ao país o desenvolvimento que seu povo merece.”4.12

Referências bibliográficas:

NETTO, José Paulo. Nelson Werneck Sodré: general da história e da cultura. São Paulo, Editora Expressão Popular, 2012

SODRÉ, Nelson Werneck. As razões da independência. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3ªedição, 1978

 

4.1 NETTO, José Paulo. Nelson Werneck Sodré: general da história e da cultura. São Paulo, Editora Expressão Popular, 2012, p.11

4.2 SODRÉ, Nelson Werneck. As razões da independência. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3a edição, 1978, p. 5

4.3 Ibidem, p.30

4.4 Ibidem, p. 142

4.5 Ibidem, p. 135

4.6 Ibidem, p.169

4.7 Ibidem, p.96

4.8 Ibidem, p. 213

4.9 Ibidem, p. 222

4.10 Ibidem, p. 225

4.11 Ibidem, p. 242

4.12 Ibidem p. 251

O IMPERADOR E O DITADOR: INDEPENDÊNCIA OU MORTE!, EMÍLIO MÉDICI E OS SIGNOS DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA - Gilda Walther de Almeida Prado | Graduanda em História - USP

 

 

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Restos mortais de Dom Pedro I são transportados sobre um tanque de guerra, ao longo do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro em 19725.1

 

No ano de 1972 o regime militar montou um espetáculo. Ler sobre as comemorações do Sesquicentenário (150 anos) da Declaração de Independência do Brasil, que ocorreram entre 21 de abril e 7 de setembro daquele ano, é deparar-se com uma relíquia eufórica, ufanista e quase carnavalesca de um país em plena vigência do Ato Institucional n° 5, embriagado pelo Milagre Econômico e pela conquista do tricampeonato na Copa do Mundo de Futebol em 1970. Foi um ano em que a contemplação do passado estava profundamente alinhada com a excitação pelas potencialidades do futuro.

O governo escolheu como protagonista do evento Dom Pedro I, cujos restos mortais foram divididos entre Porto e São Paulo, cuja face estampou moedas comemorativas5.2 e que foi transformado em um verdadeiro herói hollywoodiano, interpretado por ninguém menos que o galã Tarcísio Meira na superprodução de Oswaldo Massaini, Independência ou Morte! (1972).5.3 Dirigido por Carlos Coimbra, se tornou o filme de maior bilheteria do ano e até hoje é lembrado por ter sido o “filme mais caro do Brasil”5.4, uma chamada que o anunciava como um grande orgulho nacional.

A estreia ocorreu no dia 2 de setembro, no momento culminante do Sesquicentenário: a Semana da Pátria. E assim foi que Independência ou Morte! se entrelaçou definitivamente com a história que o regime militar vinha contando em 1972, para o pesar do diretor Carlos Coimbra, que resume o legado que o filme carrega até hoje:

“Não há em 'Independência ou Morte' nada de que me envergonhe ou que me deixe constrangido. Mas sei que a apropriação do filme pelo regime militar foi uma maldição que vai fazer com que ele nunca seja olhado pelo que é e sim pelo que fizeram dele.”5.5

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Poster do filme Independência ou Morte! (dir. Carlos Coimbra, 1972), estrelando Tarcísio Meira como Dom Pedro I e Glória Menezes como Domitila de Castro, a Marquesa de Santos.

 

História Oficial

 

O desconforto em relação ao uso que foi feito do filme pelos militares não é exclusivo de Coimbra, e parece existir um senso comum popular de que a produção recebeu apoio financeiro do governo. Em entrevista para Evaldo Piccino, doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP, o curador da mostra “Golpe de 64: amarga memória” Reinaldo Cardenuto Filho relembra que esta era uma grande preocupação de Aníbal Massaini, filho de Oswaldo, produtor do filme, quando Independência ou Morte! foi escolhido como parte da programação da mostra. A condição imposta por ele foi de que um “Esclarecimento do produtor” acompanhasse a sinopse do filme, afirmando, dentre outras coisas, que “Oswaldo Massaini realizou esta reconstituição histórica exclusivamente com recursos próprios. Não houve qualquer apoio do governo à sua realização.”5.6

A nota também esclarece as formas indiretas como o aparelho de censura do Estado autoritário contribuiu para esta ideia de que o filme teria sido sempre parte do programa do Sesquicentenário de Médici. Piccini ressalta, em seu estudo do cinema como propaganda política durante a ditadura, que a década de 1970 também marcou o início da maior presença dos militares sobre o cinema nacional, com a criação da Embrafilme em 1969 e a criação do primeiro Congresso de Indústria Cinematográfica no Brasil em 1972. O filme de época aparece aqui com bastante destaque, o governo tomando um papel ativo em incentivar esse tipo de produção que, naturalmente, requer um orçamento muito mais robusto. Duas vertentes principais se encontram neste momento: primeiro, a euforia do Milagre Econômico que eleva o cinema, uma arte profundamente moderna e industrial, a um importante papel no projeto de desenvolvimento da identidade nacional; e segundo, a vontade por parte dessa crescente indústria de participar das reflexões históricas que eram o grande tema do ano.

Assim, Independência ou Morte! foi concebido, filmado, montado e lançado em tempo recorde. A produção começou ainda em abril de 1972 e terminou a tempo da estreia na Semana da Pátria. O apoio dos agentes da censura foi relevante para o imenso sucesso e reputação do filme, ideia que aparece no “Esclarecimento” de Aníbal Massaini:

“Enviado a Brasília, para obter o certificado de censura, ele recebeu classificação para dez anos. Após nosso apelo para a redução desta classificação, foi assistido por algumas autoridades e passou a ser enaltecido e recomendado para alunos do primeiro e segundo graus. O governo da época tomou conhecimento deste filme quando já estava finalizado.”5.7

Que o filme não tenha sido produzido com interferência e intenção dos agentes militares na verdade torna as convergências no tratamento dado ao personagem de Dom Pedro I ainda mais intrigantes. Por essa perspectiva, o filme se torna quase um espelho de um sentimento de época muito presente no grande público e que foi capitalizado pelo regime nas celebrações do Sesquicentenário.

 

O Filme

 

Independência ou Morte! é um filme fundamentalmente ilustrativo, preocupado acima de tudo com a compreensão dos eventos principais que compõem nosso “mito originário” através de um comprometimento com a versão de livro didático da História do Brasil. Isso é reforçado pela identidade visual da produção, que parece ter emprestado muito das imagens produzidas pelo francês Jean-Baptiste Debret durante a Missão Francesa. Essa inspiração confere um ar de plasticidade ao filme. As recriações, apesar de fiéis a obras conhecidas como “O retorno de um proprietário” (1816-1831), que deve ter sido inspiração para uma cena onde Dom Pedro I conversa com uma donzela sendo carregada em uma rede por dois escravos, transformam o cenário em uma espécie de natureza morta: bela, colorida e repleta de detalhes, porém distante. Como uma foto de uma foto.

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DEBRET, Jean-Baptiste. Voyages au Brésil: Retour d' um proprietaire. 1816. Pintura.

Um elemento que exemplifica esse efeito é a presença historicamente correta, porém marginal de mulheres e homens negros tanto livres – colorindo as ruas de música, dança e comércio – quanto escravizados – em silêncio nos cantos das belas mansões, carregando carruagens e charretes com semblantes neutros. Essa superficialidade é uma característica de um filme desinteressado em investigar a realidade (ou melhor, a representação de realidade) que está reconstituindo.

Mas o universo de imagens criado por Debret e sua perspectiva europeia não é o único tipo de obra reproduzida e homenageada por Carlos Coimbra e seu fotógrafo Rudolf Icsey. Talvez o fotograma singular mais famoso de Independência ou Morte! seja justamente a recriação do quadro de Pedro Américo5.8, que é um momento que o espectador antecipa o filme todo e que é realmente impressionante e marcante. E este é o elemento do filme que acaba sobrepondo todos os outros: os signos que sacralizam a grande história de emancipação do Brasil que estava sendo contada em 1972. E no meio disto tudo está Tarcísio Meira como Dom Pedro I, personagem que parece ser construído de forma a humanizar e modernizar, de certa forma, essa visão oficial cristalizada do passado.

O protagonista de Independência ou Morte! é multifacetado, por mais que isso ainda seja realizado com uma perspectiva bastante didática. Como parte dessa breve reflexão vou me debruçar sobre apenas um desses aspectos, que é a forma como Coimbra, Meira e seus colaboradores conseguiram encontrar na figura de Dom Pedro I um personagem repleto de significantes de brasilidade. Segundo Carlos Coimbra:

“O D. Pedro de Independência ou Morte não é um herói épico. É popularesco, não tem nenhuma classe e, na maior parte do tempo, está mais interessado em sexo do que política.”5.9

Podia não ser um herói épico, mas foi concebido e aceito como um herói profundamente brasileiro, romântico. Se é ambivalente e contraditório, é por que é movido por todos os vícios e valores que permitiram humanizar e aproximá-lo do público. “Curiosa a figura de Dom Pedro, cheia de contradições” diz José Bonifácio, interpretado por Dionísio Azevedo, “um liberal que se tornou absolutista, um dinasta que renunciou a dois tronos, um pai amoroso, um marido infiel.” Apoiado em nada menos que o carisma do maior galã de novela da época, também é uma figura que carrega em si um tom trágico, apaixonado pela vida e pelo país que foi obrigado a abandonar.

O senso de urgência que é criado ao começar o filme com o seu momento decisivo de renúncia do Brasil e retorno a Portugal é então contextualizado pelo desenrolar de flashbacks que segue, demonstrando a forma como essa dupla identidade o constituiu desde a infância. Na martirização de Dom Pedro I, Independência ou Morte! novamente encontra com a narrativa oficial de Emílio Médici, que o introduz assim na cerimônia de recebimento dos seus restos mortais em 22 de abril de 1972: “Retorna ao solo brasileiro o Defensor Perpétuo do Brasil, aquele que, por amor a nossa gente, renunciou ao trono da nação que ajudou a construir.”5.10

A historiadora Janaína Martins Cordeiro, professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, ressalta com propriedade que, assim como era de interesse dos produtores do filme que o lançamento ocorresse durante a semana mais importante do ano, Independência ou Morte! deu às comemorações do Sesquicentenário de Médici o seu final perfeito.5.11 O ano que começou com o retorno simbólico de Dom Pedro I ao Brasil agora imbuia este gesto de orgulho e romance.

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Tarcísio Meira como Dom Pedro I em Independência ou Morte!

 

Emancipação política entre 1822 e 1972

 

Como reconhece Carlos Coimbra, a memória deste filme será eternamente ligada ao seu uso durante o período que foi ao mesmo tempo o mais brutal e o mais eufórico e entusiasmado da ditadura militar. A sua conturbada história põe em perspectiva os Anos de Chumbo: que no Brasil de Médici ainda existia um público de quase 3 milhões para assistir uma superprodução de cinema sobre o heroísmo trágico de um Imperador.

Talvez parte do desconforto que rodeia Independência ou Morte! até os dias de hoje esteja relacionado justamente à essa face oculta de uma década que para muitos foi na verdade os Anos de Ouro, com uma onda cada vez mais forte de nacionalismo permeando a população, aspecto onde não podemos ignorar – a influência enorme que foi o sucesso da Copa de 1970. Em um período de grande crescimento econômico, este mesmo torna-se o grande defensor da independência e da soberania nacional. A figura do Imperador humano, forte, legitimado por um rigor militar e a pompa de sua conexão com o “Primeiro Mundo” alinhou-se com o projeto nacional do Ditador, Emílio Médici, e esse alinhamento foi irresistível não apenas para o próprio, mas também para um grande setor da população da mesma forma como foi completamente rejeitado por outro.

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Face da moeda comemorativa do Sesquicentenário da Independência do Brasil mostrando o logotipo do evento, que conecta os anos de 1822 e 1972, e os perfis de Dom Pedro I e Emílio Médici.

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Ficha do Filme: Independência ou Morte!

Brasil | 1972 | Drama | 108 min.

Direção: Carlos Coimbra

Roteiro: Carlos Coimbra, Anselmo Duarte, Lauro César Muniz e Dionísio Azevedo

Elenco: Glória Menezes, Tarcísio Meira e Dionísio Azevedo

Referências Visuais

Independência ou Morte!. Direção: Carlos Coimbra. Produção de Oswaldo Massaini. Brasil: Cinedistri, 1972. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sGr6lhUizjc

DEBRET, Jean-Baptiste. Voyages au Brésil: Retour d' um proprietaire. 1816. Pintura. Disponível em: scielo.br/j/rieb/a/zHHQ3CPyWgnCSLMFNbpbLDK/?lang=pt#ModalFigf16

AMÉRICO, Pedro. Independência ou Morte! (O Grito do Ipiranga), 1888. Óleo sobre tela. 415 x 760 cm. Disponível em: https://www.wikiart.org/pt/pedro-americo/independencia-ou-morte-o-grito…

 

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, M. G. de, MARCICANO, J. P. P., & HELD, M. S. B. de. (2019). A obra de Jean-Baptiste Debret como fonte histórica para os estudos dos trajes usados no Brasil no início do século XIX. In. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (74), pp.270-301.

CORDEIRO, Janaína Martins. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do sesquicentenário da independência entre consenso e consentimento. 2012. 232f. Tese. (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.

COSMELLI, Lidiane Macedo. A história na teça: cinema, história e memória em filmes ficcionais. 2013. 130f. Tese. (Mestrado). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

FERREIRA, C.; DA SILVA, E. R. S. O retorno do Imortal: D. Pedro I mitificado pelos militares nas representações imagéticas das Revistas O Cruzeiro e Manchete no Sesquicentenário da Independência (1972). In. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 11, p. 355-385, 2014.

MÉDICI, Emílio Garrastazu. Retorno ao solo - discurso do Presidente Emílio Garrastazu Médici, ao receber do Presidente Américo Deus Rodrigues Thomaz, de Portugal, os restos mortais de Dom Pedro I, junto ao monumento Nacional dos Mortos da II Guerra Mundial, no Rio de Janeiro, 22 de abril de 1972.

PICCINO, Evaldo. "Pra Frente, Brasil", "Independência ou Morte" e o uso de música e cinema como propaganda oficial  In. Revista Novos Olhares - Vol. 1 n° 2. ECA-USP, São Paulo, 2012.

 

5.1 Manchete, 6/03/1972, p.7. Apud. FERREIRA, C.; DA SILVA, E. R. S. O retorno do Imortal: D. Pedro I mitificado pelos militares nas representações imagéticas das Revistas O Cruzeiro e Manchete no Sesquicentenário da Independência (1972). In. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 11, p. 355-385, 2014.

5.2 PICCINO, Evaldo. "Pra Frente, Brasil", "Independência ou Morte" e o uso de música e cinema como propaganda oficial  In. Revista Novos Olhares - Vol. 1 n° 2. ECA-USP, São Paulo, 2012. pp. 76

5.3 Independência ou Morte!. Direção: Carlos Coimbra. Produção de Oswaldo Massaini. Brasil: Cinedistri, 1972. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sGr6lhUizjc

5.4 Cf: "Independência ou Morte! - O filme mais caro do Brasil", In: Manchete. 24/08/1972, p. 84. Apud: CORDEIRO, Janaína Martins. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do sesquicentenário da independência entre consenso e consentimento. 2012. 232f. Tese. (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, pp.160.

5.5 Carlos Coimbra. Depoimento a Luiz Carlos Merten, 2007, p.229. Apud: CORDEIRO, 2012, pp.160.

5.6  PICCINO, 2012, pp. 82

5.7  Idem.

5.8 AMÉRICO, Pedro. Independência ou Morte! (O Grito do Ipiranga), 1888. Óleo sobre tela. 415 x 760 cm. Disponível em: https://www.wikiart.org/pt/pedro-americo/independencia-ou-morte-o-grito…

5.9 MERTEN, Luis Carlos. Carlos Coimbra: um homem raro. São Paulo, Imprensa Oficial, 2004. pp. 228. Apud. COSMELLI, Lidiane Macedo. A história na teça: cinema, história e memória em filmes ficcionais. 2013. 130f. Tese. (Mestrado). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. pp. 86.

5.10 MÉDICI, Emílio Garrastazu. Retorno ao solo - discurso do Presidente Emílio Garrastazu Médici, ao receber do Presidente Américo Deus Rodrigues Thomaz, de Portugal, os restos mortais de Dom Pedro I, junto ao monumento Nacional dos Mortos da II Guerra Mundial, no Rio de Janeiro, 22 de abril de 1972.

5.11 A história da inclusão ou não deste evento no calendário oficial do Sesquicentenário é complexa e possui ressalvas que não cabem neste artigo. Janaína Martins Cordeiro se aprofunda mais sobre esse assunto na tese mencionada anteriormente.

 


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