Ano 3 nº 05/2022 (Edição especial): A conjuntura - As Eleições Presidenciais e o Fortalecimento da Extrema-Direita na França de 2022 - Cândido Rodrigues; Isabelle Clavel

boletim3-05


A conjuntura ...

 

AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS E O FORTALECIMENTO DA EXTREMA-DIREITA NA FRANÇA DE 2022

 

Cândido Rodrigues

Professor de História Contemporânea - UFMT

Isabelle Clavel

Doutora em História Política – Université Bordeaux-Montaigne

 

 

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Detonação de uma nação, Julian RosefeldtPiero Steinle, 1996.

Fonte: https://sammlung-online.berlinischegalerie.de:443/eMP/eMuseumPlus?servi…

 

Neste ano de 2022 a França passará por eleições presidenciais, no próximo mês de abril. Talvez estejamos frente às suas eleições mais importantes das últimas décadas, em razão dos riscos aos quais está submetido o modelo democrático republicano, ali já desgastado.

As forças político-partidárias diretamente envolvidas no processo eleitoral dividem-se à esquerda, ao centro, à direita e a seus extremos. O que se observa, numa visão geral, é a predominância da fragmentação política. Há 12 postulantes ao cargo de presidente, sendo 4 mulheres e 8 homens. Entres aqueles com maiores bases eleitorais estão Emmanuel Macron (Repúblique en Marche, centro-direita liberal e atual presidente da França), Anne Hidalgo (Partido Socialista - atual prefeita de Paris), Fabien Roussel (Parti Communiste – esquerda), Yannick Jadot (Europe écologie les Verts - esquerda), Marine Le Pen (Rassemblement national - extrema-direita), Eric Zemmour (partido Reconquête – extrema direita), Valérie Pécresse (partido Les Républicains – direita liberal) e Jean-Luc Mélenchon (partido La France Insoumise – extrema-esquerda). Há também candidatos com menor base eleitoral, a exemplo de Nathalie Arthaud (partido Union Communiste – extrema esquerda), Philippe Poutou (Nouveau Parti Anticapitaliste – extrema esquerda).

À esquerda, socialista (social-democrata), ecologista e comunista ou de qualquer natureza, o que se vê é uma dificuldade substancial em torno da elaboração de um projeto que favoreça a coesão nacional das forças progressistas e que possa reuní-las em torno de uma candidatura sólida e com propostas passíveis de apoio social e de sua respectiva conversão em votos. Mesmo com tentativas para indicar um candidato único para representar o conjunto das forças de esquerda, os partidos não conseguiram um entendimento e, por tal razão, entram na disputa de forma dispersa. Esta fragmentação lhes custa uma grande parte do seu eleitorado tradicional que os critica por não reunir condições de união e que prefere dirigir seus votos à candidatura de Emmanuel Macron. À exceção de Jean-Luc Mélenchon, todos os candidatos de esquerda dispõem de menos de 5% de intenções de votos. Por esta razão, Emmanuel Macron conseguiu consolidar a sua base eleitoral ganhando a adesão de grande parte do eleitorado social-democrata que votava, há décadas, no Partido Socialista, aliado a parte também das forças do Partido Comunista e do Partido Ecologista. A France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, pode ainda, mesmo que fragilmente, ter esperanças de se qualificar para o segundo turno das eleições.

À direita liberal e à centro-direita, o que se nota é basicamente uma fissura ideológica entre o grupo partidário de Valéria Pécresse (oriundo das linhas do ex-presidente Nicolas Sarkozy) e aqueles que circundam o atual presidente Emmanuel Macron.

A candidatura de Valérie Pécresse foi validada por meio de uma consulta ampla no seio do partido Les Républicains. Esta pré-campanha demonstrou que os Républicains retomaram uma parte das temáticas da extrema-direita a respeito da segurança e da imigração. Os programas de Emmanuel Macron e de Valérie Pécresse não têm diferenças, quando muito, sobre o plano econômico. A inspiração é liberal, influenciada um pouco com o Estado providência segundo a tradição francesa. Da mesma forma que em relação ao eleitorado tradicionalmente à esquerda, Emmanuel Macron captou uma parte do eleitorado do Républicains – que não se reconhece mais no programa de exclusão referente às questões migratórias. A condução da crise sanitária (Covid-19), especialmente os auxílios concedidos pelo Estado às empresas, também permitiu a Emmanuel Macron consolidar a sua base eleitoral. Merece destaque o fato de que os dois grandes partidos da alternância democrática, o Partido Socialista e o Républicains, escolheram mulheres como candidatas. É bem verdade que a  sociedade francesa, a mídia, mas também a classe política, carrega sempre uma visão extremamente patriarcal do poder, o que impede que as duas candidatas, Hidalgo e Pécresse, tenham a mesma exposição midiática que os demais candidatos.

À extrema esquerda ou, para alguns, à esquerda radical, o quadro de diferenças ideológicas concernentes ao campo comunista se afigura igualmente quase que insuperável.

Também à extrema direita nos deparamos com a fragmentação entre Marine Le Pen (herdeira do Front National – agora Rassemblement national) e Eric Zemmour (que criou o próprio partido Reconquête – em novembro de 2021). O programa político de Le Pen prevê 22 propostas, cujas três primeiras reforçam o seu discurso de há tempos:   “1- Acabar com a imigração descontrolada, dando a última palavra aos franceses por referendum. 2-Erradicar as ideologias islamitas e o conjunto de suas redes de relações do território nacional. 3 – Fazer da segurança em todos os lugares e para todos uma prioridade do mandato” [1].  Já para Zemmour, é chegada a hora de se colocar “os pingos nos is”, propondo prioridades, em suas palavras “extremamente claras e fáceis de entender: Identidade, Imigração, Islã, Insegurança, Instrução, Impostos, Indústria e Independência”.[2] Aqui estão evidentes as similaridades entre algumas das principais temáticas de suas campanhas. Evidentes também estão as dificuldades de ambos os candidatos de diferenciarem-se frente ao eleitorado francês. Le Pen possui uma base eleitoral mais sólida, oriunda de décadas de arregimentação histórica por meio do Front National . Já Zemmour não dispõe desta base, mas avança sobre apoiadores e eleitores que outrora votavam em Le Pen e na centro-direita e na direita liberal, agora descontentes com ambos. A própria sobrinha de Marine Le Pen, Marion Maréchal Le Pen, declarou seu alinhamento à Éric Zemmour. As muitas deserções no campo de Marine Le Pen reduzem consideravelmente suas chances de vencer as eleições presidenciais.

Deste quadro geral podemos reter alguns conjuntos de elementos que definirão a corrida e a chegada ao posto de presidente da república na França de 2022.

O primeiro deles diz respeito à capacidade de mobilização de votos que as temáticas imigração, islamismo, segurança e emprego terão sobre a população francesa. Por exemplo, como já demonstrado em outra oportunidade, “na França, a extrema direita e por vezes a direita desenvolveram um discurso xenófobo estereotipado que procurou associar a imagem do imigrante a uma ameaça potencial. Tal discurso apoiou-se sobre outro estereótipo na tentativa de promover o amálgama entre ser muçulmano e ser terrorista”[3].

O segundo conjunto de elementos decorre das consequências da denominada crise da democracia liberal contemporânea: mais precisamente a dificuldade de realização efetiva do ideal democrático, nos planos político e social. Talvez o mais correto fosse falar em crises: de legitimidade política (com a perda gradativa da crença na representação por meio das instituições), identitária (resultante da globalização), financeira (crise do capitalismo financeiro global), bem como, inversamente, na prevalência de parte da ideologia neoliberal voltada ao consumo como valor e ao dinheiro como medida do sucesso. Como já apontado por muitos, tais crises geram inegavelmente aquilo que se definiu como uma espécie de ruptura entre governantes e governados, onde “a desconfiança nas instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. [4] A impressão de abandono, o sentimento de não representação, de invisibilidade, de insegurança e de exclusão operam como fatores de mobilização e de instrumentalização política face ao cenário eleitoral, e são também apropriados massivamente pelas forças populistas de extrema direita, sempre dispostas a se apresentarem como salvadoras da pátria em nome da pretensa pureza de suas intenções e da propalada insuficiência das forças progressistas (ou de conservação).

O terceiro e último conjunto de elementos a ser destacado diz respeito à capacidade de mobilização das forças democráticas em favor do interesse coletivo nacional, na eventual necessidade de agregação eleitoral diante de um possível segundo turno em que seja preciso escolher entre a extrema-direita de corte neofascista (Le Pen ou Zemmour) e, por exemplo, democratas liberais (centro-direita) como Macron.

Nas eleições presidenciais de 2017, o segundo turno ocorreu entre Emmanuel Macron (centro-direita liberal) e Marine Le Pen (extrema-direita), com a vitória do primeiro – com apoio e votos oriundos da esquerda e da direita.

Cabe aqui uma reflexão: se uma hipótese semelhante se apresentar novamente e dadas as amplas condições de fragmentação política francesa e elementos materiais mencionados, estariam muitos eleitores dispostos a abandonar as suas convicções políticas em favor de um voto de “união nacional” contra uma possível ameaça neofascista? 

O desencadear da guerra na Ucrânia, no final do mês de fevereiro, altera um pouco o quadro da eleição. De fato, Marine Le Pen e Eric Zemmour receberam, no passado, apoio de Vladimir Putin e se declararam a seu favor.  Suas tomadas de posições os enfraquecem diante de uma sociedade francesa que se coloca quase que de forma unânime contra a guerra na Ucrânia. Por outro lado, Emmanuel Macron reforça sua posição. Atualmente ele possui mais de 30% de intenções de voto. Até o momento, quatro candidatos podem reunir condições de confrontá-lo no segundo turno:  Marine Le Pen, Eric Zemmour, Jean-Luc Mélenchon e Valérie Pécresse. Enquanto estas linhas são escritas, é muito difícil afirmar qual será seu adversário. Mas é bem verdade que os candidatos de extrema-direita podem estar subavaliados e que um ou outro se qualifique ao segundo turno.

De qualquer forma, ao que tudo indica, a guerra na Ucrânia reforçará as posições da frente republicana contra a extrema-direita e permitirá, muito certamente, que Emmanuel Macron renove o seu mando presidencial.

*Brasil/ França – 10 de março de 2022.

 

[1] Disponível em: https://mlafrance.fr/programme. Acesso em 07.03.2022.

[2] Disponível em: https://www.parti-reconquete.fr/ Acesso em: 07.03.202.

[3] RODRIGUES, Cândido. Política, Xenofobia e Islamofobia em Nicolas Sarkozy (2002-2012). Curitiba: Appris, 2021.p.79.

[4] CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p.7.

 


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