Ano 3 nº 07/2022: Coluna socialista - Seis Dias em Guiné: um breve relato - Gustavo Rolim

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Coluna socialista...

 

SEIS DIAS EM GUINÉ: BREVE RELATO

 

Gustavo Rolim

Professora da rede municipal de Gravataí - RS e Doutorando em História – UFRGS

 

monumento

Monumento aos mártires de Pindjiguiti, Guiné-Bissau

 

Quanto tempo temos que passar em um determinado lugar para que sua visita seja marcante, profunda ou significativa? A visita que fiz a Bissau, entre os dias cinco e dez de fevereiro de 2022 me comprovaram que não há a necessidade de longas estadias para isso.

Desde o lançamento de Pensamento Africano no Século XX, pela Expressão Popular, no qual participei com um capítulo, a Guiné já habitava pensamentos de viagem, visitas e curiosidades. Estudava, desde então o pensamento de Amílcar Cabral e o processo de independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Nunca me pareceu “justo” visitar Portugal sem ir a Bissau. Visitar a metrópole (onde toda a estrutura para a pesquisa sobre os processos históricos africanos de fato estão) sem nenhuma intenção de conhecer a realidade das terras de onde provinham todas aquelas histórias e nomes de revolucionários soava quase como uma renovada violência. De fato, isto me suscitou uma pergunta. Nós brasileiros, na academia, tão dispostos a dizer que estamos tentando nos livrar de eurocentrismos, estabelecemos que relação com o continente africano nas últimas décadas? A quantidade de bolsas de estudo e programas de intercâmbio durante a chamada “expansão universitária” levou milhares de estudantes à Europa. No mesmo período, entretanto, uma quantidade muito grande de africanos fez das universidades brasileiras seu local de estudos. Aproveitamos a oportunidade de firmar contato, laços e produção acadêmica com países que cansativamente dizemos termos “laços históricos”?

Em terras portuguesas, após pesquisar nos arquivos (no curto tempo permitido pelas passagens cada vez mais caras de avião), começava a me preparar para a viagem à Bissau. Entretanto, no dia primeiro de fevereiro, uma notícia nada alvissareira: tiros na capital guineense. Contato imediatamente meu amigo, Vanito Cá e meu coorientador, Julião Soares Sousa, para averiguar se estavam bem. Não minimizando o fato de tiros ocorrerem no contexto do palácio de governo, a imprensa apressou-se em caracterizar imediatamente o fato como um golpe de estado. Por Vanito e Julião, e posteriormente em Bissau, tomo conhecimento de que a situação nas ruas e a vida cotidiana estavam rapidamente normalizadas, após o primeiro dia de incertezas. As conversas que tive e presenciei sobre o caso repousam muito mais na sua estranha construção e resposta do governo do que necessariamente no fato em si: o presidente de Guiné, Umaro Sissoco Embaló (do partido Movimento para uma Alternativa Democrática) afirmava haver mortos e feridos, mas não informava exatamente o número; associava o ocorrido ora ao narcotráfico, ora a uma tentativa de golpe. A CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental) aventou realizar uma força tarefa para estabilização do país. Os acontecimentos parecem ter laços diretos com as últimas movimentações políticas no país. A constituição está sendo reelaborada; poderes do primeiro ministro e presidente estão sendo contestados; e o PAIGC (Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde, o histórico partido que realizou a luta pela independência) está em oposição direta ao atual governo[1].

Os dias seguiam, entretanto, sem que esses desenvolvimentos afetassem em grande medida o cotidiano. As escolas seguiam abertas, os mercados de rua fervilhavam de pessoas indo e vindo e eu ia conhecendo (guiado por Vanito) devagar a vida urbana da capital onde Amílcar Cabral não havia conseguido pisar sem o controle português, sendo morto antes da chegada de seu partido ao poder. O porto de Pidjiguiti e seu punho de design iugoslavo; a praça Che Guevara, da qual sobrou apenas um medalhão do Che, perdendo-se a estátua; e a praça central. Na sede do PAIGC, fechada naquela altura (um domingo), encontro um militante de prontidão na porta, a nos receber. Ao saber que sou brasileiro, decreta: “todo brasileiro é do PAIGC”. Não posso dizer que não me senti lisonjeado pelo comentário. No bar próximo a casa de Vanito, de propriedade do simpaticíssimo Djamanca, onde o futebol e a comida, semelhante a um churrasco de domingo toma conta, o debate político era aceso. Todos tinham ali algo a dizer sobre o ocorrido. A incluir o fato de um dos seguranças, supostamente morto em combate no dia primeiro, ser vizinho deles... e estar vivo. Na hora, embora a barreira da língua seja uma dificuldade constante – se reconhece muitas palavras e contextos das falas em crioulo, mas é impossível acompanhar tudo – noto que a conversa casual é muito mais politizada do que no Brasil. Onde seria impensável um futebol e churrasco terminar em conversas sobre o futuro da nação. Na ocasião, aproveito para experimentar o vinho de palma, bebida mais que típica, milenar da região, com sabor característico.

A noite na Guiné é agradabilíssima. Além da temperatura, que cai bastante as cores do pôr do sol são muito diferentes do meio subtropical do Rio Grande do Sul. Os vagalumes e a sensação de segurança que nos permitia sentar na frente da casa de Fernando (irmão mais velho de Vanito e meu anfitrião) e olhar as crianças brincarem livremente destoava com todo o resto alardeado pela imprensa. Ao passar por mim gritavam “branco, branco!”. No início eu apenas sorria. Nos dias seguintes respondia “oi!” O estranhamento é compreensível, mas a normalização foi rápida: um dia, no bar de Djamanca, conversando com um estudante que planejava o mestrado em Curitiba, uma criança, em crioulo, diz “um branco sentado como preto”. Marcou também a festa pelo campeonato africano ganho pelo Senegal. País vizinho da Guiné e com muitos imigrantes, ouviu-se muita música, as crianças correndo pelas ruas e festejos.

No dia de ir ao INEP, o curioso é a semelhança. O prédio do Instituto é parecido com os do Campus do Vale da UFRGS. Criado em 1984, o INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa) é referência de pesquisa em ciências sociais. Embora já tenha visto dias melhores, estruturalmente, segue em plena atividade, com a Universidade Amílcar Cabral dividindo logo abaixo o amplo espaço reservado às suas instituições. A conversa com o diretor do Instituto, logo que termina, é tomada por uma preocupação a mais: tiros na Rádio Capital. A rádio, identificada pelos guineenses como um reduto crítico e de debate político, teve seus equipamentos destruídos e saiu do ar (não havia voltado quando deixei o país). No dia seguinte, eu, Vanito e Fernando ouvimos na rádio o pronunciamento de que o ataque havia sido mais um “caso isolado”. Rimos em uníssono.

Nos dias seguintes ocorre a apresentação de meu projeto de doutorado no INEP. Essa apresentação, curiosamente, tem o título de primeira conferência internacional por mim pronunciada. Após ela reunimo-nos no Espaço Verde (espaço cheio de árvores e bancas para se relaxar, comer e beber), com diversos amigos de Vanito. Vários haviam já estudado no Brasil. A quantidade de pessoas que haviam feito a graduação, ou mestrado ou doutorado em Porto Alegre ajudou a trazer assuntos muito próximos do dia a dia gaúcho. Reivindicava-se quem era de “Poa” e quem não era. Quem sabia fazer o melhor churrasco (Arraes foi unanimemente escolhido como melhor assador), quem gostava de chimarrão (me comprometi a levar mais erva da próxima vez), e até a disputa Grenal tomaram corpo na mesa, pós almoço de bagre com arroz, e muita cerveja.

O retorno foi marcado por muitas despedidas, presencialmente e pelo celular. As diferenças de hábitos, costumes e da vida urbana de Bissau a essa altura já tinham muitos se dissolvido. A ida, ficava claro a cada despedida, era apenas um até logo, visto que era incentivado sempre a retornar, com mais tempo, para

JoseCarlosGuine
José Carlo Schwarz, poeta e músico que marcou os primeiros anos de independência de Guiné-Bissau

conhecer Cacheu, Bijagós, Boé, dentre outros locais. Perguntavam-me sempre se eu iria voltar na época da manga – em referência às chuvas. Improvável, visto que professor, tenho que aproveitar sempre as férias de verão brasileiras. Por vezes alguns se desculpavam pelo fato de eu ter visitado a Guiné em tempos

“conturbados”. Me veio na cabeça um pensamento que tive no primeiro estranhamento, ao chegar à Guiné: não escolhemos as condições do local que visitamos. Apenas visitamos. As condições políticas da Guiné podem não estar ainda resolvidas, ou, como os países do primeiro mundo se deleitam por dizer, “estáveis”, mas ficou mais do que comprovado para mim que a estabilidade da Guiné é a própria população. Anda muito fora de moda, inclusive no Brasil, mas a leitura que precisamos resgatar é que reside nas características (positivas) da população as alternativas, os meios, as soluções... enfim. Este é outro assunto.

Voltar a Guiné ainda se fará necessário para as pesquisas (igualmente Cabo Verde), esgotando alguns locais de onde posso acessar documentação e visitando pontos importantes da luta de libertação. Mas a volta também se fará por vontade. E por um desafio imposto pelos amigos de lá: tenho de aprender o crioulo.

 

Notas

[1] Expresso: Guiné-Bissau. “O clima é de tensão para que as pessoas desistam de se opor”: https://expresso.pt/internacional/guine-bissau-o-clima-e-de-tensao-para-que-as-pessoas-desistam-de-se-opor/

RFI: DPS. “Eventualmente a Guiné precisa de apoio, mas precisa primeiro de um diagnóstico”: https://www.rfi.fr/pt/programas/convidado/20220216-dsp-eventualmente-a-guin%C3%A9-bissau-precisa-de-apoio-mas-precisa-primeiro-de-um-diagn%C3%B3stico

Folha de São Paulo: Presidente da Guiné-Bissau diz que país está sob controle após tentativa de golpe: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/presidente-da-guine-bissau-diz-que-pais-esta-sob-controle-apos-tentativa-de-golpe.shtml

 


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