Ano 3 nº 08/2022: Notícias de pesquisa - Livros e Ideologia: a utilidade política dos livros subsidiados pela USIA no Brasil - Josiane Mozer

boletim3-08


Notícias de pesquisa ...

 

LIVROS E IDEOLOGIA: A UTILIDADE POLÍTICA DOS LIVROS SUBSIDIADOS PELA UNITED STATES INFORMATION AGENCY (USIA) NO BRASIL

 

Josiane Mozer

Doutora em História - UFRGS

 

“Qualquer tentativa de enfrentar os desafios políticos e ideológicos do futuro envolve, antes de mais nada, a necessidade de fazer o balanço do passado e do presente.”[1]

 

USIA-2
O texto é do jornal Diário de Pernambuco de 9/07/1958, n. 153

No artigo Livros e ideologia: os objetivos do programa editorial da United States Information Agency (USIA) e sua relação com editoras brasileiras, demonstrei a origem do programa, como se institucionalizou e como construiu uma rede de colaboradores para viabilizar a sua operacionalização, dando ênfase na relação estabelecida com editoras brasileiras.

Como continuidade, neste artigo demonstrarei como o programa editorial foi muito além do mero subsídio às editoras. Tão importante quanto editar, era garantir a circulação dos títulos e legitimá-los como referência teórica em assuntos estratégicos aos interesses da burguesia. O esforço de legitimação passava não só pela inserção dos títulos em canais apropriados de divulgação (sistema de ensino, revistas e cadernos especializados, resenhas etc.), mas na utilização dos títulos como referência no debate político nacional das décadas de 1950 e 1960, com o claro objetivo de ingerência nos assuntos estratégicos para a expansão capitalista no país.

Embora apresente um caráter mais descritivo, este artigo está firmemente ancorado na compreensão de que a luta de classes se expressa, também, na disputa pelo controle de métodos de conhecimento e de produção de formas específicas de consciência social, sendo os aparelhos privados de hegemonia e seus intelectuais orgânicos, conforme nos demonstra Gramsci, fundamentais.[2]

 

1. Livros contra o marxismo

 

O anticomunismo do programa editorial da USIA está expresso, desde a sua origem, como uma das estratégias de contrarrevolução adotadas pela burguesia internacional organizada sob a liderança estadunidense. A Agência justificava o seu programa como reação à existência de uma iniciativa similar e bem-sucedida da União Soviética, que ela deveria combater em defesa do “mundo livre”.[3]

“Um fator importante na situação que enfrentamos agora é o papel dos livros na propaganda comunista. Os livros, para os comunistas, incorporam as ‘análises convincentes’ dos males sociais, econômicos e políticos básicos do mundo, registram e exaltam a realização das ‘revoluções bem-sucedidas’ na Rússia e na China, estabelecem a doutrina governante que fundamenta as políticas e campanhas de partidos comunistas e organizações de fachada, sua propaganda e agitação. Esses livros comunistas estão disponíveis em grandes quantidades e baratos em bancas de livros em toda a Ásia, Oriente Médio, Europa e América Latina. Livros americanos, de relevância correspondente aos interesses e necessidades locais, se disponíveis, estão disponíveis apenas em edições caras e geralmente apenas em inglês e em pequenas quantidades.”[4]

Em relatório de 1967, afirmava a USIA que a União Soviética, em parceria com editoras latino-americanas, produzia livros com interesse dos públicos locais em grande quantidade e a preços acessíveis desde 1955, e informava os números: em 1955, editoras locais comercializaram 390 mil livros entre exportados diretamente da União Soviética e publicados localmente com subsídio daquele país; em 1960, foram 1.102.000 livros e em 1965, 3.000.000, e concluem: “as editoras comunistas locais - publicando sob contrato para a União Soviética - respondem pela maior parte dos livros comunistas que circulam na América Latina”.[5]

A preocupação constante dos EUA com a circulação do marxismo na América Latina exigiu que a USIA desenvolvesse técnicas para conhecer o perfil social dos grupos-alvo de seu programa editorial e, assim, elaborar abordagens adequadas de aproximação. As técnicas relatadas em documentação incluíam pesquisas de opinião, de hábitos sociais e análises sobre o mercado editorial.

As pesquisas sobre universitários e universidades latino-americanas tiveram início em 1955 e ganharam maior importância após a Revolução Cubana, sendo realizadas de forma mais consistente a partir de 1960.[6]

Em linhas gerais, apontavam serem os estudantes latino-americanos potencialmente revolucionários e atraídos pelo marxismo, que identificavam ter o potencial capaz de levar à transformação social. Via de regra, consideravam os Estados Unidos e a sua política externa como causadores dos males sociais que afligiam a América Latina, e apoiavam as propostas nacionalistas para o desenvolvimento.

Pesquisa realizada pelo posto USIS Rio de Janeiro, em 1962, demonstrou a experiência literária dos universitários brasileiros: mais da metade dos estudantes entrevistados afirmou ter nos livros a sua principal fonte de informação sobre economia e política, e que a grande maioria dos livros citados era de autores que atacavam a estrutura social vigente sob um ponto de vista marxista. Entre os autores citados pelos estudantes brasileiros, a pesquisa mencionava Celso Furtado ao lado de autores franceses e estadunidenses de esquerda, como Paul Sweezy, Eric Fromm, C. Wright Mills. Afirmava ainda que havia a tendência geral, entre os estudantes, em considerar escritores não de esquerda como reacionários que não valiam a leitura.

Aumentar a presença de livros estadunidenses na América Latina, traduzi-los, fazê-los chegar facilmente às mãos de estudantes e intelectuais, e transformá-los em referência para as ciências humanas pareceu, aos analistas da USIA, tarefa urgente.

Embora o programa editorial da Agência estivesse em execução na América Latina desde o seu início, em 1953, foi a partir do governo Kennedy que o programa ganhou incremento no orçamento e maior apoio político para se expandir. A decisão, incentivada pessoalmente por Kennedy, pautava-se na coadunação de vários fatores:

  1. uma crescente percepção de que as traduções dos livros estadunidenses não estavam alcançando o leitor latino-americano em quantidade ou variedade suficiente para lhe dar uma compreensão “adequada” dos Estados Unidos;
  2. a convicção de que uma contribuição significativa dos Estados Unidos para a consecução dos objetivos da Aliança para o Progresso seria a ampla divulgação de livros que ajudariam os latino-americanos em seu desenvolvimento econômico, social e político;
  3. evidência de produção massiva e disseminação em espanhol e português de livros comunistas e anti-Estados Unidos na América Latina.[7]

Para além dos motivos acima, a eclosão da Revolução Cubana, que colocou em alerta máximo o império do capital.[8]

Se no ano de 1953 a Agência subsidiou a publicação de 173 títulos perfazendo 1.730.000 exemplares na América Latina, no ano de 1966 as tiragens foram de 12.267.365 exemplares (o documento não informa a quantidade de títulos correspondentes), numa escala crescente ano a ano.[9]

Em 1957 o Jornal do Brasil anunciava, com entusiasmo, o crescimento do mercado editorial brasileiro.

“Vale a pena tomarmos conhecimento de um fenômeno que se tem processado no movimento editorial brasileiro, pois, na verdade, nunca se editou tanto e com tanto êxito como agora. Os autores e os títulos se sucedem em ordem crescente, as edições se repetem e o público ledor [sic] aumenta a olhos vistos”.[10]

O jornal O Globo também exaltou o movimento editorial em 1961. Antonio Olinto, responsável pela coluna Porta de Livraria, publicou duas matérias sobre o assunto, sob o título Livros de Economia. Dizia ele que “diante do surto de edições de livros especializados em assuntos econômicos havido no Brasil nos últimos três anos, é importante que, apesar da necessidade que essa bibliografia aumente, façamos um balanço do que já possuímos”[11], já que estudiosos do assunto pediam à coluna “informações pormenorizadas sobre livros de Economia”. Dizia ele, ainda, que as editoras Zahar e Fundo de Cultura vinham se destacando na atenção dedicada a este assunto, e que atendiam “às necessidades que nossos cursos universitários têm de manuais”.[12] Certamente não é coincidência o fato de serem as editoras e os títulos mencionados integrantes do programa editorial da USIA.

Embora nos faltem pesquisas que analisem o mercado editorial brasileiro considerando a presença do programa editorial da USIA e, consequentemente, elementos concretos para aferir a real dimensão da interferência da Agência no aumento da publicação de livros no país, é inegável a relevância de sua participação.

Para o posto USIS Rio de Janeiro, entretanto, a meta para ampliar a circulação dos livros subsidiados foi alcançada. Em relatório enviado à USIA em 7 de abril de 1964, o posto afirmava categoricamente que “pesquisas em livrarias nas principais cidades mostram que os livros patrocinados pelo USIS agora superam os livros comunistas e ultranacionalistas disponíveis para o público em geral”.[13]

 

2. A profunda e silenciosa “revolução” capitalista

 

Tão importante quanto publicar, era tornar os livros publicados referência em assuntos de relevância para a hegemonia burguesa. Além de canais de acesso ao sistema educacional brasileiro para inserção dos livros em bibliografias obrigatórias de cursos secundários e universitários, a imprensa foi um recurso de propagação fundamental.  

A longa série de artigos publicada no jornal O Estado de S. Paulo é um exemplo. Intitulada O capitalismo democrático dos Estados Unidos, a série é composta por 40 artigos publicados entre outubro de 1957 e novembro de 1958, assinados por Paul V. Shaw.[14]

O artigo de estreia, publicado em 27 de outubro de 1957, apresentava a tese central a ser defendida por Shaw ao longo da série: o capitalismo democrático dos Estados Unidos seria a verdadeira revolução do século XX, profunda e silenciosa, gerando riquezas e beneficiando a todos. Para entender o “alcance revolucionário” do “novo capitalismo” seria preciso estudá-lo a fundo, mas não à luz de teóricos liberais do século XIX, cuja análise referia-se a um capitalismo de tipo clássico, como Adam Smith ou David Ricardo. A defesa do “novo capitalismo”, para ser efetiva, precisava modernizar seu arcabouço teórico e “confrontar o socialismo (descrito por Karl Marx em 1870) e os sistemas comunistas estabelecidos de 1917 para cá, com resultados políticos, sociais e práticos alcançados pelo moderno capitalismo democrático norte-americano”.[15] Shaw afirmava que os “modernos adeptos de Marx” ao atacarem o “materialismo norte-americano”, a “civilização coca-cola”, a “diplomacia do dólar”, acabavam arrastando consigo “muitos nacionalistas e patriotas sinceros em países do Mundo Livre; especialmente na ausência de defesas convincentes, tendem a acreditar nas alegações desses críticos e, consciente ou inocentemente, fazem o jogo comunista colocando-se ao lado dos antiamericanistas”. Afirmava ainda que, “depois de um longo estudo de autores norte-americanos e europeus”, ficaria evidente que os críticos do capitalismo estadunidense baseavam suas opiniões em “preconceitos ideológicos ou na falta de conhecimentos da atualidade norte-americana”. O capitalismo estadunidense havia se transformado em um “democrático capitalismo do povo”.[16]

Os teóricos do “novo capitalismo” eram os autores estadunidenses e europeus traduzidos pelo programa editorial da USIA: Peter Drucker[17], Adolf Berle Jr.[18], David E. Lilienthal[19], Frederick Lewis Allen[20] dentre outros.

Geraldo de Freitas, em sua coluna No mundo dos livros, na revista O Cruzeiro, destacava o livro A Nova Sociedade, de Drucker, em 1954, antes mesmo de sua edição em português, como uma grande contribuição para receber os avanços do capitalismo com entusiasmo. O livro, defendia ele, era capaz de apresentar os desafios das sociedades industrializadas e indicar o caminho para vencê-los, uma “nova ordem, perfeita e pacífica, é o que ele [Drucker] encaminha à consideração dos leitores, como contribuição a um final entendimento entre os povos.”[21]

Luiz Alberto Bahia publicava, no Correio da Manhã, resenha do livro de Adolf Berle Jr., Revolução capitalista do século XX. Apresentava as principais ideias do autor e afirmava que este e muitos outros livros deveriam ser escritos sobre o tema, pois “a importância da transformação por que passa a economia americana justifica que sobre o fenômeno se escrevam mais livros como de Adolf A. Berle Júnior”.[22]

O trabalho para a popularização dos títulos publicados pela USIA não dispensava a contribuição de intelectuais brasileiros, evidentemente. Gilberto Freyre em sua coluna na revista O Cruzeiro, dizia-se encantado com a riqueza da intelectualidade estadunidense que conheceu em sua última viagem aos EUA. Dizia ele que o leitor brasileiro não poderia deixar de conhecer mais e melhor a W. W. Rostow e Alfred Berle Jr., entre outros citados.[23]

Harold Cecil Poland, intelectual orgânico do empresariado multinacional e associado e líder do IPÊS, ao defender o “apropriado” desenvolvimento nacional em artigo publicado no Correio da Manhã, em 29 de outubro de 1961, apoiava-se em autores presentes no catálogo editorial da USIA. Citando Calvin Hoover e W. W. Rostow[24], Poland fazia a defesa de um desenvolvimento arrojado e apoiado em capital estrangeiro, que exigiria disposição e coragem política, e o empenho pessoal de trabalhadores e dirigentes patronais.[25]

 

3. A utilidade política dos livros

 

Ao lado dos trabalhos de publicação, distribuição e popularização dos livros subsidiados, por meio da imprensa, estava também o trabalho de os ligar aos eventos políticos da sociedade brasileira.

O livro A nova classe, de Milovan Djilas[26], é um bom exemplo. Publicado pela Editora Praeger, Nova York, em 1957, o livro tornou-se importante peça publicitária dos Estados Unidos.

Os trabalhos de divulgação foram elaborados e coordenados pela USIA. Em circular confidencial enviada a todos os seus postos em 9 de agosto de 1957, a Agência orientava a divulgação, sugerindo as passagens biográficas do autor e os trechos da obra a publicizar.[27] Orientava, ainda, reforçar Djilas como um ex-comunista com conhecimento aprofundado do marxismo, o que legitimaria suas críticas. O principal aspecto da obra era a crítica à existência de uma burocracia comunista que criou uma nova classe, os dirigentes do partido, que exploravam o povo e concentravam a riqueza produzida. Em complemento, havia outros pontos importantes que deveriam ser destacados: a condição do operário, o desperdício sob o sistema comunista, o militarismo, a censura, a corrupção, o avanço econômico conseguido à custa de um povo escravizado.

O posto USIS Rio de Janeiro informava à Agência que os planos de publicação e divulgação seguiam à risca a orientação: o livro recebia “considerável publicidade na imprensa carioca” e o Diário de Notícias “está publicando agora todo o texto”, enquanto a editora Agir preparava a publicação do livro para dezembro.[28]

A nova classe caiu como uma luva na luta antinacionalista travada pela burguesia no Brasil.Em meio aos debates sobre a proposta de criação da Eletrobrás, O Estado de S. Paulo apoiava e dava voz aos parlamentares de oposição e, com base na obra de Djilas, reforçava o argumento de ser a proposta uma ingerência indevida do Estado: “a empresa privada é cada vez mais perseguida” e oprimida pelo Estado, o que representava um perigo para o país, e o “ex-comunista Djilas, em livro recente, escreveu, muito profundamente a esse respeito, mostrando que nos países comunistas se formam essas classes burocráticas tentaculares e dominadoras...”.[29]

O deputado Carlos Lacerda, ao atacar o “estatismo” do Congresso, apresentava seus argumentos com base na mesma obra: a UDN não se deixaria prender pelo “falso dilema” entre estatismo e iniciativa privada, pois sob a máquina do Estado, o desenvolvimento é alcançado “à custa da abdicação dos direitos dos homens (...), conseguido à custa da formação - e servindo-me da expressão feliz daquele pobre líder Djilas (...), conseguido à custa da formação de uma nova classe...”.[30]

A versão em português do livro chegou ao mercado editorial em janeiro de 1958. Tratado como um best-seller, a repercussão agradou ao posto USIS Rio de Janeiro. No primeiro semestre desse ano, o livro teve 3 edições e 15 mil cópias, com planos de lançamento de nova edição com tiragem prevista de mais 3 mil cópias.[31]

Orientações explícitas sobre a utilidade política dos livros editados pela USIA no Brasil são encontradas em correspondência trocada, em abril de 1964, entre Richard C. Wooton, coordenador do programa do livro para a América Latina, seu subordinado Robert Smith, e Alan James, funcionário do posto USIS Rio de Janeiro responsável pela execução do programa no país.

Wooton orientava Smith, então de viagem marcada para o Brasil, para que repassasse as seguintes recomendações a James: intensificar os trabalhos de divulgação dos títulos que formavam as coleções ABC Democrático[32] e Leituras do Povo; atualizar ou fazer uma sequência do livro de Pedro Colombo, Quem faz a revolução no Brasil[33], assim como novas edições e mais trabalho de divulgação para o livro de Sonia Seganfreddo, Une: instrumento de subversão[34]; outros títulos semelhantes ao livro de Seganfreddo deveriam ser encomendados, abordando, por exemplo, a “subversão comunista das organizações de trabalhadores brasileiros, talvez uma [obra] especial sobre o Ministério da Educação e o sistema escolar”; as encomendas de títulos a autores brasileiros deveriam prever sua tradução para o espanhol; o livro A Estratégia da traição, de Jane Kirkpatrick[35], “é muito importante para apoiar nossa posição e a posição do governo brasileiro”, e por isso deveria ter a sua tiragem aumentada em nova edição, assim como uma ampliação de sua distribuição; para combater as críticas na mídia europeia, que noticiava a “revolução” brasileira como obra dos EUA, o posto deveria encomendar, a um intelectual europeu, um estudo positivo que refutasse a acusação de participação dos EUA, sugerindo o nome de Suzanne Labin.[36]

A resposta de James revela, das recomendações recebidas de Wooton, aquelas que já estavam em andamento: a coleção Leituras do Povo continuava recebendo todo o apoio do posto, e “é possível que esta série tenha um grande impacto por causa do preço, nível de escrita, brevidade etc. Aliás, os primeiros exemplares apareceram nas livrarias de São Paulo em quantidade no dia em que a Revolução [sic] começou, e vários dos títulos venderam muito bem durante as primeiras semanas”. A coleção ABC Democrático estava comprometida com a publicação de títulos com “forte caráter político”; uma nova e ampliada edição do livro de Seganfreddo estava em preparação, e “estamos lendo as provas de um livro sobre as Forças Armadas e a crise em desenvolvimento”; a obra de  Kirkpatrick, em preparação naquele momento, sairia com 3 mil exemplares no formato de livro, além da seleção de 4 capítulos a serem impressos separadamente, com tiragem de 10 mil cópias cada, para distribuição a grupos-alvo; a ideia de um intelectual europeu a produzir reflexão positiva sobre os desdobramentos políticos em curso, em si, deveria ser considerada, mas o nome sugerido por Wooton não inspirava confiança, já que a intelectual mencionada apresentava postura demasiado independente para garantir que o resultado fosse o desejado.

 

4. Apontamentos

 

A USIA, enquanto agência de informação dos EUA, agiu segundo diretrizes formuladas pelo Conselho de Segurança Nacional para expurgar das ciências humanas o pensamento marxista e assim salvaguardar a sociabilidade burguesa no “mundo livre”.

Ainda que parte constitutiva de um conjunto formado por outras agências e inúmeros aparelhos privados de hegemonia envolvidos na publicação de livros (especificamente CIA, USAID, Fundação Rockefeller, Franklin Book Programs, universidades e editoras), a atuação da USIA na execução e coordenação do programa editorial, impressiona por suas dimensões.

No Brasil, a Agência de fato trabalhou para que os títulos publicados alcançassem ampla circulação e alimentassem teoricamente a ideologia burguesa e seu projeto político-econômico ao longo das décadas de 1950 e 1960. Ofereci, aqui, alguns exemplos desse esforço.

Alguns desses títulos se tornaram referência em cursos universitários, como é o caso do livro Etapas do desenvolvimento econômico, de W.W. Rostow, para a Economia, ou A Nova Sociedade, de Peter Drucker, para a Administração.

O programa editorial trabalhou encoberta e silenciosamente por longos anos, inserindo-se sem alarde na formação de consciência social. A partir dessa constatação, uma questão fundamental se coloca, e para a qual a pesquisa sobre o programa aponta possibilidades de reflexão: em que medida e profundidade a difusão maciça das teorias liberais nas ciências humanas, impostas pelas classes dominantes, impacta na capacidade de uma sociedade em construir alternativas contra-hegemônicas?

 

Notas

[1] MÉSZAROS, I. O poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p.35.

[3] Não é meu objetivo, aqui, discutir a veracidade dessa afirmação expressa em diversos documentos da USIA.

[4] Aspas no original. USIA. RG 306. Projection of ICS activities to fiscal year 1960, [1952 c.] Entry P 297, Box 1. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[5] O documento não especifica se títulos ou exemplares. Também não informa como chegaram a estes números. USIA. RG 306. Study of USIA Book Publishing Program, January 1968. Entry P 160, Box 24.

[6] A USIA produziu ou encomendou diversas pesquisas para conhecer o estudante latino-americano, seus objetivos políticos e seus hábitos de leitura. USIA. RG 306. Negative Stereotypes about the United States held Latin American University Students, June, 1965. Entry P 195. Box 6. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[7] USIA. RG 306. Latin American Book Program, Briefing Paper, March 16, 1964. Entry P 4. Box 13. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[8] Termo usado segundo formulação de Wood, que demonstra que o império capitalista se expressa por meio de imperativos econômicos ancorados em supremacia bélica e política capazes de manter Estados subalternos vulneráveis à exploração. WOOD, Ellen M. O império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

[9] USIA. RG 306. Study of USIA Book Publishing Program, January 1968. Entry P 160. Box 24. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[10] MOVIMENTO editorial. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 ago. 1957. 1º Caderno.

[11] OLINTO, A. Livros de Economia. O Globo, Rio de Janeiro, 30 out. 1961, p. 12.

[12] OLINTO, A. Livros de Economia II. O Globo, Rio de Janeiro, 8 nov. 1961, p. 2.

[13] USIA. RG 306. Brazil USIA Program Summary, April 7, 1964. Entry P 296.  Box 2. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[14] Professor de História da Civilização Americana na Universidade de São Paulo entre 1936 e 1941. Trabalhou como jornalista-editor para O Estado de S. Paulo entre 1936 e 1946. Foi diretor do Centro de Informações das Nações Unidas no Rio de Janeiro entre 1947 e 1957 e diretor de cursos do Instituto Brasil-Estados Unidos do Rio de Janeiro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 fev. 1970, p. 15.

[15] SHAW, Paul V. O capitalismo democrático dos Estados Unidos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 out. 1957.

[16] Idem.

[17] DRUCKER, P. A nova sociedade: anatomia do sistema industrial. RJ: Ipanema, 1957.

[18] BERLE JR., Alfred. A revolução capitalista do século XX. RJ: Ipanema, 1954.

[19] LILIENTHAL, David E. Grandes empreendimentos: uma nova era. RJ: Civilização Brasileira, 1957.

[20] ALLEN, Frederick Lewis. A grande transformação. Livraria Clássica Brasileira, 1953.

[21] FREITAS, G. No mundo dos livros. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 46, 30 out. 1954.

[22] BAHIA, L. A. Capitalismo revolucionário? Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 jul. 1956, p. 8.

[23] FREYRE, G. Viagem aos Estados Unidos. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 95, 9 set. 1961.

[24] Respectivamente: A economia, a liberdade e o Estado, editora AGIR, 1964, 5 mil exemplares; Etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-comunista, Zahar, 1961, 4 mil exemplares, e 1964, 4 mil exemplares.

[25] POLAND, H. É mais fácil amar estrelas. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 out. 1961.

[26] Membro do Partido Comunista Iugoslavo, foi vice-presidente de Josip Broz Tito até 1953. Destituído do cargo por divergências com o Partido Comunista, foi preso e condenado em 1956. O livro foi escrito na prisão e de lá retirado e publicado pela CIA. À USIA coube a coordenação dos trabalhos de divulgação e propaganda.

[27] USIA. RG 306. Infoguide: The New Class by Milovan Djilas. August 1, 1957. Entry P 27. Box 2. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[28] USIA. RG 306. Publication of The New Class by Milovan Djilas. October 28, 1957. Entry P 27. Box 2. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[29] A ELETROBRÁS levantou o véu do estatismo na Câmara Alta. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 4, 20 out. 1957.

[30] LACERDA, C. Discurso. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 27 nov. 1957. 1º/2º Cadernos, p. 4-5.

[31] USIA. RG 306. The New Class by Milovan Djilas. June 19, 1958. Entry P 27. Box 2. National Archives Records Administration, College Park, Maryland, EUA.

[32] O documento consultado não permite afirmar se a coleção ABC Democrático estava sob a responsabilidade da Editora Record, embora seja mencionada, levantando a hipótese plausível de ser a Editora a responsável pela coleção.

[33] COLOMBO, Pedro. Quem faz a revolução no Brasil? São Paulo: Livraria Martins Editora, 1964. Trata-se do segundo título da coleção Leituras do Povo, dirigida por Raimundo de Menezes, selada pela Martins Editora e subsidiada pela USIA.

[34] SEGANFREDDO, Sonia. Une: instrumento de subversão. RJ: GRD, 1963. Para conhecer o envolvimento do IPÊS na publicação, ver DREIFUSS, R. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 2006; GONÇALVES, M. S. Páginas golpistas: democracia e anticomunismo através do projeto editorial do IPÊS (1961-1964). Dissertação (Mestrado). ICHF, UFF, Rio de Janeiro, 2010; DJUROVIC, C. A. Impressões da direita: luta ideológica e mobilização empresarial através da ação editorial do IPÊS (1961-1964. Dissertação (Mestrado). FFLCH, USP, São Paulo, 2021. Para conhecer o envolvimento da USIA ver MOZER, J. A arquitetura da dominação: o programa editorial da Agência de Informação dos Estados Unidos no Brasil (1953-1968). Tese (Doutorado). IFCH, UFRGS. Porto Alegre, 2020.

[35] KIRKPATRICK, Jane (org). A estratégia da traição: uma obra sobre as táticas comunistas mundiais. Rio de Janeiro: GRD, 1964.

[36] Suzanne Labin teve vários de seus livros publicados no Brasil com o subsídio da USIA. Para conhecer o seu envolvimento no programa e no anticomunismo internacional, ver MOZER, op. cit.

 


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